E uma palestra sobre os "colegas"...
Intelectuais e Universidade do BLOG de Roberto Romano
Prof. Roberto Romano
Palestra proferida em 18 de junho de 1998, em debate promovido pela Associação de Docentes da UERJ
Agradeço o convite para falar aos senhores, nestes momentos incertos da história mundial e da vida universitária em nosso país. Apreensivos, seguimos os eventos no Japão e nas terras que, via incremento técnico e muito ensino, buscavam afirmar-se enquanto indivíduos autônomos na cena política cosmopolita. Enquanto assistimos esta peça, em nosso ouvido algo murmura, cada vez mais foi-te : "De te fabula narratur".
Gostaria, entretanto, de iniciar nossa conversa num ponto pouco discutido nos debates sobre a crise acadêmica de hoje. Num primeiro instante., quero recordar alguns elementos da teoria hegeliana sobre os intelectuais, supostos portadores da universalidade. Depois, passarei à análise heideggeriana do equívoco no trato entre pesquisadores entre si e com o público. Finalmente, tentando ser breve e não demasiado injusto, discutirei algumas atitudes diante da política universitária no Brasil. Claro, uma pretensão assim só pode fracassar. Mas prefiro cair no erro, do que definir um acerto que, na verdade, é impotência frente ao estabelecido e à vontade dos mais fortes, no caso, os nossos ex-colegas que hoje desgovernam a república em nome do "realismo" político bruto.
Indica-se um fato como trivial: os atuais governos brasileiros, de Brasilia aos Estados e municípios, são movidos por universitários. Eles agem, não raro, enquanto monolito ideológico, na tarefa de "flexibilizar" direitos históricos dos grupos e indivíduos. A maioria deles trabalha no desmonte das instituições públicas e defendem um "Estado mínimo", privatização nem sonhada pelos mais ferrenhos adeptos do liberalismo. Mas todos, e não vejo exceção infelizmente, cuidam muito bem de seu lugar no mercado e no que resta das formações políticas. Isto traz mesmo alguns paradoxos cômicos, como os vividos por acadêmicos que apregoam "moralidade" e "razão", cortando direitos. Quanto à aposentadoria, eles mesmos a obtiveram jovens. Este ridículo vai do presidente da República aos seus auxiliares imediatos.
0 que é um "'intelectual"? Pergunta antiga, que retroage, pelo menos, à Renascença. Nos séculos 15 e 16, de forma notória, indivíduos começaram a vender sua pena e sua mente aos governos, igrejas, e às pessoas ricas, o futuro embrião da "sociedade civil". Toneladas de papel foram movidas para descrever a figura do escritor e do funcionário. Nos séculos 17 e 18, eles começaram a se tornar independentes do modelo descrito por Jacques le Goff, no ensaio sobre "universidade e poderes " (18 Essais sur le Moyen-Âge), Alí, o grande ,historiador mostra que os acadêmicos, nos tempos da universidade nascente, tinham como horizonte de emprego as também nascentes burocracias da Igreja, do Rei, ou o serviço contábil para a burguesia mercantil. Nos séculos 15 e 16, a Igreja e os Estados nacionais, estes já estabelecidos em grandes linhas, forneciam trabalho para os intelectos brilhantes, em tarefas às vezes nobres, como foi o caso de muitos juristas dedicados às humanidades, ou vis, como ocorreu com os inquisidores, os docentes das universidades de teologia, e os que racionalizaram o mando absoluto. Erasmo e Lutero mostram todo o potencial explosivo dos grupos acadêmicos. Ambos, para milhares e milhares de seguidores, representaram a quebra com os padrões tradicionais de poder e autoridade. E só conseguiram levar a cabo suas finalidades com decidido apoio dos príncipes. Nos séculos 17 e 18, esta dependência se manteve, apesar de se perceber, com nitidez, o esboço do "intelectual escritor", pesadelo dos governantes que os apoiavam. Os nexos entre enciclopedistas como Diderot com os "déspotas esclarecidos", entre eles Frederico II e Catarina I, são conturbados. 0 namoro inicial terminou em ruptura barulhenta. Diderot chamava Frederico e Catarina de tiranos, enquanto a última culpou, com melancolia, seu filósofo predileto pela morte de Luiz XVI. 0 século 19 trouxe o que Paul Benichou chama "a sagração do escritor". Os vínculos preferenciais deixam de ser, imediatamente, entre intelectual e reis, papas, duques, comerciantes, para se deslocarem rumo ao "povo". Não retomo, aqui, as análises de Richard Sennett, em 0 Declínio do Homem Público (Cia das Letras) sobre Lamartine, um dos primeiros intelectuais a dirigir-se, com desprezo e sucesso, às massas. Lamartine representa algo importante porque, de sua atitude, surgem o que hoje conhecemos como "demagogo da mídia" e, de outro lado, "o intelectual empenhado". Tudo, na oratória de Lamartine era produzido de modo artístico. Seus discursos, ele os ensaiava diante do espelho, até chegar a sugerir com perfeição "expontânea simplicidade", "sinceridade". Ele, Lamartine, sabia o que se passava. O povo, e isto o orador dizia às massas, sendo por elas apIaudido, era composto de imbecis. Uma distância sublime se estabelece entre o intelectual, que entra na política para dirigir as multidões, e estas últimas. O fascínio deste tipo mostrou seus limites : enquanto Lamartine obteve 17 mil votos, na eleição presidencial de 1848, Napoleão o sobrinho recebeu 5 milhões e 500 mil. Os intelectuais, no período, assumem uma liderança contra a opinião pública vigente. 0 caso extremo é o de Emile Zola, no processo Dreyfus. Com o jornal e argumentos humanitários, Zola desafiou o antisemitismo francês, forte até hoje, e instituições poderosas e conservadoras, como o judiciário e o exército. Deste modo, forjou-se a imagem do intelectual "crítico" dos preconceitos (coisa feita desde o Renascimento, mas acentuada nos séculos 18 e 19), liberto das amarras dos poderes (civis ou eclesiásticos), unido ao povo, mas acima dele, assumindo uma labuta pedagógica de "esclarecimento" político (em "Que fazer?"' , texto paradigmático, encontramos este modelo de pedagogia tecnicamente perfeita). O intelectual representa um novo sacerdócio, unindo o povo ao seu destino, nos planos nacionais e na História do mundo.
Comentando esse tipo, que ainda agora habita, como fantasma, boa parte das falas sobre os acadêmicos, Gérard Lebrun lembra o dito de Schumpeter : os intelectuais "Acorrem de todos os cantos da sociedade, e grande parte das suas ações consiste em se combaterem entre si e em formar as vanguardas de interesses de classe que não são os seus". Donde, nesta representação, tem-se como resultados : 1) os intelectuais não compactuam com o poder, nem o exercem. 2) eles, como porta vozes da opinião pública, seja qual for a sua profissão (advogados, médicos, professores, etc.) podem tratar de qualquer assunto. 3) 0 mais puro intelectual é o que se dirige ao público pelos jornais, como crítico dos governos estabelecidos. Mais consciente do que os governantes e do que o povo, o intelectual nunca sossega numa atitude ortodoxa, e quando faz isto, é porque deixou de ser intelectual e passou ao nível, desprezado na república das letras, de funcionário e racionalizador dos vários mandos. Há esta tendência, sempre presente, de passagem. Quantos intelectuais aderiram ao nazismo, como Heidegger, para manter uma reitoria, uma administração, etc. ?
