Imagem: Andy W.
texto enviado pelo Raymundo de Lima
Grata!
O Conselheiro Andrógino e o Intelectual Frio - Uma Alternativa Inexistente
Beth A. Keiser - 1º.mar.2002/Associated Press
Cena de "As Tetas de Tirésias", ópera de Poulenc baseada na peça de Apollinaire, em Nova York, com cenário de David Hockney
CLASSE MÉDIA INTERNACIONAL DISPENSA OPINIÕES E CONSELHOS DOS PROFESSORES DE CIÊNCIAS HUMANAS, QUE DEVEM ADMITIR QUE SUA FUNÇÃO NA SOCIEDADE É A DE PENSAR E IMAGINAR O QUE NINGUÉM MAIS PENSA NEM IMAGINA
por Hans Ulrich Gumbrecht
Um velho amigo, desses que têm o dom de nos irritar, mas de quem nunca conseguimos nos desligar, me perguntou outro dia se não achava que nós, professores de ciências humanas e intelectuais, deveríamos nos empenhar mais em recuperar nosso tradicional papel de conselheiros em assuntos públicos e também particulares. "Que outros seriam mais cultos, mais economicamente independentes e, portanto, mais eficientes nessa tarefa que nós?", indagou a este seu amigo cético. E não pude deixar de atribuir o entusiasmo dele a um texto recentemente publicado numa coluna da revista dominical do "New York Times", um texto sobre um doutor em filosofia que fazia fortuna atuando como consultor existencial, por assim dizer, a despeito dos protestos e até das ações legais de todo tipo de comunidades, clubes e associações psicanalíticas. Mas minhas dúvidas quanto à possibilidade de virar um conselheiro são mais de ordem histórica do que de natureza sistemática. É de uma ingenuidade grotesca (embora encantadora) pensar que somos ou já fomos um dia economicamente independentes. A idéia do intelectual como conselheiro é mais um exemplo dessa crença de que algo existiu no passado porque nunca existiu na realidade. Talvez só haja duas exceções a essa regra: uma digna de apreço, outra paradoxal. A digna de consideração refere-se àqueles "médicos" de que falam alguns cronistas medievais espanhóis e portugueses. São descritos como indivíduos sábios, em geral pertencentes à comunidade judaica, e destituídos de qualquer ligação formal com a corte, embora acompanhassem os reis em suas horas mais tristes e difíceis, dialogando com eles de forma franca, sem jamais se tornar alvo da cólera real. A exceção paradoxal é constituída pelos psicanalistas de hoje (já prestes a se converter numa das idiossincrasias culturais sul-americanas). A renda de um psicanalista depende de seus clientes. No entanto estes se comportam como se não tivessem nenhum poder sobre aquele profissional, eis a essência do contrato entre ambas as partes. Possíveis queixas de ineficácia do tratamento serão imediatamente interpretadas e reprimidas como sintomas neuróticos ou até mesmo psicóticos do cliente.
Projeto de vida
Decerto, já prevendo minha opinião e os argumentos que expus acima, embora nada lhe tenha dito, meu amigo invocou fenômenos bem prosaicos da cultura contemporânea. Citou um tipo de literatura sempre encontrada nas caras livrarias dos aeroportos e shopping centers, livros especializados em conselhos práticos para toda espécie de situação, em projetos de vida "com embasamento científico". "Lebenshilfe" (literalmente: assistência de vida), assim chamam na Alemanha essa literatura de auto-ajuda. Tais livros costumam ficar em evidência por um curto período, durante o qual figuram em várias listas de "mais vendidos" e são resenhados nas revistas mais lidas.
Contudo esses períodos de exposição ostensiva são curtos demais para fixar os nomes de seus autores ou tornar largamente aceitas as formas de comportamento por eles prescritas.
