De Roberto Romano:
Correio Popular.CampinasPublicada em 24/10/2007, Roberto Romano
Impostos e dissimulação
A dissimulação é técnica de governo usada desde as primeiras sociedades políticas. Maquiavel paga as contas dos soberanos que dela abusam. O extremo da dissimulação encontra-se na invisibilidade do poderoso. Exemplo dado na República platônica, o pastor Giges é modelo do poder secreto que viola as leis comuns. Giges descobre certo anel valioso. Ao girar a jóia no dedo, ele torna-se invisível. Segue para a capital e mata o rei, o sucede na cama da rainha e no trono. Alguém é justo sem o controle do olhar público?
Os golpes de estados são urdidos e feitos na calada da noite, quando a cidadania adormece. O mesmo ocorre com os “planos econômicos” e similares.Montaigne e Bacon escreveram sobre a dissimulação, o segredo, a tirania. “Três são as grandes vantagens da simulação e da dissimulação. Primeira: adormecer a oposição, a surpreendendo. Pois onde as intenções de um homem são publicadas, surgem alaridos dos adversários. Segunda vantagem: garantir à pessoa uma justa retirada. Porque se ela empenha a si mesma em declaração manifesta, deve sustentá-la até o fim, ou então cair. Terceira: melhor captar a mente alheia, pois à pessoa que abre a si mesma, as outras dificilmente se mostrarão”. (Bacon, Essays).
Ao elogio da técnica política, responde Montaigne: “O primeiro traço da corrupção dos costumes é o banimento da verdade. Dizia Pindaro que ser verdadeiro é o começo de uma grande virtude. Este é o primeiro artigo que Platão exige do governante, na República. Nossa verdade de hoje, não é o que é, mas o que persuade os demais, como chamamos ‘moeda’ não só a legal, mas também a falsa. Nossa gente aproximou-se há muito tempo daquele vício. Salvianus Massiliensis, que vivia sob o imperador Valentiano, disse que para os franceses mentir e perjurar não seria vício, mas modo de falar. Quem deseja usar este testemunho, diga que tal vício tornou-se virtude. Nos formamos, nos aprestamos, como se ele fosse exercício de honra. A dissimulação é uma das qualidades mais notáveis deste século. (...) Existe covardia maior do que desdizer a própria palavra? Ou desdizer a própria ciência?
Mentir é vício vilão, pintado vergonhosamente por um antigo que afirma ser ele testemunho contra Deus e, de quando em quando, medo dos homens. Impossível representar mais ricamente o horror, a vileza e o desregramento, pois seria impossível imaginar algo mais vil do que ser covarde diante dos homens e bravo diante de Deus” (Essays).Luis 11 da França (1461-1483), “o rei aranha”, ficou conhecido na crônica política pelo seguinte enunciado: “Qui nescit dissimulare, nescit regnare” (Quem não sabe dissimular, não sabe governar).
As invectivas mais constantes dirigidas contra ele, giram ao redor das taxas e impostos excessivos. A sua dissimulação enganou, segundo os adversários, a plebe e as elites, delas arrancando os ossos e a alma em tributos, sempre com desculpas ardilosas. Mas Filipe o Belo, antes dele, quando colocou sob as costas dos contribuintes pesadas exações, as denominou “provisórias”.
Publiquei, em revista especializada, um texto sobre o tema (Roberto Romano: Reflexões sobre impostos e raison d´état, Revista de Economia Mackenzie, ano 2, nº 2 in http://www.mackenzie.com.br/editoramackenzie/revistas/economia/eco2n2/reveco2n2_art2.pdf). Ali, procuro mostrar as imposturas dos poderosos na caça de impostos.
O nosso governo herda a pior das práticas geradas pelo Estado moderno. Aqui, os dirigentes simulam o interesse público (a saúde, na CPMF) para arrancar recursos destinados a comprar alianças eleitorais. E as oposições dissimulam seus próprios interesses, prestando-se à vileza de auxiliar o Executivo.
A mentira invade os poros da república e recebe nome de batismo honorável. A força física, a norma jurídica, os impostos (monopólios do Estado), em nossa terra entram no jogo da farsa grotesca. Alguns políticos simulam governar, a oposição dissimula seus alvos secretos, vendendo a si mesma na alcova do governo. E nós, bem, nós pagamos os ingressos para assistir a violência que nos aniquila. A maioria dos confiscados, no entanto, aplaude. Santa dissimulação.
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