Quantos intelectuais submeteram-se ao Partido Comunista, para manter um lugar na Academia de Moscou, mesmo por tempo limitado? Mas a prática dos cerebrinos é, de modo geral, crítica dos poderes. Como acabar com esta gente? Responde com ironia Gérard Lebrun: "a única terapêutica eficaz é dar o poder ao Partido Comunista. O problema é insolúvel ... na democracia burguesa, o intelectual não pode deixar de ser alguém que protesta"1.
Essas linhas foram escritas antes do fim da URSS, e do comunismo oficial. Mas Lebrun coloca o dedo na ferida. Como os senhores se lembram, Lamartine fascinou a massa, mas conseguiu parcos sufrágios. "Não são aplausos que faltam aos intelectuais, mas sim votos aos partidos que eles apoiam ( ... ) uma coisa é formar o discurso político, outra é ter poder sobre a vida pública" . Como disse, estas linhas foram redigidas em 1979, nos estertores da ditadura militar e nos inícios da vida "democrática". Naquela época, os intelectuais poderosos eram sobremodo os conservadores, como Delfim Netto, Roberto Campos, e outros. A "esquerda" sem votos era composta por muita gente. Como os senhores sabem, as várias esquerdas, e as ex -esquerdas, hoje, possuem milhões de votos. E parece,) finalmente, que o ferrão foi-lhes retirado na luta política. Com raras exceções, os cerebrinos dedicam-se à faina de atingir ou manter-se nos gabinetes poderosos, impondo restrições cada vez mais duras aos críticos.
Voltemos a um traço importante, assinalado por Schumpeter, sobre os intelectuais: a sua emulação constante. Inexistiria o mundo do espírito sem a luta permanente, conduzida pelos escritores e cientistas, contra todos os seus "pares". Se existe oxímoro saboroso é o que reza existir uma "comunidade universitária". Esta é a tese hegeliana. O Espírito, o universal, abarca todos os indivíduos. Mas, dentre estes últimos, os intelectuais pretendem atingir o conceito mesmo do universal, com ele confundindo a sua pessoa particular. Deste modo, ser "crítico" significa anunciar, sem interrupção, a "verdade" do próprio discurso, e a mediocridade alheia. Este tipo interessante de pessoa forma-se na luta para "ter razão" em todos os níveis da cultura, das ciências à ética. Mas como o universal concreto, o Eterno, não se abala com esta guerra de formigas (satirizada pelo riso amargo de Luciano, de Erasmo., de Diderot, de Voltaire, de Swift, de Joyce, de Kafka .... ) os intelectuais, rápido, dão-se conta que suas "verdades" limitam-se ao tempo, e com ele desaparecem. Donde a invenção de conceitos fantasmagóricos: a hispóstase das verdades na Verdade, em maiúscula, seguida pela Beleza, pelo Bem. Assim, os intelectuais nunca se interessariam pelas pequenas coisas, eles se dirigem ao Absoluto. Donde, imaginariamente, seria uma perda de substância, de sua parte, "tomar partido", ou se prender a esta ou aquela causa "mesquinha". Todos os intelectuais autênticos julgam-se puros, dignos de unirem seu nome às divindades acima indicadas., ou seja, ao verdadeiro com maiúscula, ao belo, ao bom.
Mas como todos estão imersos no tempo, e todos querem, simultaneamente, atingir o Absoluto, todos passam a maior parte de seu trabalho procurando destruir a obra dos demais.
Sua realização, ilusória, passa pelo suicídio coletivo. Rápido, todos descobrem que o "desinteresse" alegado é uma impostura (Betrug). Assim, o intelectual, sobretudo o que se deseja grande e célebre", não se interessa de fato pela sociedade, pelo Estado, etc. Ele sonha com o "sucesso de sua obra; ele quer atingir uma 'situação', ter um 'lugar', um 'posto', no mundo dado (natural e social). Assim, ele não se sacrifica pelo Verdadeiro, pelo Belo, pelo Bem (...) o universo ideal que ele opõe ao mundo é fictício. O que o intelectual oferece aos outros não possui valor efetivo; ele os engana, pois. E os outros, admirando ou invectivando a obra e o autor, o enganam por sua vez, pois não o 'levam a sério' . Eles enganam a si mesmos, pois acreditam na importância de seu ofício (a 'elite intelectual'). A república das letras é um mundo de ladrões roubados". Na vida política e na vida biológica, para Hegel, a "luta mortal" é um início inelutável. Mas na "pseudo-sociedade da república das letras, o desejo de reconhecimento é apenas uma sede de celebridade: basta ser 'conhecido'". Donde, ainda segundo Hegel, os intelectuais, neste clima e nesta corrida, devem chegar a dois pontos, quando deixam as lutas entre si, e perdem a emulação puramente teórica, e as paixões ligadas à síndrome da celebridade: ou eles se tornam tirânicos (querendo, ao se instalarem no poder, impor pela força leis não ,válidas para o todo social), ou se abismam na anarquia, negando abstratamente o Estado, as leis.2
Ou seja: o "reino ,animal do espírito" desemboca na positividade do acadêmico que renega sua obra e sua luta pelo reconhecimento científico, e no exercício, tirânico como poucos, do poder, ou se dirige para a negatividade pura, jamais assumindo a direção do Estado como algo seu. Em ambas as situações, o fato de "ser conhecido" é estratégico: como analisa Elias Canetti, importa, acima de tudo, "que o nome seja pronunciado". Enquanto alguém se preocupa, diz o mesmo autor, "com os donos das bocas que dizem nomes, enquanto as recruta, as corrompe, as incita ou fustiga, ainda não é totalmente célebre. Neste caso, ele está apenas preparando as bases para o seu futuro exército de sombras. Uma vez atingida, a glória pode permitir-se não ter preocupações com os demais, sem que perca nada com isso. As diferenças entre o rico, o detentor do poder e o famoso podem ser resumidas mais ou menos assim: o rico coleciona montes e rebanhos. No lugar destas coisas está o dinheiro. Os homens não lhe interessam; para ele basta o fato de poder comprá-los. O detentor do poder coleciona homens. Os montes e os rebanhos nada significam para ele, a não ser que necessite deles para a aquisição de homens. Mas ele quer homens que vivam, para arrastá-los ou para levá-los consigo à morte. Os que nasceram antes e os que nascerão depois têm para ele importância secundária. O famoso coleciona coros. Destes, quer escutar apenas o seu nome. Eles podem estar mortos ou vivos, ou podem nem ter nascido ainda; tudo isto lhe é indiferente. Basta que sejam numerosos e que tenham sido exercitados em repetir seu nome".
Outro elemento a ser considerado na prática dos intelectuais em busca de fama ou poder, ou fama, poder, riqueza, além da luta aberta de todos contra todos (tudo é pior quando esta luta torna-se escondida) encontra-se no equívoco, sempre eminente na própria comunicação nos campi, nos laboratórios, etc.
