SEIS CURIOSIDADES LINGÜÍSTICAS
José Augusto Carvalho
1 . Por que se diz “fazer ouvidos de mercador”? Na pesquisa das origens de frases feitas (Origens de anexins, proloquios, locuções populares, siglas etc. 2.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1909), Castro Lopes deu asas à imaginação, e muitas de suas hipóteses devem ser descartadas, por carecerem de explicação convincente. Tal é o caso da expressão “lé com lé, cré com cré” que ele diz ter vindo de “leigo com leigo, clérigo com clérigo”, mas não explica como o ditongo fechado da sílaba “lei” poderia ter dado ”lé”, com a vogal aberta.
Há casos de monotongação e de mudança de timbre em verbos, na pronúncia popular dos nomes homógrafos, como “róbo” (verbo roubar), a distinguir-se de “rôbo” (roubo, substantivo). Não é esse o caso de “leigo com leigo”. Castro Lopes também não explica o rotacismo (mudança de l para r) na sílaba inicial de “clérigo” (cré). Melhor hipótese é a de João Ribeiro, ao propor “lei com lei, credo com credo” (RIBEIRO, João. Frazes feitas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1908): pode ter faltado a explicação da mudança de “lei” para “lé”, mas, pelo menos, não foi preciso explicar a evolução de “credo” para “cré”. Vasco Botelho do Amaral, em Meditações críticas sobre a língua portuguesa (Lisboa: Edições Gama, 1945, p.120-l), cita, sem explicar, a locução “da mesma lé”. Seria sinônimo de “laia”?
Qualquer hipótese, nesse terreno, poderia ser tão ruim quanto as de Castro Lopes e João Ribeiro. Por que não “léu com léu, crepe com crepe” (por “nudez com nudez, roupa com roupa”)? Pelo menos nesta hipótese (que aqui apresento como contestação) não é preciso explicar a mudança de timbre. É arriscado, senão leviano, fazer conjeturas sem respaldo científico.
Está neste caso a expressão “fazer ouvidos de mercador”, que Castro Lopes explicou como corruptela de “fazer ouvidos de mau credor”, sem explicar como se deu a confusão entre “mau credor” e “mercador”, ou como se processaram as alterações fônicas. João Ribeiro acha que, na expressão, mercador é mercador mesmo, que, por gritar a plenos pulmões suas mercadorias em via pública, fez crer aos que o ouviam sua condição de mouco.
Melhor explicação, dá-no-la Orlando Neves (Dicionário das origens das frases feitas. Porto: Lello & Irmão, 1992, s.v. “Fazer ouvidos de mercador”), que atribui à palavra “mercador” uma corruptela de “marcador”, nome que se dava ao carrasco que marcava os ladrões com ferro em brasa, indiferente aos seus gritos de dor. O Diccionario do Moraes não consigna o termo marcador, mas, no verbete marcar, dá a seguinte explicação: “Pôr marca, sinal; v.g. marcar o gado com ferro quente; marcar o ladrão na testa;” o que confirma a existência da pena cruel e, conseqüentemente, a daquele que a aplicava.
Assim, o “mercador” da frase feita é corruptela de “marcador”, o carrasco surdo às súplicas alheias.
2. Por que o homem brasileiro simples chama a esposa de “patroa”? A ideia é sutil. Um patrão não é apenas um dono. O patrão é a pessoa para quem se trabalha, aquele que é beneficiado com o produto do trabalho assalariado de alguém que está a seu serviço. Ora, a esposa, que, na sociedade patriarcal, não trabalha fora de casa, é a beneficiária do trabalho do marido assalariado. Em outras palavras, a mulher que é apenas uma dona de casa é a patroa, porque o marido trabalha para ela!
3. Por que velhos são “coroas” ? – Quando houve a proclamação da República, tudo o que era imperial passou a ser sinônimo de coisa antiga. Em seu Novo dicionário da gíria brasileira (3.ed. Rio de Janeiro: Tupã, 1957, s.v. – a 1ª edição é de 1945), Manuel Viotti define coroa como gíria militar, com o sentido de “Antiguidade, a monarquia decaída”. Por força do recrutamento obrigatório dos jovens de 18 anos, que, findo o treinamento, voltam às atividades civis e difundem a linguagem da caserna, muitas palavras da gíria militar acabam adquirindo foro de universalidade. Foi o que ocorreu com “rancho”, que designa o restaurante e, por extensão, a comida ou a refeição, como em “hora do rancho”, ou o que ocorreu com batebute, corruptela do inglês battle boot, “bota de batalha”, que designa o coturno ou o chapim. Assim, tudo o que era antigo ou velho era da coroa ou, simplesmente, por metonímia, era “coroa”. Um homem velho, portanto, é antiguidade, é coroa.
