Um «autor publicado»
Por RUI BEBIANO, PORTUGAL, BLOG A TERCEIRA NOITE AQUI
Não acredito na absolutização da ideia mil vezes proclamada de «escrever para a gaveta». Mesmo o escritor não publicado – ou aquele que sabe ter escassas ou nulas hipóteses de vir a sê-lo – escreve sempre para alguém. Será, se para mais ninguém for, para a/o amante, para um amigo cúmplice ou para o leitor ideal que um dia cairá do céu. Em contrapartida, são inúmeros os escritores condicionados pela censura ou pelo medo do julgamento público impiedoso que escrevem a maior parte da obra, se não toda ela, sem a perspectiva de que esta possa vir a ser editada. Em «Amar Dostoievski», um artigo de Susan Sontag integrado na compilação póstuma Ao Mesmo Tempo (recém-traduzida pela Quetzal), evoca-se o caso peculiar de Leonid Tsípkin (1926-1982).
Este médico russo de origem judaica viu a família ser repetidamente atingida pela repressão estalinista, e viu-se a ele próprio debaixo de constante suspeita, tendo por isso decidido escrever apenas para os mais chegados. Recusando-se até, com medo de ter problemas com o KGB, a deixar que os seus originais circulassem através da rede clandestina samizdat.
Da sua perseverança contida diz a dado passo Sontag: «Escrever sem esperança ou perspectiva de ser publicado – que reserva de fé na literatura isso não implica?». Acabaria no entanto por aceder a publicar no estrangeiro Verão em Baden-Baden, o romance construído em volta de um episódio da vida de Fiódor Dostoievski. A 13 de Março de 1982, um semanário nova-iorquino começaria a publicar o Verão em forma de folhetim. A 15 de Março, uma segunda-feira, Tsípkin foi despedido do instituto médico no qual trabalhara a maior parte da vida.
A 20 de Março sentiu-se mal quando trabalhava em casa numa tradução, deitou-se, chamou pela mulher e morreu. Foi um «autor publicado» durante sete dias.
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