Heidegger, apesar de sua opção nazista, matéria de intermináveis debates hoje, soube como ninguém, segundo o seu crítico Lukacs, descrever comportamentos filistinos da classe média e dos intelectuais. No século 18, e depois de forma constante, a filosofia buscou arrancar o equívoco da linguagem comum e dos enunciados científicos. No "Plano de Universidade para o governo da Rússia", Diderot imaginava a geometria como "a melhor e a mais simples de todas as lógicas, a mais própria para fornecer inflexibilidade ao juízo e à razão". Os mal-entendidos da linguagem seriam reparados pelas matemáticas: "se nossos dicionários fossem tão bem feitos ou, o que é o mesmo, se as palavras usuais fossem tão bem definidas quanto as palavras 'ângulos' e 'quadrados', sobrariam poucos erros e disputas entre os homens. É a este ponto de perfeição que todo trabalho sobre a língua deve tender.
Comunicação científica e social ganham, com o modelo matemático, corretivo da linguagem. Sem translucidez na escrita e na fala dos acadêmicos, a vida social submerge na falta de sentido e no palavrório. "Pense bem, meu amigo", diz Diderot, "alguns sábios, alguns bons espíritos se instruem através de escritos e nas bibliotecas, retificando pela reflexão, a leitura e a conversa, o vício de suas idéias; o erro, entretanto, permanece e circula nas ruas, nos templos, nas casas, com as imperfeições do idioma. O espírito renovou-se e é sempre a mesma língua que se fala. É portanto o idioma que precisamos reinstaurar, trabalhar, ampliar, a menos que queiramos, como na China, fazer o sapatinho da criança servir no pé do homem". E mais: "é do idioma de um povo que precisamos nos ocupar, quando queremos dele fazer um povo justo, razoável, sensato. Isto é tão importante que, se o senhor refletir um momento sobre a rapidez incompreensível da conversa, o senhor conceberá que os homens não profeririam vinte frases num dia, se eles se impusessem a necessidade de ver distintamente em cada palavra por eles dita qual é a idéia ou a coleção de idéias que a ela se apegam".
Apesar dessa confiança na matemática e na correção lógica da língua, Diderot confessa a nossa impotência nesta tarefa: "As palavras, desde que bem definidas, uma questão logo se propõe". Tal é o pressuposto de uma cura da linguagem. "Este é um erro" enuncia Diderot. E não se pense, acrescenta, tratar-se apenas de unir experiências à querela. Assim, a briga muda apenas de objeto, "a dificuldade aumenta a tal ponto que alguns homens ajuizados disseram que os fatos nada provam, tamanha era a pena para constatar os fatos e aplicá-los à questão". E se fosse escrito o célebre dicionário, onde se fixasse a "verdadeira" significação das palavras? Resposta de Diderot: "este dicionário bem feito acabaria com muitas disputas, mas não com todas. Os geômetras as mantêm entre si, elas subsistem desde longa data, e não sei quando terminarão .
Em Ser e Tempo, no § 37, Heidegger analisa o equívoco, não apenas entre cientistas e público, mas no interior da própria "comunidade acadêmica". Primeiro, a constatação banal: o saber, na era de sua divulgação máxima, tornou-se dificilmente distinto das suas várias expressões vulgares. Com a imprensa, "tudo assume a aparência de ter sido o verdadeiro captado, colhido, expresso, mas no fundo, nada o foi". Num mundo onde a informação se acelerou ao máximo, a parolagem dogmática de intelectuais e jornalistas é a norma : "Cada um, não apenas conhece e discute o que se passou e o que está vindo, mas cada um sabe também falar sobre o que deveria ocorrer, sobre o que ainda não ocorreu, mas deveria 'evidentemente' ser feito. Cada um sempre farejou e pressentiu de antemão o que os demais farejararm e pressentiram. Este modo de seguir pelos traços e pelo ouvir-dizer ... é insidioso o bastante para que o equívoco faça entrever ao existente possibilidades que, ao mesmo tempo, ele abafa no germe".
Na sociedade da informação, os termos científicos e acadêmicos circulam de modo imediato. Assim, "todos" sentem-se em condições de falar sobre a pesquisa e suas dificuldades, porque "todos" ouviram dizer ou seguiram os traços nas revistas, nos manuais, etc. Deixa de haver distinção entre conceitos originários e palavras, e os que só "conhecem" estas últimas, imaginam ser fácil a tarefa de quem se dedica à produção dos primeiros. Frente a um trabalho científico, apresentado em sua facilidade enganosa, o público curioso e, dentro dele, indivíduos, podem dizer sem muitas invectivas "Isto? Nós também poderíamos fazer!". Se "qualquer um" faz o trabalho do cientista e do intelectual, por que se gasta tanto dinheiro em seu labor? Desperdício...
Mas, continua Heidegger, ainda há pior: o tempo é essencial no trabalho da pesquisa. Vimos isto, por outro prisma, em Hegel. Agora, temos "o silêncio reservado da execução ou do verdadeiro fracasso" da pesquisa. Nela, ocorre "um. tempo diferente que, medido pela régua do tempo público, é fundamentalmente mais lento do que o do palavrório, o qual vive muito mais rápido". No intervalo entre o tempo lento da investigação, e a rapidez geral dos que "já sabem" (os jornalistas são mestres nesta arte de ridicularizar e menosprezar a importância do saber original) dá-se o choque: os cientistas ainda estão procurando, e os "informados" pelos meios de divulgação já se colocam a falar da última novidade. Deste modo, os investigadores, para o público mediatizado, "chegam sempre muito tarde" frente ao consumo das "últimas".
Afirma Heidegger, e com razão, que "a parolice e a curiosidade entretêm seu equívoco, para que a obra autêntica e nova pareça, quando surge na opinião pública, já ultrapassada. Esta obra só manifestará seu valor heurístico após ter mostrado a ineficácia do palavrório que a camuflava, e após ter-se apagado o interesse 'comum' que ela suscitava".
Em pleno fervor do existencialismo, dos estruturalismos, dos desconstrucionismos, enfim, em todo fervor público, dentro e fora dos campi, os pesquisadores autênticos estão sempre "atrasados" face aos divulgadores. Quando um antropólogo analisa, durante anos, as estruturas lógicas e os modelos gerados por Levi-Strauss, e finalmente publica um texto sobre as suas dificuldades e vantagens, os rápidos consumidores de novidades "já estão mais avançados", ridicularizando o cultivador de velharias epistemológicas. Assim, de barulho em barulho, os faladores e curiosos criam muita animação, diz Heidegger, mas no seu mundo, efetivamente, "nada se passa".
