TUCA PUC 1977
EU QUASE QUE NADA SEI. MAS DESCONFIO DE MUITA COISA. GUIMARÃES ROSA.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Páscoa


OS SAPOS DA PÁSCOA
Arte sobre pintura de Paul Klee

Fabrício Carpinejar blog AQUI



Não diminuo mulher que tem fobia de baratas ou de ratos ou de morcegos. É bom guardar um medo para pedir vida emprestada. Dividir o susto.

Meu pai não tinha medo de nada. Isso me deixava triste. Não havia como protegê-lo. Intocável. Com sua barba árabe a espantar os traumas.

Passamos a Páscoa de 1977 em Pinhal, no litoral gaúcho. Casas vazias, ruas com mais espaço ao chilrear das carroças e das aves. Fora do veraneio, o vento ciscava os telhados com a tranqüilidade de um pescador. A grama alta, o meio-fio descascado, o mato é que pastava os cavalos.

Com atenção, ouviríamos os gemidos das baleias mais platinas. O ranger subterrâneo do oceano.

A família buscava um sossego longe do ritmo da cidade apertada. De noite, o pai nos aliviava do pavor das frestas da porta e das janelas. Acalmava dizendo que não era um invasor. Era a solidão da duna que cobria as casas.

Sonhava que acordaríamos com as paredes soterradas. Como nos postais da neve. Nunca aconteceu.

O que aconteceu animou minha Páscoa, estranhamente.

Rodrigo, o irmão mais velho, era o chefe dos escoteiros, se fôssemos escoteiros.

Eu e Miguel, soldados rasos de suas molecagens. Executores das tarefas.

O pai zelava o costume de deitar na rede depois da sesta. Tomava um livro, seu caderno de anotações e um lápis severo de carpintaria. Dormia uma hora em meio à serenata da leitura.

Não é que o Rodrigo descobriu que o nosso pai detestava rãs e sapos. Explicou pela metade, com a rapidez peculiar da maldade. Ele não suportava o salto desgovernado da pele anfíbia. E as córneas de pedra que poderiam cegar ao jorrar um líquido venenoso de cobra, que não entendia direito como que funcionava.

Subestimei a crença:

- Não, o pai não tem medo de nada.

Rodrigo nos guiou a um banhado vizinho e colhemos três sapos num chapéu de palha.

Despejamos os barulhentos animaizinhos na rede. Esperamos o teatro no pátio.

Quando o pai deitou, com o peso solene da quietude, ele gritou:

- Sapos, sapos, sapos... Filhos, tirem os sapos, os sapos!

Ele dançava, girava, jogou os livros ao chão, o rosto assustado e crédulo, correndo a um lugar seguro para sair das repetições de sua voz.

Não consegui ampará-lo, deitei para rir melhor, o riso é egoísta, eu me acariciava de risadas, eu me esfregava nas lajes para controlar a coceira do coração, que aumentava com a lembrança. Fechei os olhos para não soltar a memória. Os irmãos também se denunciaram com as gargalhadas.

O pai nos colocou de castigo, é evidente. Mas não reclamamos. Ele tinha medo de alguma coisa. Nunca esteve tão próximo de mim. Tão pai. Tão carente.

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