Do BLOG A verdade do PAN
Jornal O Globo - edição impressa29/07/07
Um parêntese de felicidade por Dorrit Harazim
Desde que as rotas do XV Pan e do Airbus da Tam se cruzaram na funesta terça-feira de 17 de julho, o país passou a alternar momentos de alegria vulcânica com abismos de horror. Para quem assistiu de casa ao noticiário ininterrupto e consecutivo dos dois dramas, as lavadas d’alma e o medo foram sendo expiados um após o outro, em privado. Resultado: um estado de bipolaridade (termo tão na moda) nacional que especialistas haverão de estudar por muito tempo ainda. Já para quem saiu de casa e foi assistir aos Jogos com o coração verde-amarelo, a solução foi abrir um parêntese de felicidade e deixar de fora o Brasil real — aquele que há 500 anos opta pelo descaso. De fora dos estádios, dos campos, das pistas, das piscinas, e torcer até se esbaldar. Ocorre que os dois brasis são indissolúveis. As cenas de pugilato nos aeroportos e nas bilheterias dos estádios são fruto da mesma impotência diante do abandono à própria sorte. Criado para durar 16 dias, o Brasil do Pan terá sua festa de encerramento hoje marcada por um “ufa” de alívio com tantos ouros e louros conquistados. Só que a corrida não acabou. Este Brasil do Pan terá sido apenas uma linda miragem se ele não prorrogar o embate com o seu maior adversário — o Brasil de sempre. Coube a dois Silva serem os primeiros a sinalizar o que está em jogo, e sempre esteve. Ambos nasceram do lado errado da escada social brasileira, com direito a uma ladainha de queixas. Ambos venceram. Um fez a dura travessia do campo nordestino para a cidade grande, abriu picadas impensáveis na política e foi instalado pelo voto num palácio.O outro sequer precisou se mover — já nasceu na periferia do crime urbano, dela saiu dando chutes de taekwondo e chegou ao pódio do Pan com uma medalha de ouro no pescoço. Luiz Inácio Lula da Silva levou a já célebre nunca-na-história-deste-país maior vaia do Maracanã, pelo que não faz, não diz, não decide. Diogo Silva, além de primeiro medalhista de ouro brasileiro nestes Jogos, foi aplaudido de pé pelo que faz, como faz e quando faz. Lutou e venceu com uma das mãos quebradas desde abril — “ele é assim mesmo, enfaixa e vai em frente”, diz a mãe manicure, com a maior naturalidade.Diogo usa dreads, fala claro e não tem espaço para se declarar triste. Continua exigindo e cobrando, dentro e fora do tatame. Se os atletas de elite do taekwondo continuarem a receber apenas R$ 600 mensais, com três meses de atraso e com a mesma estrutura esquálida de hoje, o Pan ficará menor do que foi. E mais parecido com o país que ainda hoje tem mais de um milhão de almas sem certidão de nascimento.É ao mesmo tempo comovente e aterrador que o esporte de alto rendimento abrigue talentos como o carateca da Baixada Fluminense Juarez Santos, que precisou conquistar o ouro “com a ajuda de Deus”. Sempre Ele. Ou que a figura maior e mais arrebatadora deste Pan, a atacante Marta, tenha precisado aprender a jogar bola “com a natureza”, lá no fundão de Alagoas, antes de acender ao topo movida a gana. Aliás, ela e suas companheiras de exuberância suada merecem o técnico que têm.Qual é mesmo o nome dele? Poucos, entre os 70 mil torcedores em estado de graça na final dourada de quinta-feira, saberiam responder. Mérito de Jorge Barcellos manter perfil tão anônimo no comando de um time em pico de celebridade e de uma jogadora eleita pela Fifa como a melhor do mundo. Para Barcellos, quem deve estar na vitrine, para os aplausos, são as atletas.A necessária apuração sobre os custos e os gastos do Pan-2007 só fará sentido quando se souber qual o destino reservado a tanto investimento.Que toda cidade-sede ultrapassa o orçamento original, seja em Pan-Americanos ou olímpicos, tornou-se fato quase inseparável do evento. Ainda em maio último, uma acusação varreu as galerias do Parlamento britânico diante das novas cifras para a Olimpíada de 2012, em Londres: “escândalo”, “escândalo”, apontou a oposição conservadora.O orçamento triplicara