A curiosidade e o falatório operam passando ao largo da pesquisa paciente, e se dedicam às novidades. Mas, além disto, os curiosos não se detêm tanto nas "idéias" de fulano ou sicrano, famoso no mundo acadêmico e na mídia. Eles seguem, céleres, para a pessoa e os atos particulares dos ditos personagens. Tanto o público, quanto os "pares", passam a "vigiar o outro para ver como ele se comportará e o que ele vai dizer sobre isto ou aquilo. O ser em comum no modo do 'se', de jeito algum é uma 'coexistência' indiferente de indivíduos isolados mas, pelo contrário, um modo inquieto e equívoco de se espiar reciprocamente, um jeito secreto de todos para tocaiar as palavras de cada um. Sob a máscara do 'para outrem' joga o ser-contra-o-outro".
Deixemos de lado os equívocos trazidos pelo charlatanismo, mantido por cientistas e acadêmicos que usam títulos e curricula antes dedicados aos laboratórios e bibliotecas, como é o caso dos exemplos narrados por Michel de Pracontal (L'imposture Scientifique en Dix Leçons. Paris, La Découverte, 1986). Neles, também se define um problema grave de comunicação, pois a maior parte dos abusos ocorre em campos "onde a fragmentação do saber e da prática científica se coloca de modo agudo, nos domínios onde apenas um número muito restrito de especialistas pode avaliar a pesquisa e, evidentemente, uma fraude eventual será muito difícil de detectar, porque poucas pessoas são capazes de juízo nestes casos" (Pracontal, página 199). Os vínculos entre saberes estão imersos em equívocos, de tal modo que a média dos instruídos não consegue captar até mesmo as bases elementares do que ultrapassa a sua "especialização". Esta é a atitude descrita, de modo preciso, por Heidegger: no palavrório "cultivado", "a linguagem utilizada por quem a pronuncia, já inclui uma certa compreensão média; é por isto que se pode, numa larga medida, entender um discurso comunicado, sem que o ouvinte se coloque numa relação de compreensão original do que é referido pelo discurso. Apega-se menos a compreender o ente de que se fala e não se ouve... os enunciados mantidos. Compreende-se a palavra, mas se compreende apenas de modo aproximativo e superficial o objeto da palavra; os interlocutores ouvem a mesma coisa, porque o que se diz se compreende em seu sentido comum, mediano" (Ser e Tempo, § 35, eu sublínho,RR). A mídia opera deste modo, como a propaganda: pela repetição. Continua Heidegger: "Como o discurso perdeu, ou nunca engendrou, o nexo com o ser original do ente sobre o qual se fala, a comunicação que ele estabelece não consiste em se apropriar originalmente deste ente mas apenas em transmitir e repetir este próprio discurso. Semelhante discurso se estende a ouvintes cada vez mais numerosos e toma uma caráter autoritário. As coisas são assim, porque se diz. Esta repetição e esta transmissão puras e simples, se agravam constantemente, até à perda de qualquer fundamento, a cisão inicial da palavra e do seu objeto, constituem o palavrório. Este não se restringe apenas à repetição verbal, mas se prolonga na palavra escrita como 'escrito'. A repetição não se fundamenta, pois, em primeiro lugar no ouvir dizer. Ela se nutre de leituras puramente maquinais. A compreensão média do leitor nunca poderá decidir sobre o que foi produzido e conquistado originalmente e sobre o que é repetido. Bem mais, esta compreensão média recusa semelhante distinção; ela não precisa disto, porque ela compreende tudo".
Esse é um problema grave do equívoco intra e extra atividade de pesquisa. Desde Platão, chegando a Espinosa, o conhecimento mais baixo é o por "ouvir dizer". Heidegger, na era da imprensa, indica que este conhecimento é transposto para as letras dos jornais e dos livros destinados à "divulgação". O leitor, deste modo, tem certezas e descarta a errância de quem pesquisa. Assim, ele não pode saber a dificuldade, as dúvidas, de quem investiga os objetos. Ele lê as palavras, as compreende na sua mediania. E considera fácil todo o campo discutido. A garrulice jornalística, pelo mecanismo da repetição, reforça a distância entre o dito e o que nele se visa. A fala torna-se cada vez mais desprovida de sentido original e autoritária. É assim, porque é assim. O creme de dente, o modelo econômico, a medida política, tudo isto e muito mais, está provado, "é científico". A propaganda respira este dogmatismo.
Judith Schlanger (Les Metaphores de l'0rganisme, Vrin,1971) no início de seu trabalho sobre a comunicação entre cientistas, e destes com o público medianamente cultivado, analisa um artigo de "divulgação" saído no prestigioso jornal Le Monde, a respeito das descobertas de François Jacob. Ela mostra como o texto jornalístico constitui uma espécie de "bricolage" de termos de origem científica, técnica, administrativa, etc. Deste modo, o administrador de empresas, fica sabendo que a célula é "regulada administrativamente" e assim por diante. Este problema da comunicação com o público, cujos conhecimentos são parcelares, duplica-se na própria comunicação entre os cientistas e acadêmicos. As percepções estabelecidas, não raro, operam como uma rede que impede ou obstaculiza as transferências de significados, forçando o cientista, à semelhança do poeta, a inventar linguagens, cuja captação vai além da média de seus pares (cf. da mesma autora, L'Invention intellectuel, Paris, 1983 e "Dire et connaitre", in Meyer, M. (ed.) De Ia Métaphisique à la Rhétorique. Bruxelas, 1986, páginas 95-101). Se é difícil e árdua a tarefa de comunicar novos conceitos e técnicas fundamentais entre os cientistas e acadêmicos, e se a mídia educa o público para que este considere "conhecidos" elementos do saber que, pelo contrário, são alvo de custosa (em todos os sentidos, econômicos e espirituais) busca, também no relacionamento entre cientistas e artistas existem ruídos graves de comunicação, equívocos.
Um caso exemplar, neste sentido, é o MIT. Fundado em 1865, apenas em 1945 surgiram propostas de ensino, naquela instituição, de elementos culturais e artísticos. Esta propostas foram estendidas até 1970. História da arte, ciências humanas e sociais, foram disciplinas estabelecidas para educar os olhos dos futuros engenheiros, ou como diz o Relatório Hayes (o de número 1 sobre estes planos) : "Eu disse muitas vezes que um grande número de rapazes e moças diplomados em nossas instituições eram visualmente 'iletrados'". Note-se que muitos cientistas que propunham as novas disciplinas estiveram implicados em experiências nucleares, como Cyril Stanley Smith e Philip Morrison.
Ocorre que um instituto de engenheiros ligado à industria e à produção militar, dificilmente pode romper estes vínculos. Hoje, como enuncia Judith Epstein ("Contrechamp outre Atlantique: les dérives d'une politique". Autrement. Número especial : "Chercheurs ou Artistes ? Entre Art et Science, ils rêvent le monde". Outubro, 1995), no MIT "alguns artistas são convidados a utilizar as tecnologias, sobretudo em música. Eles são poucos, mas seu estatuto é muito mais oficial do que antes. Ele se tornou mais próximo do usufruído pelos cientistas; eles são reconhecidos e integrados na instituição : são artistas-engenheiros. Este estatuto se justifica em parte pelo fato de existir uma aprendizagem técnica relativamente aprofundada indispensável para o uso do computador. Mas tem-se a clara impressão de que os artistas afiliados ao Media Lab são convidados para estar ao serviço da tecnologia, para mostrar quais aplicações podem dela serem feitas. A arte tornou-se um alibi. É claro que não se trata de um reconhecimento da arte enquanto tal, mas de um reconhecimento da utilidade das aplicações artísticas como um traço, entre outros, dos rendimentos e aplicações tecnológicas".