A exceção paradoxal é constituída pelos psicanalistas de hoje (já prestes a se converter numa idiossincrasia cultural sul-americana)
A moda é tão volúvel no vestuário quanto nas dietas, estas só duram mais que seus efeitos. Acreditar no dr. Atkins, por exemplo, parece hoje tão antiquado, tão retrógrado, quanto usar calças boca-de-sino sem uma óbvia intenção nostálgica. A velocidade das mudanças e a concomitante leveza da escrita já bastariam para excluir o professor de ciências humanas do mercado dos livros de auto-ajuda. Além disso, e esse é o fato decisivo, os conteúdos que lemos e ensinamos não nos tornam mais abalizados do que o cidadão comum na maioria das questões práticas. Quem pediria a opinião de um professor de filosofia sobre o mercado financeiro? Quem pediria conselhos conjugais a um especialista em poesia medieval? É perfeitamente compreensível, portanto, que nunca tenhamos sido consultados profissionalmente sobre questões de natureza prática.
Mas quais funções designariam hoje nossas genealogias profissionais e por que me refiro a "genealogias" no plural? Ao examinar nossa pré-história, logo constatamos: nós, intelectuais contemporâneos, somos fruto de duas tradições diferentes que convergiram e acabaram por se fundir já no início do século 20 -a do scholar e a do intelectual do Iluminismo. Para complicar, existiam duas versões de scholar. Sempre metido num paletó de tweed, o "gentleman scholar" anglo-americano era um leitor sofisticado, comentava e discutia os clássicos com pequenos grupos de alunos sob sua orientação e supervisão de "tutor". Tratava-se de um pedagogo que agia como se não tivesse profissão alguma e que se orgulhava disso. Dar a impressão de se esfalfar no trabalho ou, pior ainda, escrever muito constituíam claros sinais de mau gosto aos olhos do "gentleman scholar". Ser admirado pelo bom gosto em matéria de literatura, arte ou música, nisso consistia o objetivo máximo, a distinção suprema para ele. Em contrapartida, os professores de ciências humanas alemães do século 19 tinham por ideal de vida e meta profissional a "pesquisa" (palavra que o "gentleman scholar" jamais usaria para descrever seu ofício) e, a exemplo de Jacob e Wilhelm Grimm, seus mais ilustres antecessores, sonhavam em conscientizar a nação de sua autêntica identidade por intermédio de seu passado. Com isso, ganharam dos inimigos a irônica alcunha de "praeceptores Germaniae" (preceptores da Alemanha).
Pretensão de preceptor
Nenhum desses dois modelos -o do pesquisador-preceptor e o do "gentleman scholar"- sobreviveu. Dado o reduzido número de estudantes por ele contemplados, o modelo de ensino tutorial do "gentleman scholar" deixou de ser economicamente viável, exceto em universidades que cobram US$ 40 mil por ano de cada aluno. E hoje os próprios professores acham divertida a pretensão do "preceptor" de exercer um papel político tanto no plano nacional quanto no internacional.
A classe média internacional está bem consciente dos desafios econômicos, ecológicos, demográficos e culturais que enfrenta, dispensando o auxílio de intelectuais para lhe despertar essa consciência
A genealogia do intelectual não acadêmico recua bem mais na história. Até já se apontou como pai dos intelectuais o misantropo de Molière, essa criatura moralmente cândida, que se sente deslocada na sociedade por desprezar a hipocrisia e a agressividade nela reinantes. Em meados do século 18, indivíduos cultos que se julgavam vítimas da sociedade começaram a intitular-se "philosophes" e a atribuir sua excentricidade e seu sacrifício a uma vocação para "conduzir a sociedade através da noite, guiando-se pela tortura chamejante da verdade", segundo propõe Diderot na "Enciclopédia". E esse seria precisamente o papel dos "philosophes" consagrado pela Revolução Francesa. Cem anos depois, já na ambiência histórica do fim-de-século, a visão do "philosophe" como um líder nato se reduziu a uma nova autodefinição do intelectual como aquele que assume o compromisso de ser incondicionalmente crítico, e só então a palavra "intelectual" se tornou o termo de referência. O intelectual invariavelmente crítico não mais se reputava detentor da verdade ou de valores éticos. Talvez por isso os intelectuais almejem tanto desde então se associar ao "proletariado" ou às "massas", nos quais vêem a encarnação da legitimidade moral.
