Uma palestra, uma prisão, uma lembrança... por Roberto Romano
Quando o Unafisco (Auditores Fiscais) e Ajufe (Associação de Juízes Federais) me convidaram para o evento sobre os 20 anos da Constituição, meditei bastante e produzi um texto sobre... ....
Quando o Unafisco (Auditores Fiscais) e Ajufe (Associação de Juízes Federais) me convidaram para o evento sobre os 20 anos da Constituição, meditei bastante e produzi um texto sobre... ....
os juízes.
As reações irritadas começaram minutos após a leitura da palestra. Quando noticiei o fato neste Blog, incluindo alguns trechos de minha fala, alguns me escreveram mensagens eletrônicas sarcásticas, afirmando que eu dirigia a crítica para o setor errado. Outros, simplesmente ignoraram o conteúdo e a forma da exposição.
O Unafisco colocou o texto (sem as notas) em sua página da internet durante bom tempo, na página de rosto, em destaque. Agora, o texto é indicado em link na mesma página de rosto : http://www.unafisco-poa.org.br/
Não raro, as pessoas se interessam pelo que produz escândalo. Antes, os ouvidos e a vista estão fechados para assuntos gravíssimos, mas que não têm o aval da grande midia. Percebo algo assim nos inúmeros contactos que mantenho com jornalistas para ser entrevistado ou para fornecer dados teóricos, empíricos, etc. Quando começo a falar sobre os pontos mais graves, que não concedem IBOPE imediato, se os jornalistas estão diante de mim, seus olhos que vagueiam pela sala mostram, à saciedade, que eles não querem ou não podem aprofundar os assuntos.
Para "o leitor médio" basta a rama. Triste, mas é assim.
Selecionei trechos da palestra de Porto Alegre, abaixo, e os publico antes da notícia sobre os juízes presos. Primeiro ponto: juiz preso não é juiz culpado, de imediato. Um julgamento sério e justo deve ser efetivado antes da sentença. Segundo: o clamor é importante, mas ficar nele mostra hipocrisia que nos torna, sempre, vítimas do nosso próprio ressentimento. E pessoas ressentidas jamais chegarão a ser justas.
Roberto Romano
******
A festa na qual comemoramos os vinte anos da Constituição, deve passar pelo crivo dos fatos, os ditos “assuntos desagradáveis” que irritam os poderes e os assim denominados formadores da opinião pública. Quando temos a prova de que a lei impera num país ? Quando juízes asseguram os direitos, tanto no plano do indivíduo quanto no dos grupos. É naquele crivo que sabemos se a Constituição tem alma ou é letra à espera de sopro vital. No regime democrático a fonte do ânimo é a soberania popular. Se ela não existe no efetivo, o corpo do Estado não passa de uma vã estrutura somática. E conhecemos bem o jogo de palavras de origem grega sobre o puro soma e o sema. Sem o segundo, que só aparece em regime de liberdade e autonomia popular, resta o corpo morto de leis e instituições.
(...) Na República existe um retrato irônico do juiz que ronca durante os trabalhos (405c). Seria interessante acompanhar o dia a dia dos tribunais para saber quantos juízes brasileiros roncam, seja porque não escutam os reclamos do cidadão comum (o termo consagrado é leigo, como nas organizações religiosas hierocráticas), seja porque não perdem tempo para ler todas as peças dos processos, seja porque já têm, a priori, a sentença antes de ouvir as partes. Se o Legislativo responde, de um modo ou de outro, ao cidadão, se o Executivo é obrigado a fazer o mesmo, os juízes respondem, quando assumidos como prejudiciais apenas aos seus pares, em julgamentos sigilosos cujos frutos são verdadeiros arcana para o mundo civil. (...) O princípio das propostas platônicas é exposto nas seguintes frases das Leis: “No caso em que um magistrado tenha ajuizado algo de modo injusto (adikos, de errado, não reto, injusto) tratando-se dos danos de um litigante, sua penalidade diante da vítima do referido prejuízo deverá ser o dobro do valor reclamado.
E todo aquele que desejar, poderá ir às cortes comuns contra os magistrados por causa de decisões injustas, nos casos trazidos diante deles”. (846 b). A lingua usada por Platão nas sentenças citadas (ho boulómenos, “Todo aquele que desejar”) é a mesma usada nos termos legais áticos, quando se descreve uma graphé (ação) que podia ser assumida por pessoas outras, além da que foi diretamente afetada. Mas Platão é mais duro ainda. Ele prevê ações contra dirigentes por abuso judicial e administrativo. Todos os juízes, além dos dirigentes menores do Estado, seriam sujeitos a processos por violação da lei. “Nenhum juiz ou dirigente deve ser isento de responsabilidade (anipeutinos) pelo que faz como juiz ou dirigente, exceto aqueles cujo juízo é final”. No entanto, até mesmo no caso de Siracusa Platão propõe um arkhé hipeutinos basiliké, um poder real responsável (Carta Oitava, 355 e).