Deste modo., "O MlT retornou ao que era antes da última guerra: um instituto de formação de engenheiros ligado à indústria e à produção militares. As virtudes morais da estética não são mais invocadas ali. Os discursos sobre a necessidade de humanizar a sociedade tecnocrática e alargar a sensibilidade do engenheiro não têm mais vez na fala da administração". Além disto, "as explorações informáticas são ligadas às aplicações militares, sem que isto levante contestações. O fascínio pela informática substituiu a ameaça nuclear de uma destruição humana extensa, com conseqüências de longo prazo e sem limites controláveis pela humanidade toda. A informática parece menos ameaçadora porque suas aplicações são múltiplas, ligadas a jogos como o Nintendo e à robótica doméstica. As novas tecnologias militares se caracterizam pela sua precisão nas delimitações dos alvos. Isto fornece guerras 'limpas' e mediáticas. A mediatização do militar tem uma tal capacidade de enceguimento dos homens, que certos intelectuais europeus e americanos analisam este fenômeno sem pôr em causa a realidade das guerras". 0 texto inteiro merece debate, a partir destes aspectos. Claro, o MIT possui pensadores como Noam Chomsky, um dos mais duros críticos do imperialismo norte-americano. Estas e outras perspectivas, entretanto, acentuam os equívocos entre vida civil, pesquisa científica, artes.
Por todos esses motivos, é possível perguntar sobre a relevância das interrogações filosóficas como as de Jurgen Habermas (para uma apreciação antiga, mas eficaz, dos encaminhamentos habermasianos, seus pontos fortes e insuficências, cf. Dorner, Klaus, Burgen und Irre.Zur Sozialgeschichte und Wissenschaftsoziogie der Psychiatrie. F.A.M. Europäische Verlagsainstalt, 1969). E também de seus pares, que idealizam um campo democrático onde comunicação e diálogo seguem juntos. Como sabemos, as buscas de Habermas tentam ser uma crítica das atitudes, consideradas "apocalípticas", assumidas pelos teóricos da chamada "escola" de Frankfurt. Especialmente após o conhecido ensaio de Habermas, sobre a ciência, a técnica, a ideologia, ocorreu um recuo diante de autores como Herbert Marcuse. Este, em One Dimensional Man invectiva, com justeza ou não, o pensamento que se "racionalizou" na figura do mercado, apagando toda negatividade. Assim, Marcuse acentua a denúncia da linguagem contemporânea: "no universo do discurso público, a fala se move por sinônimos e tautologias; na verdade, ela nunca se move rumo a uma diferença qualitativa" (One Dimensional Man, Boston, Beacon Press, 1967, página 88). É notável, sobretudo para nossos dias, a sua inspeção da linguagem abreviada, em especial no que tange às siglas. Após o vagalhão do "pós-modernismo" e do "deconstrucionismo", e da maré irenística do pensamento habermasiano e similares, que deseja manter o discurso no plano da concórdia democrática, mal ignorando a contradição social e discursiva, penso que vale a pena reler autores como Herbert Marcuse, agora sem a pressa e o equívoco de uni-lo de imediato às reivindicações de 1968. Algo mais amplo e profundo se diz em One Dimensional Man.
Por que iniciei minhas considerações ao redor desses problemas, do intelectual e do equívoco ? E por que, nestes passos, dei tanto relevo à comunicação e ao nexo dos acadêmicos com a mídia ? Em primeiro lugar porque é possível, desde as análises hegelianas, até às fórmulas de Heídegger, ver um traço capital nas formações compreendidas sob a rubrica de "comunidade" universitária. No mundo moderno, do mercado e dos átomos sociais, o intelectual não pode ser exceção. Deste modo, a ética definida nos campi desde o século XVI, mas aprofundada nos séculos XIX e XX, é a da busca individual, e da recompensa não menos solitária. Mesmo os setores; que mais trabalham em grupo não podem ignorar o fato de que os indivíduos de uma equipe levam em conta mais o seu sucesso pessoal do que o coletivo. Neste plano, a universidade brasileira mostra-se fértil em testemunhos de individualismos brutais, servindo a instituição apenas como trampolim para que a pessoa atinja melhores "posições" no universo do pensamento, da política, ou da economia. A fuga dos doutores que, percebendo ameaçado um direito individual, a sua aposentadoria, para escolas privadas, em troca de melhores salários, segue a mesma tendência dos mestres que resolvem sua escalada social através das assessorias e candidaturas a cargos eletivos. Na hora certa, a pesquisa e o ensino não postos em último plano. Se o equívoco e o vale-tudo espiritual definem parte considerável do ser acadêmico, um governo de professores certamente move-se no e pelo equívoco, mais os choques dos cotovelos. Some-se a isto a nova sofística, a propaganda, palavrório autoritário no sentido heideggeriano, e temos um retrato muito próximo do governo federal de hoje. Os ministros não deixam as páginas dos jornais e revistas, e as telas da TV somadas às ondas do rádio. Uma pesquisa na revista Exame., na Gazeta Mercantil, e similares, indica a presença absoluta do senhor que um dia foi presidente da Adunicamp, reitor da Unicamp, e hoje está emprestado ao MEC, enquanto espera seu retorno ao Bird. Equívoco: o discurso "de esquerda" assumido pelos intelectuais de Brasilia, no passado, foi mesmo deste teor? 0 equívoco foi deles, ou nosso? Ou de todos nós ? Tendo a aceitar a última pista. Por isto, imagino que uma profunda análise dos discursos, deles e nossos, é tarefa urgente se quisermos encontrar algum sentido em nossa vida acadêmica, e nos seus nexos com a sociedade e o Estado. De certo modo, neste governo ou em outro, os universitários, dada a sua formação e à falta de quadros, sempre são candidatos aos postos de mando, onde não reina a pesquisa mas a retórica, como afirmou o ex-sociólogo do Planalto em sua recente e pseudo aula magna, a convite de colegas universitários. Não basta, pois, criticar os contorcionismos ocorridos na linguagem por eles mantida. Urge a inspeção de nossa linguagem, por exemplo, a do movimento docente, dos estudantes, dos reitores, para detectarmos certa lógica nestas loucuras. Não se trata de apontar "erros" ou "ignorância" apenas em suas frases. Todos lemos o "Hípias Maior" platônico: mente melhor quem mais sabe. Deste modo, nossos antigos colegas, hoje temporários donos do poder, mentem e mergulham no equívoco, com muito saber e conhecimento de causa. Um teórico como Francisco Weffort, que pesquisou e escreveu teses e teses sobre o populismo, possui plena consciência do que fala ao afirmar que Antonio Carlos Magalhães ganha votos porque tem "sensibilidade" para entender o povo. Mas a repetição, ainda com Heidegger, da medianía, do "as coisas são assim porque são assim" é técnica hipnotizadora e auto-encantatória. Para agir, é preciso que o poderoso se justifique aos seus próprios olhos e ouvidos. E disto nenhum candidato ao mando, direto ou indireto, pode fugir. Não é raro encontrarmos radicais de esquerda que, com a simples proximidade dos gabinetes, assumem o ar grave da ."ética da responsabilidade", invectivando seus antigos pares como "radicais inconseqüentes". Claro, junto com o jargão novo, seguem os ternos, as gravatas, e toda a liturgia do poder.