Neste princípio de século 21, embora poucos intelectuais profissionais (e quase todos são também professores) admitam ter abandonado esse modelo de intelectual absolutamente crítico e marcado por uma consciência de classe, não restou muito -se é que restou algo- de sua tradição no plano político-social do mundo industrializado. A classe média internacional em sentido amplo está bem consciente dos desafios econômicos, ecológicos, demográficos e culturais que enfrenta, dispensando o auxílio de intelectuais para lhe despertar essa consciência. Não se trata de conscientizar, mas de encontrar um meio de realizar as mudanças cuja necessidade todos reconhecem.
Nós, herdeiros dos "philosophes" do século 18 e dos "scholars" do século 19, sem dúvida não nos habilitamos para o cargo de engenheiros dessas mudanças. Coube-nos, porém, pensar o que quer que se revele demasiado complexo e portanto arriscado de conceber no âmbito dos mecanismos muitas vezes precários de nossas realidades cotidianas. Noutras palavras, pensar e imaginar o que ninguém mais pensa nem imagina (justamente por não ser nada "prático" fazê-lo), acumulando assim uma reserva de pensamentos, visões e desejos não pragmáticos, mas capazes de manter a sociedade receptiva a possíveis mudanças futuras, capazes de preservar a flexibilidade social.
Opção única
Meu exasperante amigo consideraria essa descrição do papel dos intelectuais muito abstrata e fria, quando não cínica. Num dia propício, eu tentaria convencê-lo de que não nos restou outra opção: ser catalisadores da complexidade -de uma complexidade intransitiva, sem utilidade e aplicação imediatas- é tudo o que podemos ser hoje. Como meu amigo diz apreciar a literatura de língua alemã, eu poderia argumentar: minha visão afina-se com a de Robert Musil em seu incomparável romance "O Homem sem Qualidades". Quando inventou há mais de 70 anos a personagem de Ulrich, Musil criou nosso precursor ficcional, pois o herói daquele romance tem tantas possibilidades que não consegue formar uma identidade. Por um breve período, Ulrich é feliz e bem-sucedido como matemático, profissão que lhe permite e até lhe exige, conforme escreve Musil no capítulo 11, pensar de modo diferente, "cultiva[r] um pensamento diverso do das pessoas comuns". E acrescenta: "Acontece periodicamente que algo até então considerado erro de repente inverta todas as idéias ou que um pensamento insignificante e desprezado comece a dominar todo um novo reino de idéias". Infelizmente, o protagonista acaba cedendo aos insistentes convites de Graf Leinsberg, aristocrata e político influente no Império Austro-Húngaro de Musil, para ser seu conselheiro no projeto de uma celebração pública do multinacional Estado austríaco e seu imperador. O desempenho de Ulrich nessa nova função não poderia ser mais desastroso. Sua maior qualidade, a de pensar sempre no amplo leque do possível, do concebível, se transforma na inconveniente inaptidão para agir. Sob o efeito dessa experiência tão deprimente quanto banal de ser incapaz de agir pelas mesmas razões que fazem dele um pensador privilegiado, Ulrich se apaixona por sua irmã Agathe. Bonita e inteligente, Agathe não possui o fulgurante intelecto do irmão. Não mais vivendo o amor apaixonado de sua juventude, desperdiça anos num casamento com um ambicioso professor de ensino médio, tão maçante a seus olhos que não consegue nem odiá-lo. Mas Agathe toma a decisão de pôr fim ao casamento, irreversivelmente. Ulrich chama de "misticismo" o que admira na irmã, isto é, a capacidade de agir resolutamente, guiada por sentimentos intensos tanto quanto ou até mais do que por idéias e juízos.