( ) Platão formaliza um sistema preciso de distribuição do poder judiciário sem paralelo em seu tempo. Ele difere da ordem estritamente democrática, pois não entende as cortes populares como supremas. E também diverge da oligarquia e da aristocracia, pois em sua proposta os dirigentes superiores do Estado são responsáveis e não possuem privilégios como os usufruídos pela Gerusia de Esparta, ou mesmo pelo Areópago ateniense antes de Solon. Ele planeja, portanto, algo que teve relevância estratégica no mundo moderno e determina a estabilidade política com a balança entre as forças opostas, algo fundamental em Montesquieu. É platônica a noção de uma prática de checks and balances essenciais no Estado posterior ao absolutismo. A última e importante medida a ser notada nas teses de Platão é a publicidade dos atos : “A votação deve ser pública. Durante o julgamento os juízes devem sentar-se uns perto dos outros em ordem de idade e diretamente diante do acusado e do acusador; e todos os cidadãos que possuam tempo, devem seguir os trabalhos” (Leis, 855 d).
O filósofo, diz Glenn Morrow, procura evitar algo como o sistema secreto da Star Chamber, algo usado pelos soberanos ingleses para impor despoticamente o seu poder contra as leis estabelecidas e as práticas judiciarias comuns. (...) Volto ao nosso fato comemorativo. Os senhores analisam a nossa Constituição, como ela nasceu e quais os seus obstáculos reais. Peço então o máximo cuidado com o juiz, que serve como intermediário entre a lei e os cidadãos, sujeitos legítimos do mesmo ordenamento legal
Poderíamos recitar infinitos casos brasileiros que mostram a cumplicidade de juízes com sistemas injustos ou mesmo iníquos de poder. As duas ditaduras que desgraçaram a nação no século 20 tiveram sustento em propaganda, força física, auxílio de muitos magistrados, causídicos, constitucionalistas. Passadas as formas de imposição ditatorial, com o retorno ao mando civil e advinda a Constituição cidadã, milhares de pessoas no Brasil passam por torturas, escravidão, sequestros de seus bens por planos econômicos que são verdadeiros golpes de Estado brancos, e não encontram abrigo em togas que deveriam servir para protegê-las. Vemos, por outro lado, que movimentos sociais recebem apodos infamantes de instituições que deveriam investigar sine ira et studio, mas que chegam às propostas de criminalizar movimentos sociais, sem julgamento. Quando injustiças tremendas são cometidas, é fácil acusar governos, parlamentos, exércitos, polícias. Mas é preciso ser mais prudente e verificar a culpa de todos os envolvidos, das camadas populares aos juízes. É o que afirma Stolleis, quase no final de seu pungente livro sobre o ensino jurídico na Alemanha, antes e depois do nazismo. A história do Holocausto está germinada à narrativa do ensino e pesquisa sobre a constituição, que o reflete em todos os aspectos. “Estado, ‘administração’, ‘sistema judiciário’ e o exército, estiveram envolvidos como atores diretos, ajudantes, ou como testemunhas silenciosas que apoiavam ou apenas se resignaram”.
Da lista não escapam “os inumeráveis participantes que garantiram as estruturas e permitiram que os aparelhos permanecessem operando, como por exemplo os engenheiros do Reichsbahn , os oficiais da Wehrmacht, os que sabiam de tudo nos ministérios, os juízes, os promotores, e os acadêmicos também, comentadores que traduziram a nova injustiça para os velhos princípios dogmáticos e os tornou utilizáveis numa forma percebida como ‘normal’ (...) O que eles fizeram pode não ter sido criminoso no sentido legal, mas sem suas inumeráveis contribuições para a divisão do trabalho, o crime do Holocausto não teria sido possível”. Com os exemplos do passado e do que assistimos no Brasil –basta recordar a notícia com que iniciei estas considerações– temos muitas e ponderáveis razões para exigir que o poder dos juízes receba fortes contrapesos dos demais poderes e, sobretudo, que eles sejam obrigados a prestar contas ao povo soberano. Aquele mesmo que nos textos jurídicos e nos discursos judiciários é dito “leigo” Ainda vivemos, infelizmente, no mundo hierarquizado de Dionisio Areopagita.
Nele, o cosmos natural e político vai dos seres mais próximos do divino, anjos e arcanjos e deles aos sacerdotes. Abaixo dos quais vive o laós, composto pelos mortais comuns que só merecem receber lições e governo. Esta escala sagrada foi destruída por Lutero e pelas Revoluções inglêsa (século 17), norte-americana e francesa. Parece que em muitos setores do Estado, em especial no Judiciário, ainda
Nenhum comentário:
Postar um comentário