Há uma clara mediatização ou melhor, uma face cada vez mais jornalística nos vínculos entre produtores de conceitos e público. A lógica do "publica ou perece" faz lançar no mercado, em especial no setor das ciências humanas, textos sem maiores controles empíricos ou lógicos. Aumenta o número dos que "sabem" pela metade.
Ao mesmo tempo, a imprensa martela a inutilidade de investimentos, sobretudo em época de "globalização", nas pesquisas originais. O governo, no seu projeto de "Plano Nacional de Educação", afirma alto e bom som que o modelo da " universidade de pesquisa" é caro e obsoleto. No projeto, as universidades paulistas, até hoje modelo de eficácia no plano especulativo, são invectivadas como exemplos a não serem seguidos pelas demais. Este trabalho de sapa do governo, por sua vez, além dos ditames do FMI e de outras agências financeiras, foi teorizado por pessoas de renome no mundo universitário. A redução dos campi à graduação, e o desmonte atual da pós-graduação, feito criminosamente, foi anunciado e racionalizado entre nós por José Arthur Giannotti.
Esse intelectual, em seu panfleto A Universidade em Tempo de Barbárie, forneceu as bases para a proposta atual da chamada "bolsa para docentes de graduação", que fez explodir a greve nas universidades federais. No opúsculo, afirma Giannotti: "um bom professor de cálculo não precisa conhecer matemática moderna (...) o que ele deve transmitir é uma técnica de cálculo, uma teoria encarnada numa prática, de modo que o refinamento teórico pode prejudicar o próprio ensino, marginalizando seu aspecto capital, seu lado construtivo". Esta pérola, hoje posta no projeto governamental sobre o "Plano Nacional de Educação e já enviado ao Congresso, baseia-se num diagnóstico mais duro de Giannotti sobre a universidade. Segundo ele, "a maioria das aulas e das pesquisas fabricadas numa universidade se reduz a mero ritual que alimenta um organismo em profundo estado de coma (op.cit. "página 24).
A universidade "autônoma", pregada pelos funcionários do MEC, com fontes de manutenção privada, teve no panfleto giannottiano um dos seus primeiro formuladores. "Sem a competição de capitais, tratando de comandar a seu modo o trabalho alheio, a ciência não se instala" (op.cit. página 31). Temos aí, a lógica das "organizações sociais", assumidas sem resistências significativas pelos universitários: após as "caras" verbas do Estado, as universidades públicas brasileiras devem se conformar ao comando dos capitais, geradores de ciência...
E como justifica Giannotti a pouca pesquisa no ensino de graduação ? O ideólogo do governo faz da necessidade virtude: num momento, diz ele, em que a produção científica se massifica, em que até mesmo o especialista deixa de cobrir todos os novos conhecimentos que estão pipocando no seu ramo, seria ingênuo pedir-lhe que esteja a par da última novidade (página 34). Quando se fala, nos Estados Unidos, Europa, Japão, em "pesquisa", é isto o que está sendo visado? É verdeiro afirmar, como o faz Giannotti, que os maiores especialistas, sempre recorrem a resumos, abstracts, a indicações verbais dos colegas? Tal epistemologia do "ouvir dizer" atinge os fundamentos e todos os passos das pesquisas? Quais docentes procedem assim ? Sem indicar os que de fato fazem pesquisa, e sem indicar os que não fazem, como reduzir a todos a um padrão único? O bom professor giannotiano tem a face e a alma do filistino, analisado por Heidegger: ele compreende pela média, não precisa ir à matemática ou a qualquer outra matéria superior, pois limita-se aos rudimentos.
Perdoem meu uso do argumento "ad hominem", o qual tem sido muito imprudentemente negado em nossos dias, como diz um colega gaúcho de quem silencio o nome, para que ele não seja estigmatizado pelos donos do mando, em Brasilia. Mas se a divisão e massificação do saber é tamanha, a ponto de justificar a ruptura entre ensino e pesquisa, quais são as bases lógicas e empíricas que baseiam as incursões de Giannotti em campos tão díspares como a matemática, a física, a psicologia, a pedagogia? Temos nele, e nos que no governo falam da pesquisa, especialistas em generalidades? Note-se: é com base em pessoas assim, sem formação específica em todas estas áreas, que cientistas destes mesmos setores foram caluniados e, hoje, com semelhantes "raciocínios", o governo e seus funcionários querem destruir o "modelo único de universidade". Pergunte-se a Giannottí, à Sra. Eunice Durham, etc., quanto tempo gastam em laboratórios, arquivos, bibliotecas, cidades, tribos indígenas, consultórios, hospitais? Para se elevarem (por quem ?) à condição de nomotetas, juízes e carrascos dos cientistas, definidos por eles como "improdutivos" (a célebre lista da USP teve inspiração direta nestas pessoas, vilipendiando até mesmo professores mortos, tachados como "vagabundos"), conhecem eles de modo imanente a pesquisa em todos os prismas ?
No juízo de Giannotti, de pessoas como Euníce Durham e outros acólitos, é tolice alocar recursos nos campi. Em 8 de março de 1990, durante a 50ª Reunião do CRUB, declarava Giannotti : a universidade é incapaz "de enfrentar por si mesma os vícios que a corrompem". Isto porque "o sistema de ensino superior brasileiro está esgotado". Cortes deveriam ser feitos imediatamente, já que 85% do orçamento universitário "é gasto com pessoal". Assim, afirmava ainda nosso homem, a crise no terceiro grau público mostra resolução impossível porque se costuma, nos ocultar a prática constante da ignorância e da preguiça, com pedidos de verbas.
A desqualificação abstrata da pesquisa que se faz nas universidades é injusta e genérica. Só um cego ignora que muitos, nos campi, não pesquisam nem ensinam. Dentre estes muitos, estão os eternos assessores governamentais que fogem dos laboratórios e das bibliotecas como o Diabo da Cruz. Mas há outros que também apresentam inapetência para as funções científicas e de ensino. Mas a crítica deveria ser levada em conta, por exemplo, pelas autoridades acadêmicas e movimentos docentes. Isto não ocorreu. A "defesa da universidade" não desceu até a mudança de procedimentos e de avaliação. Deste modo, a calúnia dos ideólogos do atual governo foi fundo, causando estragos significativos.
