CORREIO POPULAR DE CAMPINAS 27/2/2008
LARÁPIAS E PRIVILEGIADAS EXCELÊNCIAS
POr Roberto Romano
Caso tenha caído no conto dos ex-campeões da “ética na política”, ou acredita que o dinheiro usado nos cartões corporativos é pouco, suspeite você da fala que veicula tais juizos. Quem ironiza a “CPI da Tapioca”, quer meter a mão em nosso bolso. Transformar um problema vasto em metonímia supostamente cômica é camuflagem. Medite sobre as falas seguintes: “O queijo era para o menino, que tem três anos.”
José Luciano da Silva Júnior, artista plástico que vive em Maceió (AL) e está preso há mais de quatro meses em uma cela de cerca de 6 m2 em uma delegacia por ter furtado uma lata de leite e um pacote de queijo para seu enteado (Folha de São Paulo). Segunda fala: “Eu quero meu dinheiro. E não venha com desconto de INSS, não, porque isso é dinheiro roubado. (...) É melhor você me dar do que sair tudo (todo mundo) algemado dessa porra”. (Gilberto Gonçalves (PMM), para diretor de Recursos Humanos da Assembléia de Alagoas, Roberto Menezes, em gravação da PF aprovada judicialmente na Operação Taturana, março/abril 2007, Folha de São Paulo). Insisto em deixar o palavrão, pois ele mostra o que pensam certos parlamentares sobre a “Casa do Povo”.
Em Alagoas, um ser humano está preso há quatro meses por se apropriar de um queijo e de uma lata de leite para o enteado de três anos.
Onde está a Justiça que convive com tais disparidades como se nada houvera? Com certeza, autoridades que aceitam tal situação, nada leram sobre o “direito de necessidade”. Hegel, autor avesso à demagogia, define nas Lições sobre a Filosofia do Direito (§127) o que deve ser aquele direito: “Em caso de perigo supremo e nos conflitos que surgem a propósito da propriedade jurídica de outrem, a existência pessoal tem um direito de necessidade (Notrecht) que deve prevalecer”. Hegel exemplifica com a imunidade a ser concedida ao devedor, a quem o credor, em tempos remotos, deveria deixar seus instrumentos de trabalho, roupas, casa, o necessário à sua manutenção.
Em nota, o filósofo é explícito. “Enquanto é conjunto de fins, a vida tem um direito contra o direito abstrato” (Das Leben....hat ein Recht gegen das abstrakte Recht). Semelhante tese causa espanto em nossos dias.Hegel diz mais: “Se o roubo de um pão pode prolongar a vida, é manifestamente um atentado à propriedade de um homem, mas seria injusto (unrecht) considerar tal ação como roubo comum. Se não fosse permitido ao homem, cuja vida é ameaçada, agir deste modo, nós o consideraríamos como um ser privado de direitos (rechtlos) e negaríamos sua liberdade recusando-lhe o direito de viver”. Basta abrir o jornal para saber que pessoas são mortas em supermercados, porque roubaram um pão ou bolo. Voltemos ao texto hegeliano: “é no presente que precisamos viver, o futuro não é absoluto e está exposto às contingências. Por isto, só a necessidade do presente justifica uma ação contrária ao direito, pois, se nos abstivéssemos de praticar tal ação contrária ao direito, cometeríamos uma injustiça ainda mais grave, negando totalmente a existência da liberdade”.
No “direito de necessidade” há o item que só podemos ler em edições críticas: “o homem que morre de fome tem o direito absoluto de violar a propriedade de um outro; ele viola a propriedade de um outro apenas em seu conteúdo limitado. No direito de necessidade extrema entende-se que ele não viola os direitos de um outro enquanto direito: o interesse volta-se apenas para um pedaço de pão; ele não trata o outro como pessoa privada de direitos”. Quantos advogados, juízes, governantes ousam sentenciar o direito de necessidade?
No Brasil existe privilégio de foro para quem rouba, sem nenhuma necessidade, milhões do erário público. Mas castigos violentos aplicados nos que se apropriam, por necessidade, de um queijo. Quando a base parlamentar do governo debocha e diminui a culpa de seus pares, afirma que o roubado é muito pouco e usa o nome de “tapioca” para a CPI dos cartões, ela esconde que o furto pequeno é feito pelos humildes, o imenso é praticado pelas “Excelências”. E se você aprova tal propaganda, merece os seus governantes.
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