TUCA PUC 1977
EU QUASE QUE NADA SEI. MAS DESCONFIO DE MUITA COISA. GUIMARÃES ROSA.

quarta-feira, 28 de abril de 2010


Sobre Gilberto Freire
Por Roberto Romano, Jornal Gazeta de Campinas

Lisa Jardine, historiadora que pesquisa a história do Renascimento, publicou tempos atrás um livro sobre Erasmo e a fabricação da fama em proveito próprio, algo banal entre intelectuais (Erasmus, Man of Letters, The Construction of Charisma in Print, 1993). Na trilha de outros que denunciaram os truques usados pelos pioneiros da cultura moderna - para subir na vida acadêmica, política, econômica e social - a autora mostra a via seguida pelo monge agostiniano (como Lutero) que se tornou sinal de contradição na fé (dizem que ele mais destruiu a unidade eclesiástica do que os reformadores), na política, na literatura.

A receita de Erasmo é infalível. Primeiro definir um plano de vida no qual o estudo seja a diretriz, adquirindo fama de inteligência, erudição, refinamento. Depois achar editores que saibam gerar vínculos comerciais e de propaganda, sobretudo entre ricos e poderosos (tolos ou inteligentes), além de induzir vendas e compras sem demasiados escrúpulos éticos. No caminho, reunir companheiros que evocassem seu nome tantas vezes quantas necessárias para convencer o “mundo” da superior maestria ostentada por... Erasmo! Finalmente, atacar instituições e costumes, sejam eles respeitáveis ou não, angariando fama de inovador revolucionário, pois os homens adoram novidades e logo se cansam de velhos estilos e apelidos. Erasmo praticou todas as técnicas indicadas. Ele estudou grego com enorme sacrifício para dominar os manuscritos trazidos à Europa pelo cardeal Bessarion e outros fugidos de Constantinopla. Ele aprendeu de Lorenzo Valla e discípulos (o mesmo ocorreu com Lutero) os mistérios filológicos e históricos, além da irritação com o aristotelismo e suas argúcias metafísicas. Ele encontrou editores capazes de tudo fazer para espalhar livros e obter lucros em todos os mercados. Ao mesmo tempo, ele estabeleceu elos com governantes do Estado e da Igreja, deles entoando o panegírico, pago em dinheiro sonante. Na companhia de Tomás Morus, Erasmo gerou conventículos em universidades e corporações de estudiosos, adquirindo fama de “maior letrado de todos os tempos”. O programa, claro, incluiu zombar dos monges que praticavam charlatanismos, dos professores universitários, dos advogados, médicos e demais convivas da Loucura.

Se a fama lhe trouxe inimigos (e ameaças de fogueiras inquisitoriais) ela legitimou o mito de sua superioridade. Esperto, ele nunca se instalou, como o colega Morus, em gabinetes de poder que trazem ganhos e desgraças aos ocupantes temporários. Sua atividade nunca o levou aos compromissos exigidos pelo Estado, Igreja e demais instituições de mando. Bastava ao escritor, cantado em prosa e verso, o verbo e as verbas extraídas dos cofres públicos ou particulares. Erasmo se tornou o modelo do intelectual “independente” que busca pairar sobre todos os partidos, querendo ser cortejado pela maioria.

Gilberto Freire usou as mesmas astúcias para promover seu nome e influência no mundo oficial e civil. Acaba de ser publicado o livro de Silvia Cortez Silva, Tempos de Casa-Grande, 1930-1940 (São Paulo, Ed. Perspectiva, 2010). Com escrita refinada, a autora oferece um retrato inédito do famoso inspirador dos conservadorismos, de ontem e de hoje, em nosso país e no mundo. A farta documentação colhida por Cortez Silva fundamenta uma diatribe devastadora contra o escritor que se tornou oráculo nas ditaduras, sobretudo no que se relaciona ao racismo, ao antissemitismo e outras mazelas. Não examino passo a passo o livro, porque não quero retirar do leitor o acicate (às vezes, a ojeriza diante de coisas escritas pelo “grande homem”) de refletir sobre a raiz venenosa do preconceito, cujo apelido no Brasil é “ciência”. Acho mais sutil do que os dogmas de Nina Rodrigues, mas com idêntico poder de morte. Freire foi consagrado por usar os mesmos truques movidos por Erasmo e todos os escaladores sociais (grandes ou nanicos) do chamado “reino espiritual do espírito”. O leitor inteligente e honesto descobre, no livro em pauta, boa parcela da miséria do Brasil e de seus lamentáveis intelectuais. Parabéns à autora e seu editor, pela coragem e lucidez evidenciadas em páginas serenas mas candentes. Boa leitura!

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