Ao lado da ênfase no ensino de graduação sem pesquisa, Giannotti já anunciava, desde época remota, o desmonte da pós-graduação universitária. O sistema oficial estaria falido, como tudo o mais na universidade pública. O remédio é fundar centros de excelência, para que estes "puxem o carro do avanço da ciência e do desenvolvimento". (Folha de São Paulo, 08/março/1990, página C-4). O modelo dos "centros de excelência" seria, naturalmente, o CEBRAP. Nele se manteria o que "a universidade perdeu : é um centro produtor de idéias e um local de debate e formação intelectual onde os aprendizes de pensadores podem conviver com os grandes nomes da cultura, andando pelos corredores..." (Folha de São Paulo,, 22/setembro/1987, página A-29). Universidade em coma, sabidos corporativistas, tudo isto justifica o reforço da graduação de massa, sem pesquisa, e o desmonte da pós-graduação, com o surgimento de "centros de excelência", intra ou extra universitários. Deste modo, a "bolsa para ensino de graduação" une-se ao Pronex e ao corte de verbas ímpar sofrido pelos programas universitários de pesquisa e ensino. Temos aí, in nuce, os elementos que hoje se apresentam nas propostas de instaurar as ditas "organizações sociais", retirando do Estado a obrigação maior de investir em ciência e tecnologia.
Não apenas de equívocos se alimenta a vida acadêmica. Sua própria atuação é sinalizada por atitudes equívocas. Quando o atual presidente da República assumiu, por pouco tempo, suas aulas na USP, na exposição que fez, diante de um auditório lotado de pares, ele afirmou "deixar o Parlamento, lugar da ação, para voltar à universidade, lugar da falação". Foi ovacionado pelos docentes. Se estes tivessem um pingo de orgulho na face, para dizer o mínimo, ele seria vaiado pela falsa etimologia, pois "parlamento" é lugar onde se fala, e "universidade" é lugar onde se produz conhecimentos, e pelo insulto. Mas não. Em 1998, o professor Giannotti., que caluniou o quanto pode a universidade, propondo o fim de verbas para suas pesquisas e ensino, e preparou os ataques de hoje, os quais se transformaram em projeto de lei, será agraciado com o título de "Professor emérito", na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP. A mediania não é apenas epistêmica, ela também impera no plano ética: "aurea mediocritas". Se os reitores brasileiros tivessem pejo, e também os Conselhos Universitários, o ministro da educação já teria sido proclamado persona non grata nos campi.
Mas os reitores, com as raras exceções, repetem no cotidiano o "realismo" que levou a sua maioria a colaborar com os militares na ditadura, aceitando inclusive escritórios do SNI para "triagem" dos cientistas, etc. Magníficos "progressistas" ou "conservadores", neste período "democrático", curvam-se diante de autoritarismos gravíssimos. É um escândalo que na greve dos professores federais, a Andifes tenha tido a idéia de ser "mediadora" entre docentes e ministério. Os reitores representam a universidade. Ou a defendem, ou cooperam com os donos do mando. "Neutro", ou "mediador", parafraseando Max Weber, muito em voga no Planalto, "é quem já optou pelo mais forte".
Heidegger, modelo para todo reitor "realista no seu discurso de posse, na universidade de Friburgo, traçou o retrato dos que assumem este cargo sem compromissos com a defesa dos cientistas e da pesquisa. Encarnando o que dissera dos outros, em Ser e Tempo, ele assumiu o papel do servo que obedece ao mais atroz autoritarismo. Citemos, apenas enquanto memento, o primeiro parágrafo daquela fala paradigmática : "A assunção da Reitoria obriga à liderança espiritual desta escola superior. 0 séquito de professores e alunos é desperto e se fortalece unicamente por seu enraizamento verdadeiro e comum na essência da universidade alemã. Porém, essa essência só adquire clareza, dignidade e poder se, antes e o tempo todo, os próprios chefes (die Führer) forem eles mesmos chefiados. Chefiados pela inexorabilidade da sua missão espiritual que, ao se lhes impor, imprime no destino do povo alemão o cunho de sua história".3
0 "destino" da universidade, e do povo alemão, naquele instante, Heidegger tinha plena consciência disto, era Hitler. Quem não desejasse submeter-se ao "destino", tinha um rumo certo : o estrangeiro ou os campos de concentração. Quando o poder é autoritário, lutamos contra ele, ou somos "liderados". Não passou pela cabeça de Heidegger, intelecto poderoso, apresentar-se enquanto "mediador" entre os que abusavam do mando e os cientistas perseguidos. A clareza, aqui, não permite equívocos. Os nossos reitores, com a sua proposta, mergulharam na equivocidade: são os magníficos "neutros" na luta entre os campi e os ministérios? Todos sabem que a resposta é negativa. Ou eles representam os cientistas e docentes, ou são liderados. A máscara da terceira forma, a "mediação, não atinge sequer o estatuto da "dissimulazione onesta", para lembrar Torquato Aceto.
Deixemos os ideólogos e os que fazem da universidade um trampolim para os cargos e as benesses. Como enfrentar a mídia, o governo, e vastas camadas do público que julgam "inúteis" as pesquisas científicas ? Não podemos desconsiderar alguns cenários possíveis, dadas as eleições gerais que se aproximam: no primeiro cenário, se o atual governo for reconduzido, dados os sustos que ele teve, e os compromissos com o Banco Mundial, o FMI, etc., deve-se esperar que já nos primeiros meses o Executivo tente impor, a toque de caixa, as "reformas" da universidade, com o desmantelamento já iniciado da pós-graduação, e a passagem dos campi ao estatuto jurídico de "organizações sociais". Neste sentido, creio que tanto as autoridades acadêmicas, quanto os órgãos coletivos de juízo, como os Conselhos Universitários, bem como o movimento docente e outros, devem rápido constituírem comissões, grupos de trabalho, com competências jurídicas e científicas, e com rapidez eficaz em termos políticos, para estudar e rebater as medidas impositivas que inevitavelmente virão. Neste plano, sugeri há bom tempo algo semelhante para as três universidades paulistas. O Conselho Universitário da Unesp aprovou o plano por unanimidade. Mas ele foi ignorado pelas outras duas instituições. Há poucos dias, em debate com o reitor da Unicamp, atual presidente do Cruesp, voltei à mesma idéia. Pelo que vi e ouvi, não existe interesse maior nela. Isto faz-me, pessoalmente, cair num desânimo muito grande.
Enquanto os governos federal e estaduais têm sob seu comando juristas exímios na arte do desmonte da coisa pública, e possuem nexos com instituições financeiras e jurídicas estrangeiras, além de um rolo compressor forte no Parlamento, mais a conivência de vastas áreas da Justiça - sem falar na mídia, claro - as autoridades acadêmicas e os movimentos docentes só possuem poucos recursos deste calado. Se os magníficos reitores quiserem usar, para o estudo das medidas administrativas, as suas habituais assessorias jurídicas, cuja máxima competência consiste em escrever pareceres para agradar justamente os mesmos reitores, a universidade está vencida. Outro elemento, é a Frente em Defesa da Ciência e da Tecnologia. Ela precisa ser potenciada pelos movimentos docentes e pelas autoridades universitárias, caso se tenha alguma pretensão de barrar, ou atenuar, as "reformas" impostas pelo Executivo federal e pelos seus títeres estaduais. E isto, repita-se, logo nos primeiros meses do governo re-eleito. As últimas medidas da Capes, definidas sem consulta às universidades, apenas prenunciam a truculência das mudanças em preparo.
