TUCA PUC 1977
EU QUASE QUE NADA SEI. MAS DESCONFIO DE MUITA COISA. GUIMARÃES ROSA.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

A nível de....


A NÍVEL DE, FRENTE A, TV A CORES
José Augusto Carvalho

Professor de Linguística da Universidade Federal do Espírito Santo
Seria correto dizer “a nível de”, “frente a” ou “face a” e “TV a cores”?
Antes de responder, gostaria de fazer duas observações. A primeira diz respeito à construção de locuções prepositivas que têm um substantivo como núcleo. A norma recomenda que, nesses casos, deverá haver sempre duas preposições, uma antes e outra depois do substantivo. Exemplos: com respeito a, a respeito de, a favor de, em relação a, a propósito de, em função de, em atenção a, de acordo com, com referência a, com vistas a, em nível de, em função de, a propósito de, etc. Portanto, as locuções prepositivas “face a” e “frente a” não existem. Como “face” e “frente” são substantivos, a formação das locuções não pode prescindir da preposição antes do núcleo. Portanto as locuções corretas são “em face de” e “em frente de” ou “em frente a”. As únicas locuções prepositivas com núcleo substantivo e apenas uma preposição no fim são, que eu saiba, “graças a” e “mercê de”, que são sinônimas. Esta última, com sentido de “ao capricho de”, tem também duas preposições ladeando o núcleo substantivo: “por mercê de”. A explicação para essas exceções, parece-me, prende-se à mudança de sentido ao longo do tempo. A expressão “graças a” é exceção talvez por causa da alteração semântica do latim “gratia”, agrado, para “favor” e “reconhecimento” (“dar graças a Deus”), que se manteve no sinônimo “mercê”: “mercê de Deus” (“pela mercê de Deus”). Assim “graças a” vem de “graças a Deus”, uma parte da expressão “dar graças a Deus”. As formas “graça” e “mercê” (esta, em sua tradução francesa, “merci”, denota agradecimento) estão na origem das formas respeitosas de tratamento de 2ª pessoa: Vossa Mercê (port.), Vuestra Merced (esp.), Lei (=ela, italiano), Sie (= elas, alemão). Em alemão, a fórmula “Vossa Mercê” era traduzida no plural: Eure (por Euer) Gnaden, isto é, “vossas graças”.
A segunda observação diz respeito ao emprego das preposições. As preposições não têm valor semântico. São palavras relacionais, isto é, apenas estabelecem relações semânticas. Não significam absolutamente nada, sozinhas. Portanto é difícil estabelecer regras para o emprego das preposições. Dizemos “andar a cavalo”, com a, mas “andar de burro”, com de; dizemos “ir a pé”, com a, mas “ir de bicicleta”, com de. Dizemos “à tarde” e “à noite”, e não podemos dizer “à manhã”, mas apenas “de manhã”, com de. O mais que se pode fazer é tentar estabelecer uma padronização. Isto é: assim como dizemos, no Brasil, “tevê em preto e branco”, é melhor dizer “tevê em cores”, e não “a cores”. Isso não significa que se deva condenar a expressão “tevê a cores”, ou que não se possa dizer “tevê a preto e branco”. O poeta alentejano José-Augusto de Carvalho, autor de uma dezena de livros, como Arestas vivas (1980), Sortilégio (1986), Tempos de verbo (1990), Vivo e desnudo (1996), A instante nudez (2005), entre outros, no livro O meu cancioneiro, que tive o privilégio de prefaciar, escreve, no poema Natal (p. 46): “Festejai, que é de bom tom! / Vinte e quatro horas de amor! / Abaixo o mau! Viva o bom! / Depois, novamente a dor, / a preto e branco e sem som.”
No caso de “a nível de”, as gramáticas condenam indevidamente a locução, porque se trata de galicismo (ex.: “Il est à mon niveau”, isto é, “ele é do meu nível” ou “está no meu nível”), e ensinam que se deve dizer “em nível de”. Ora, se formos condenar galicismos, temos de evitar dizer abajur, avalanche, flamboyant e inúmeras outras palavras. E teremos de condenar também – segundo Cláudio Brandão, em sua Sintaxe Portuguesa (Belo Horizonte: Ed. do Autor, 1963, p. 559-60) – certas expressões de uso corrente que também são galicismos, como “galinha ao molho pardo” (em vernáculo deveria ser “galinha em molho pardo”), ou “trabalho a fazer” (o ideal seria “trabalho para fazer”), ou “equação a duas incógnitas” (por “equação com duas incógnitas” ou “de duas incógnitas”), ou “solução à base de sal” (em vernáculo diríamos “em base de sal” ou “com base em sal”). Portanto “em nível de” é construção preferível, por ser mais portuguesa, mas isso não significa que a expressão “a nível de” esteja incorreta. Em outras palavras: diga “em nível de”, mas procure não condenar quem disser “a nível de”, que também é forma aceitável.

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