OS SAPOS DA PÁSCOA
Arte sobre pintura de Paul Klee
Fabrício Carpinejar blog AQUI
Não diminuo mulher que tem fobia de baratas ou de ratos ou de morcegos. É bom guardar um medo para pedir vida emprestada. Dividir o susto.
Meu pai não tinha medo de nada. Isso me deixava triste. Não havia como protegê-lo. Intocável. Com sua barba árabe a espantar os traumas.
Passamos a Páscoa de 1977 em Pinhal, no litoral gaúcho. Casas vazias, ruas com mais espaço ao chilrear das carroças e das aves. Fora do veraneio, o vento ciscava os telhados com a tranqüilidade de um pescador. A grama alta, o meio-fio descascado, o mato é que pastava os cavalos.
Com atenção, ouviríamos os gemidos das baleias mais platinas. O ranger subterrâneo do oceano.
A família buscava um sossego longe do ritmo da cidade apertada. De noite, o pai nos aliviava do pavor das frestas da porta e das janelas. Acalmava dizendo que não era um invasor. Era a solidão da duna que cobria as casas.
Sonhava que acordaríamos com as paredes soterradas. Como nos postais da neve. Nunca aconteceu.
O que aconteceu animou minha Páscoa, estranhamente.
Rodrigo, o irmão mais velho, era o chefe dos escoteiros, se fôssemos escoteiros.
Eu e Miguel, soldados rasos de suas molecagens. Executores das tarefas.
O pai zelava o costume de deitar na rede depois da sesta. Tomava um livro, seu caderno de anotações e um lápis severo de carpintaria. Dormia uma hora em meio à serenata da leitura.
Não é que o Rodrigo descobriu que o nosso pai detestava rãs e sapos. Explicou pela metade, com a rapidez peculiar da maldade. Ele não suportava o salto desgovernado da pele anfíbia. E as córneas de pedra que poderiam cegar ao jorrar um líquido venenoso de cobra, que não entendia direito como que funcionava.
Subestimei a crença:
- Não, o pai não tem medo de nada.
Rodrigo nos guiou a um banhado vizinho e colhemos três sapos num chapéu de palha.
Despejamos os barulhentos animaizinhos na rede. Esperamos o teatro no pátio.
Quando o pai deitou, com o peso solene da quietude, ele gritou:
- Sapos, sapos, sapos... Filhos, tirem os sapos, os sapos!
Ele dançava, girava, jogou os livros ao chão, o rosto assustado e crédulo, correndo a um lugar seguro para sair das repetições de sua voz.
Não consegui ampará-lo, deitei para rir melhor, o riso é egoísta, eu me acariciava de risadas, eu me esfregava nas lajes para controlar a coceira do coração, que aumentava com a lembrança. Fechei os olhos para não soltar a memória. Os irmãos também se denunciaram com as gargalhadas.
O pai nos colocou de castigo, é evidente. Mas não reclamamos. Ele tinha medo de alguma coisa. Nunca esteve tão próximo de mim. Tão pai. Tão carente.
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