em menos de um ano, saltando de 3 bilhões de libras esterlinas para mais de 6 bilhões.E ainda faltam cinco anos.O real valor da conta do Pan2007 só ficará claro dentro de alguns anos. Se, por exemplo, o Parque Aquático Maria Lenk estiver funcionando a pleno vapor como centro de treinamento para a elite e competições de alto nível, com alojamento para os atletas, o seu custo terá sido menor. Inversamente, o preço se tornará estratosférico se, como chegou a anunciar o governador Sérgio Cabral, o antigo Parque Aquático Julio de Lamare ou o Estádio Célio de Barros, ambos vizinhos do Maracanã e utilizados para o esporte de base, forem demolidos para dar lugar a um shopping center, hotel ou centro de convenções. Seria o retrato do Brasil de sempre. O Rio não apenas sobreviveu ao Pan, mas acabou torcendo por ele. Não houve o temido apagão terminal do trânsito, os atletas não se viram encurralados num arrastão, as instalações não revelaram falência múltipla de órgãos — à exceção da arena de beisebol e softbol. Houve falhas graves, outras releváveis.Mas no cômputo final quem apanhou não foram as competições nem os atletas. Foi o público.— Do que o senhor tem mais medo? — perguntou-se ao presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, Carlos Nuzman, três dias antes da abertura da Vila Pan-Americana.— Dos serviços — respondeu na lata. Tradução: transporte, alimentação, ingressos. Tendo trocado quatro vezes de motorista-voluntário durante os Jogos de Atlanta, por ter ficado a pé ou não ter chegado a lugar algum naqueles Jogos, Nuzman tinha optado pela contratação de motoristas remunerados, e não voluntários, para dirigir os ônibus e viaturas da chamada família panamericana. Deu certo e nenhum atleta foi parar no Morro do Alemão. Em contrapartida, a mistura de ganância e bagunça que regeu os dois outros quesitos conseguiu superar os temores. A cadeia de lanchonete Bob’s, responsável pelo fornecimento de alimentação em todos os estádios e arenas, fabricou lindos cartazes apregoando: “O sanduíche exclusivo dos XV Jogos Pan-Americanos”. Só que, de tão exclusivo, o sanduíche costumava acabar em meia hora. Foram dias e mais dias de cachorro quente frio e bebida racionada quente. Caixotes de madeira fazendo as vezes de caixa registradora, atendentes às voltas com contas rabiscadas em pedaços de papel, notas fiscais inexistentes, houve de tudo. A troca de acusações entre a Comitê Organizador e a rede de alimentação promete se estender bem além dos Jogos, mas de uma coisa o público não duvida: qualquer ambulante ou flanelinha de engarrafamento teria previsto melhor o fluxo da demanda. A falência da operação de venda de bilhetes antecipados, por sua vez, que se desdobrou numa peregrinação de troca de vouchers por ingressos e bilheterias abarrotadas, levou a Força Nacional enviada de Brasília a usar gás pimenta contra famílias que apenas tentavam entrar no Maracanãzinho no jogo de estréia do vôlei brasileiro e anteontem. Para quem se propõe a se candidatar aos Jogos Olímpicos de 2016 este foi, talvez, o desastre maior e mais evitável. O pecado nacional mais ruidoso — as vaias aos atletas , bandeiras e hinos de países considerados adversários — é o mais fácil de consertar. Basta a televisão, a imprensa, os locutores de competição, e os próprios atletas brasileiros sinalizarem que civilidade esportiva e patriotismo também combinam.Tudo computado, mas diferentemente da Eco-92, o Pan-2007 lotou o metrô de desertores do transporte público, encheu calçadas, devolveu ruas aos passantes e vestiu o Rio com sua gente. Não erradicou a violência nem eliminou a criminalidade. Apenas plantou raízes para apaixonar pelo esporte toda uma geração de menores sem rumo — e estes sim, no futuro, talvez diminuam a violência e a criminalidade. Há tempos não se tem uma chance tão grande. Ela não se repetirá tão cedo. Resta àquele Brasil de sempre parar de discursar e começar a fazer. A todos nós, cabe cobrar e correr atrás.
Um comentário:
cadê a foto do REI REQUIÃO Marta?
Postar um comentário