TUCA PUC 1977
EU QUASE QUE NADA SEI. MAS DESCONFIO DE MUITA COISA. GUIMARÃES ROSA.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Isso


RUMO À ESTAÇÃO ISSO por Leonardo Ferrari, psicanalista, Curitiba aqui


A escritora libanesa Joumana Haddad em fotografia de divulgação. No indispensável Ela do jornal O Globo do último sábado, a imprescindível Bety Orsini trouxe pela mão Joumana Haddad. Olha, eu não peço mais que imitem o Ela. Só peço que o imprimam igualzinho. Que os jornais casmurros de São Paulo o façam – afinal de contas o jornal do futuro já não traz só para os leitores da capital o suplemento The New York Times? Ora, ora, o que é este suplemento comparado ao Ela? Nada. Que meu Diário da Manhã de Carazinho o faça. Já imaginaram o que será de Carazinho com Ela? E que Curitiba um dia viva para sempre com Ela. Curitiba com Ela seria uma epifania. Para uma cidade acostumada com a importação de colunistas e artigos de São Paulo – seria o eco da antiga província em relação à capital? - imprimir o Ela inteiro não custa muita coisa, custa? No mínimo seria trocar São Paulo pelo Rio de Janeiro. Que alívio! Bom, como eu estava dizendo antes de sonhar, esta querida Joumana Haddad, esta linda libanesa, dengosa autora do recém-lançado “Eu matei Sherazade” (editora Record), falou muitas coisas. Falou de sua infância triste, do colégio de freiras em que passou 14 anos enfurnada onde ela brilhantemente resumiu todo o ensino que recebeu em uma frase: “Agora você executa as ordens, depois, enventualmente as contesta”. E aí ela fala de seu encontro com Sade, com “Justine”, e do modo como essa leitura foi seu batismo na subversão. A entrevista termina com Joumana dizendo que ser árabe hoje significa “dominar a 'arte da esquizofrenia', significa que você tem que ser hipócrita, que sua vida, suas histórias têm de ser abafadas, tolhidas e codificadas: reescritas para agradar aos guardiões vestais da castidade árabe, para que estes possam ficar sossegados em relação ao fato de o delicado hímen árabe estar protegido do pecado, da vergonha, da desonra ou da mancha”. Ela disse muito mais, mas aí remeto o leitor ao jornal. Lembrei muito de Joumana ao ler a ótima reportagem de Neil MacFarquhar no The New York Times sobre a sombra do ditador derrubado, do ditador caído, do ditador vencido no cotidiano do Egito pós-Mubarak. A reportagem veio ilustrada com essa fotografia sensacional do metrô do Cairo - ver abaixo. A pergunta que MacFarquhar lança é o que fazer da sombra de um ex-ditador? Pois eu refaria a questão de outro modo. Se para Joumana o encontro com Sade foi decisivo, para mim foi com Freud. Freud viveu atravessado, dividido, partido ao meio com a descoberta surpreendente que não basta matar Sherazade nem tampouco destruir as estátuas do ditador ou apagar seu nome no metrô. Isso é fichinha perto da tarefa árdua, difícil e trabalhosa de dobrar um outro ditador chamado Supereu. Este não habita o mundo lá fora, mas está internalizado, está nas entranhas do sujeito, é a base em que se alicerça os fundamentos de sua razão – daí Lacan ter escrito o memorável “Kant com Sade” (presente em seus “Escritos”, publicado no Brasil pela Jorge Zahar). Que a razão esteja contamidada pela radiação do Supereu, que esteja danificada, que não fique nada razoável com a presença deste corpo estranho, desses pensamentos estranhos, dessa voz implacável e muitas vezes cruel, traz para o debate algo que ultrapassa a mera revolução das ruas ou a troca de colégio ou a abertura das pernas. Há uma outra subversão à espera do sujeito. Como operar uma transformação de si mesmo longe de si mesmo? Este é o convite da psicanálise. Das ruas à análise. Não que a revolução das ruas não seja necessária. Porém, a estação análise exige outro tipo de ato. Um ato de separação, um ato de perda, um ato de adeus a si próprio. Onde Isso era, Eu devo ser. Só que este Eu que vai para a estação Isso já não pode ser chamado de Eu. Quem chegou não é o mesmo que partiu.

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