Outro cenário: vencem as oposições. O novo governo enfrenta, além da hostilidade do "mercado" financeiro internacional, e de suas instituições, um boicote sistemático da mídia, dos organismos conservadores como a Fiesp, a CNI, etc. E também, não nos enganemos, da opinião pública liderada pela classe média. Num governo assim, fraco no Parlamento e na sociedade burguesa, com muita dificuldade recursos básicos serão conseguidos para a saúde, a educação, a segurança.
Sendo finitos os recursos, e complexa a administração contrária ao jogo oligárquico, frágil o governo, a universidade não pode esperar um paraíso nos primeiros tempos e durante os quatro anos de mandato (se os quatro anos forem mantidos, excluindo-se golpes possíveis, manu militari ou pelas vias financeiras, as grandes armas imperialistas de hoje para submeter governos rebeldes). Além disto, no composto geral de forças de oposição há um forte elemento populista. Para os que defendem este pensamento, e num governo com verbas restritas, a universidade não é tarefa prioritária. Pelo contrário. Urge, pois, estabelecer canais de debate e esclarecimento, se quisermos assegurar alguma atividade científica e tecnológica, mesmo nesta segunda cena. É preciso dizer, com termos apropriados e não equívocos, a importância da pesquisa na manutenção da soberania nacional e popular. Manter um povo de milhões sem técnicas avançadas, querer repetir o ".grande salto para a frente", além de tolice, é genocídio. Lideranças importantes da oposição têm mostrado parca solicitude neste aspecto.
Se na Alemanha, na França, nos EUA, existe o fenômeno da semi-cultura, amplamente analisado por Theodor Adorno, em outro texto "esquecido" pelo pensamento crítico, nós, no Brasil, enfrentamos algo ainda mais complexo : ao lado de um analfabetismo impiedoso, que incapacita massas enormes para o mais elementar convívio com as ciências, as técnicas, as artes, possuímos um forte contingente urbano de egressos da universidade, mas formados dentro de regras estreitas das "especializações", sem bases para exercer várias atividades e para enfrentar o desemprego neste ou naquele setor. São conhecidos em demasia os casos dos engenheiros, advogados, psicólogos, economistas, etc., trabalhando em meios pouco condizentes com o que foi aplicado neles pelos cofres públicos. Peruas Towner e sanduíches baratos para os estafetas não constituem, propriamente, fundamentos de soberania nacional.
Em qualquer dos dois cenários, mas sobretudo no caso de uma vitória oposicionista, as universidades que recebem dinheiro público, oficiais ou particulares, devern prestar contas de sua aplicação. Fundações universitárias e órgãos de financiamento à pesquisa devem assumir a máxima transparência, se possível criando-se uma comissão de controle externo das mesmas. O sigilo no emprego de verbas, no julgamento de projetos, etc. deve ser revisto com máxima presteza. Se as universidades nada têm para esconder, e precisam distinguir, para os governantes e para o público, o que é ciência e simulacro de pesquisa, uma prestação de contas sobre os meios e os recursos dará maior autoridade ética e respeito aos fins da universidade.
Em qualquer cenário, realidades brutas já se definiram: é o caso da lei de patentes. Ela ameaça enviar às barras dos tribunais pesquisadores brasileiros que insistirem em investigar processos patenteados nos EUA. Este país, recentemente, num encontro internacional sobre o assunto., exigiu que o governo brasileiro instalasse varas de justiça especiais para o julgamento de semelhantes "crimes". E já anunciou, pelos seus representantes, o fim de institutos nacionais de patentes, dada sua "inutilidade", pois sabe-se que apenas nas terras líderes produz-se conhecimento original. Logo ocorrerá a revisão da lei mencionada. Muitos "realistas" dizem ser inexorável a sua ratificação, exato como querem os EUA, que, por sua vez, se recusam a assinar acordos importantes para a pesquisa, como o da biodiversidade.
Estou profundamente pessimista sobre os próximos anos da ciência e da pesquisa no Brasil. O convívio acadêmico hobbesiano, como para testemunhar as teorias hegelianas e heideggerianas sobre o individualismo e o palavrório, parece acentuar-se mais. Nas áreas ditas "humanas", o padrão dos trabalhos atingiu níveis baixos. Teses, apesar dos recursos trazidos pela informática, pelos arquivos, etc., mostram consistência lógica cada vez mais tênue. Representantes das outras áreas também indicam esta quebra do rigor.
Em um livro "antigo", segundo as formas de pensamento hoje imperantes na universidade, Ogden enunciava: além da "peculiar sobrevivência" da apologética religiosa, temos no século vinte a força que favorece sua ampla difusão. Entre os fatores do emburrecimento coletivo que permite a alegria dos "pastores eletrônicos" e quejandos, destacam-se a posse, pelos jornalistas e letrados, "de um imenso vocabulário semitécnico e a sua falta de oportunidade ou vontade, de pesquisar o seu uso próprio". Aumenta, deste modo, o abismo entre público e pensamento científico. O resultado é a "exploração, com finalidades políticas e comerciais, da imprensa, através da disseminação reiteradada dos clichés". (The Meaning of Meaning).
Desse fenômeno dá-se conta Pracontal, no livro citado acima. "É de bom tom" diz ele, "considerar que a mídia poderosa favorece a democracia. Sem dúvida, mas o pluralismo da informação, não raro, só garante a diversidade das imposturas. No relativo à democracia, a mídia vive sob a ditadura das cifras de venda e números de audiência. Seu discurso visa sobretudo obter uma adesão incompatível com o ceticismo e a dúvida científica. Para captar a atenção de seu público, a mídia envia a mensagem que mais oferece oportunidades de adesão. (L'Imposture Scientifique, página 123).
Some-se à mídia os atos dos governos e o populismo de setores da oposíção para que seja previsível, em plano geral, o esvaziamento das salas de aula, dos laboratórios, dos arquivos, das bibliotecas. Ao mesmo tempo, existem os "centros de excelência" que não sabem onde recrutar novos quadros competentes, dado que não apenas a pós-graduação está sucateada, mas também a graduação. Estes centros, como na fábula, ajudam, talvez sem consciência plena, a matar a galinha dos ovos de ouro, quando aceitam verbas aos milhões, extraídas de programas que, se corrigidos caso estivessem em rumo errado, forneceriam quadros novos para a pesquisa.
Termino por aqui, pedindo desculpas pelo tempo gasto nestas considerações trágico-filosóficas, colocando-me ao díspor dos senhores para as críticas e perguntas. Obrigado.
1 Lebrun, Gérard. Passeios ao Léu. SP. Brasiliense, 1983.
2 Toda esta passagem é calcada na exemplar hermenêutica de Hegel, proposta há muitos anos por A. Kojeve : lntroduction a Ia lecture de Hegei. Leçons sur Ia Phénomenologie. de I'Espril, professées de 1933 à 1939 à I'Ècole des Hautes-Etudes. Paris, Gallimard.
3 Cf. Heidegger, M. "A Afirmação de si da Universidade Alemã". Discurso de posse na Reitoria. Tradução Fausto Castilho. Curitiba, Secretaria da Cultura Ed., 1997, página 1.
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