4. Por que se diz “conto do vigário”? – A palavra “vigário” vem do latim vicariu-, que significa “substituto”. Isso quer dizer que o sacerdote é chamado vigário por ser um substituto do bispo, numa paróquia. O Papa é chamado de “vigário de Cristo”, isto é, o substituto de Cristo. É nesse sentido original de substituto que se chama “vicário” (com c, por ter entrado na língua por via erudita) o verbo que, numa oração, substitui outro, da oração precedente, como em “Se ele pergunta é porque não sabe”, onde o É está no lugar de PERGUNTA. A expressão “conto do vigário”, para designar um engodo, relaciona-se com o sentido primitivo do termo latino, e não com o sacerdote. Em outras palavras, “conto do vigário” é a história em que uma pessoa leva o substituto (sem valor) de algo que pretendia adquirir com vantagem. Em termos proverbiais: leva gato por lebre. Também se chama “conto do paco”. Paco veio do latim paccus ou do francês pacque (palavra originária do étimo neerlandês packe), por intermédio do lunfardo, como gíria de ladrões. Pacote é diminutivo de paco.
5. Por que “amigo da onça”? – Alguns autores fantasiam a origem da expressão popular “amigo da onça”. Magalhães Júnior, em seu Dicionário brasileiro de provérbios, locuções e ditos curiosos (4. ed. Rio de Janeiro: Documentário, 1977, s.v. amigo da onça), conta a seguinte história: um caçador mentiroso dizia que fora acuado por uma onça de encontro a uma rocha. Sem armas e sem ter como fugir, escapa dando um grito tão violento que a onça, assustada, fugiu em pânico. Ante o descrédito do ouvinte, o contador de história pergunta: “Você é meu amigo ou amigo da onça?” Antenor Nascentes, no Tesouro da fraseologia brasileira (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, s.v. amigo), conta outra história: um caçador, à beira de um abismo, encontrou uma onça. Tentou matá-la, mas a espingarda falhou. O caçador então pergunta ao ouvinte se ele imagina o que aconteceu em seguida. Este, obviamente, responde que a onça teria devorado o caçador. E o caçador, indignado, pergunta: “Você é meu amigo ou amigo da onça?” São histórias fantasiosas sem respaldo documental.
Ora, “onça”, na expressão em estudo, não designa o felino, porque está no sentido clássico de “miséria”. “Estar na onça”, para João Ribeiro (Frazes feitas, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1908, p. 125-6) é estar na penúria. A libra tem doze onças. Estar na undécima onça é estar quase na miséria. João Ribeiro refere-se à expressão também em italiano: “su l’undic’once”, isto é, na undécima onça, quase na miséria. Macedo Soares (Dicionário brasileiro da língua portuguesa. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1954, vol. I; 1955, vol. II, s.v. onça) explicita que “estar na onça” é “loc. dos estudantes, não ter vintém”. Quem só tinha uma onça procurava guardá-la ou evitava gastá-la, para não ficar a zero. Tornou-se, portanto, compulsoriamente, um “amigo da onça”. Com o tempo, “amigo da onça” passou a sinônimo de “amigo da miséria” alheia, como o personagem que o humorista Péricles de Andrade Maranhão imortalizou nas páginas da revista O Cruzeiro.
6. Por que o mau motorista é barbeiro? – Viterbo afirma que barbeiro era o oficial “que se ocupava de alimpar açacalar, dar esmeril e guarnecer as espadas, adagas, etc.” (VITERBO, Joaquim de Santa Rosa. Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal se usaram e que hoje regularmente se ignoram. Edição crítica de Mário Fiúza. Porto: Civilização, 1965, s.v. Barbeiro das espadas.). O dicionário de Moraes Silva diz que barbeiro é o “Homem que faz as barbas, e as rapa, corta ou apara.” E conclui: “Há barbeiros de lanceta, ou sangradores, outros dantes concertavão as espadas limpando-as, e afiando-as, alias alfagemes” (s.v. Barbeiro). No seu Glossário crítico de dificuldades do idioma português (Porto: Simões Lopes, 1947), Vasco Botelho do Amaral (s.v. Barbeiro) cita Gonçalves Viana, que informa que, “sobretudo, o barbeiro tinha amplas funções de médico de aldeia, aplicando mezinhas e sanguessugas, fazendo sangrias, cortando calos e tirando dentes” e que “os barbeiros da aldeia tinham, além de outras, também funções de sangradores e de cirurgiões”. Vasco B. do Amaral lembra um anexim popular de sua época: “quem lhe dói o dente busca o barbeiro”. Ora, quando um barbeiro era infeliz em alguma missão diferente daquela que lhe garantira o nome da profissão – ater-se à barba e ao cabelo – o povo lembrava que o insucesso da empreitada era “coisa de barbeiro” e não de médico ou de dentista especializado. Por extensão, era chamado barbeiro quem fazia de modo infeliz alguma coisa para a qual não era profissionalmente preparado. Um motorista, consequentemente, é barbeiro quando realiza algum tipo de manobra que denota a sua inabilidade ao volante ou a sua falta de vocação como condutor de veículo
(José Augusto Carvalho é Mestre em Lingüística pela Unicamp e Doutor em Letras pela USP)