O conselheiro perfeito teria de ser ao mesmo tempo Ulrich e Agathe; um conselheiro com o poder de análise e a intensidade de sentimentos esperados por seus clientes teria de ser uma figura andrógina
Nesse aspecto, o romance de Musil poderia escandalizar os leitores de hoje, em geral esclarecidos pelo feminismo. Como seu protagonista, o autor parece associar às mulheres e talvez apenas a elas tal "misticismo", tal confiança nos próprios sentimentos, tal sabedoria mundana e, sobretudo, tal capacidade de ação. Uma vez que já ingressei no arriscado território da controvérsia, por que não levar mais longe essa reflexão sobre a (im)possibilidade de o intelectual atuar como conselheiro? O conselheiro ideal deveria ser capaz de conjugar uma maior complexidade de pensamento a um sentimento de zelo e a uma habilidade para agir solucionando problemas. Noutras palavras, o conselheiro perfeito teria de ser ao mesmo tempo Ulrich e Agathe. Um conselheiro com o poder de análise e a intensidade de sentimentos, o ardor, esperados por seus clientes teria de ser uma figura andrógina. Para quem acredita na sabedoria atemporal de intuições arcaicas, não é surpresa alguma a existência na mitologia grega de uma personagem que parece corresponder exatamente a esse híbrido. Trata-se, é claro, de Tirésias, o famoso adivinho tebano e conselheiro que tenta ajudar a família dos reis locais com profecias, interpretações e conselhos, mas nada disso, conforme demonstra o caso de Édipo, tem grandes conseqüências práticas. A tradição mítica descreve Tirésias como personagem andrógina, condição essa explicada por diferentes versões. Segundo uma dessas variantes do mito, Tirésias encontra duas serpentes copulando, mata a serpente fêmea e em decorrência disso muda de sexo. Sete anos depois, vendo-se diante da mesma cena, mata a serpente macho e torna a ser homem. Em outra versão, mais psicológica e menos poética, Tirésias é chamado a arbitrar uma discussão entre Zeus e Hera sobre quem sente mais prazer no amor físico. Nada mais natural nessa disputa que consultar aquele que teve a experiência de ambos os sexos. Mas, ao afirmar que o prazer feminino seria nove vezes maior do que o masculino, é punido pela deusa com a cegueira. Não por acaso, durante a Primeira Guerra Mundial, preocupado com a questão demográfica na França, Guillaume Apollinaire chamou sua peça de teatro sobre um adivinho que dá à luz centenas de crianças todos os dias de "Les Mamelles de Tirésias" (As Tetas de Tirésias). Meu querido amigo irritante estaria torcendo o nariz já há algum tempo. Não por me atribuir preconceitos pequeno-burgueses (como poderia tê-los?) e muito menos por julgar que discrimino pessoas adultas com desejos incestuosos ou corpos andróginos. Mas talvez concordássemos num ponto: a androginia não é algo que alguém possa ou deva estabelecer como meta, por mais que alguns desejem ardentemente ser andróginos.
Alegoria da impossibilidade
Se a androginia não é algo a que possamos ambicionar, então Tirésias serve perfeitamente de alegoria dessa impossibilidade de os intelectuais atuarem como conselheiros. Uma existência eminentemente prática, feita de decisões e ações, é incompatível, ao menos nas atuais circunstâncias, com o tipo de vida intelectual ainda válido para nós, ou seja, aquele em que desempenhamos o papel de catalisadores da complexidade. Sem dúvida, trata-se de um papel que prima pela frieza. Mas por que desejaríamos uma vida profissional mais "calorosa"? Por que não reservar isso para as ocasiões em família, os momentos entre amigos?
Nossos alunos merecem algo melhor, outro tipo de energia da parte de seus professores. Antes de mais nada, deveríamos perguntar a eles se têm algum interesse em nossos conselhos práticos.
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Hans Ulrich Gumbrecht é teórico da literatura e professor no departamento de literatura comparada da Universidade Stanford (EUA). É autor de, entre outros, "Modernização dos Sentidos" (ed. 34). Tradução de Bluma Waddington Vilar.