O PAPEL DOS GRAMÁTICOS
José Augusto Carvalho, Professor de Linguística da Universidade Federal do Espírito Santo, Dr pela Unicamp
Há uma crença generalizada de que os atos de fala individuais explicam as mudanças históricas das formas linguísticas. Em outras palavras: cada falante de uma língua contribuiria para a evolução dessa língua. É certo que a repetição de uma forma diferente pode ser adotada por outros falantes e generalizar-se, contribuindo para que a língua sofra mudanças. Por exemplo: Castro Lopes propôs muitas palavras novas, como “convescote” ou “protofonia”, por exemplo, para substituir estrangeirismos, como o inglês “picnic” e o francês “ouverture”, respectivamente, e Cândido de Figueiredo propôs frases pretensamente mais vernáculas, como, v.g., “galinha em molho pardo”, para substituir construções estrangeiras, como o galicismo “galinha ao molho pardo”.
Algumas dessas propostas tiveram acolhida, mas o falante não é o único fator de mudança linguística. Há outros fatores, como o grupo social e a área geográfica, que contribuem para a evolução e estratificação de uma língua. Assim, o português formou-se a partir do uso popular da soldadesca inculta, em princípio condenável pelos gramáticos latinos de então, e apenas em parte da Península Ibérica. Além dos Alpes e dos Pirineus formaram-se do latim outras línguas, como o francês, o ocitânico, o provençal, o rético, o romeno... Entregue a si mesma, sem o freio da educação linguística formal de seus usuários, o latim só poderia seguir as suas diversas derivas regionais e esfacelar-se em romanços vários que evoluíram para as línguas neolatinas atuais. Havia o perigo das invasões bárbaras e a preocupação com a própria sobrevivência, acima dos interesses, hoje bastante fortes, da preservação da cultura e da unidade linguística e territorial.
O ensino sistemático da gramática como instrumento de imposição de um dialeto prestigioso talvez não impedisse, mas certamente retardaria a permanente (e lenta) mutabilidade das línguas, com um resultado possível: ao lado do dialeto culto, haveria (como há hoje) os dialetos populares. Isto é: se a gramática da norma culta latina tivesse sido permanentemente ensinada, sem interrupções, o latim dos escritores e dos patrícios romanos teria possivelmente sobrevivido (com alterações pouco substanciais) ao lado das atuais línguas neolatinas, e estaríamos vivendo hoje um caso especial de diglossia: o latim usado nos textos oficiais ou em público e o português usado entre amigos ou no lar, como ocorre atualmente com o árabe clássico e o árabe popular, em alguns países árabes.
É só parcialmente verdadeira a crença de que o uso faz a língua, porque é à própria língua que cabe permitir o uso que vai atuar sobre ela. O gramático consciente (o que não é apenas repetidor dos outros gramáticos, nem inventor de regras sem respaldo científico) apenas entra como intérprete da índole lingüística. Quando corrige a frase “Ele saiu para mim ficar” para “Ele saiu para eu ficar”, o professor está apenas sendo coerente com outras estruturas semelhantes da língua em que é impossível usar “mim” como sujeito. É a própria língua que impede esse uso generalizado de “mim” como sujeito do infinitivo em construção com a preposição “para”, que nenhuma outra preposição admite. Se fosse possível dizer “Ele saiu sem mim ficar”, então a correção do professor seria inadequada, porque a língua estaria aceitando esse uso. O professor corrige o falante que diz “Eu te vi porque você estava lá”, porque a própria língua recusa a coocorrência do pronome “te” com o sujeito “você”, do contrário seria possível dizer “você” com “te” na mesma oração, como em “Você te viu no espelho”. O objetivo do gramático é exatamente o de interpretar as estruturas da língua e, a partir daí, sugerir as formas a serem usadas. Nem todo uso, portanto, consegue fazer a língua. Nem todo gramático é apenas um arbitrário “legislador” da língua.
Nenhum comentário:
Postar um comentário