FALSAS ETIMOLOGIAS
José Augusto Carvalho, Professor de Linguística da Universidade do Espírito Santo, Mestre em Linguística pela Unicam e Dr pela USP.
Há algum tempo, Pasquale Cipro Neto divulgou na Internet explicações incorretas de expressões populares, como “batatinha quando nasce espalha a rama pelo chão” (o correto mesmo é “se esparrama pelo chão”), “esculpido e encarnado” (o correto é realmente “cuspido e escarrado”; a expressão veio do francês, em que o verbo “cracher”, escarrar, também significa identidade, donde a palavra “crachat”, escarro, que deu origem ao português “crachá”, designativo da plaquinha de identificação que as pessoas trazem no peito; em inglês, “spit”, cuspo, também é usado como identificação); “corre de burro quando foge” (forma que Castro Lopes sugeriu para corrigir a expressão adequada “cor de burro quando foge”, em que “burro” designa a cor vermelha que um fujão apresenta, e não o animal; de “burro”, cor, temos palavras como “borro”, designativa do carneiro entre um e dois anos, e “borracho”, que designa o pombo sem penas, por sua coloração avermelhada, e possivelmente “borrega”, ovelha de um ano); “quem tem boca vaia – verbo vaiar – Roma” (o correto é exatamente “quem tem boca vai – verbo ir – a Roma”, frase originada das peregrinações a Roma, donde palavras como “romaria” e “romeiro”, associadas à peregrinação); “ ter bicho no corpo inteiro” (o correto é “ter bicho-carpinteiro”, referência, segundo Leite de Vasconcelos, ao oxiuro que provoca pruridos anais e movimentos sacudidos); “quem não tem cão caça como gato”, isto é, “sozinho” (o correto é mesmo “quem não tem cão caça com gato”). Essas explicações são anticientíficas, sem respaldo documental, e devem ser desprezadas.
A prática de inventar explicações não é nova. Fernão de Oliveira, no séc. XVI, alertava contra as adivinhações que tentassem explicar as dicções portuguesas, como: homem, porque está no meio; mulher, porque é mole; tempo, porque tempera as coisas; pássaro, porque passa voando, etc. (Ver A gramática da linguagem portuguesa. Ed. de Maria Leonor Carvalhão Buescu. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1975, p. 83.). No séc. XVII, Ménage fazia de faba o étimo de haricot, e o nosso Castro Lopes explicava carnaval como oriundo de lupercália, ou, então, de canto arval (informação de Machado de Assis, citado por Izidoro Blikstein, no artigo “As etimologias de Ménage”, publicado em Língua e literatura, v. 6, n. 6, 1977, p. 100).
Reinaldo Pimenta, no livro A casa de Mãe Joana (8.ed. Rio de Janeiro: Campus, 2002, p. 56), comete a ingenuidade de dizer que o nome “bissexto” se chama assim “porque o ano de 366 dias tem duas vezes o número seis” . O calendário romano tinha três datas com nome próprio: Kalendae ou Calendas (o primeiro dia de cada mês), Nonae ou Nonas (o dia 5 de todos os meses, exceto março, maio, julho e outubro, em que Nonae designava o dia 7) e Idus ou Idos (o dia 15 para aqueles quatro meses e o dia 13 para os outros meses). Os outros dias de cada mês eram citados a partir daqueles três nomes. Exemplifiquemos: o dia 3 de abril era chamado “o terceiro dia antes das nonas de abril” (“ante diem tertium nonas Apriles”); a expressão “desde 3 de junho até 31 de agosto” se dizia em latim como “terceiro dia antes das nonas de junho até o primeiro das calendas de setembro” (“ante diem III Nonas Junias usque ad pridie Kalendas Septembres”).
O dia 24 de fevereiro era chamado “o sexto das calendas de março”. No nosso calendário, o gregoriano, no ano bissexto, temos um dia a mais, acrescentado ao último dia do mês de fevereiro. Mas, no calendário juliano, o dia a mais era acrescentado ao dia 24. Ou melhor: havia dois dias de número 24. Portanto, havia duas vezes o sextus dies (bis sextus) antes das calendas de março. Desses dois sextos é que se originou a expressão “ano bissexto”.
A palavra “gringo”, segundo informação também indevida de Silveira Bueno, no livro Tratado de semântica brasileira (4.ed. São Paulo: Saraiva, 1965, p. 115), teria vindo das primeiras palavras de uma canção americana utilizada pela cavalaria dos Estados Unidos, na guerra contra o México, no séc. XIX: “Green go the rashes O / the happiest hours that here I spent / were spent among the lasses O.” Os dicionários etimológicos de Corominas, de José Pedro Machado e de A.G.Cunha atribuem a gringo uma variação de griego. O dicionário de Corominas, mais informativo e mais preciso, no verbete griego, cita o dicionarista Esteban de Terreros y Pando, do séc. XVIII: “Gringos llaman en Málaga a los estranjeros, que tienen cierta especie de acento, que los priva de una locución fácil y natural Castellana, y en Madrid dan el mismo nombre con particularidad a los irlandeses”. Ora, se gringo já estava dicionarizado no séc. XVIII, não se pode atribuir-lhe origem mexicana no séc. XIX, na época da guerra com os Estados Unidos.
A etimologia popular ensina que “forró” se origina do inglês “for all”. Mas “forró” é apenas a forma abreviada de “forrobodó”. O problema está, portanto, em explicar a origem de “forrobodó”, que “for all”, obviamente, não explica.
É possível que “forrobodó” tenha nascido no Nordeste, segundo se depreende da lição de Câmara Cascudo (Dicionário do Folclore Brasileiro, 5.ed. rev. e aum. São Paulo: Nacional, 1967, s.v.) e tinha uma conotação original de desprestígio social, porque “nele tomam parte indivíduos de baixa esfera social” e, no Ceará, era um “baile de canalha”, ainda segundo Câmara Cascudo, que informa que a primeira atestação de “forrobodó” parece ser de 1882.
Macedo Soares, no seu Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa (MEC/INL, 1954, vol. I – 1955, vol. II), acredita que “forrobodó” seja uma corruptela de “farrobodó”, de mesma raiz “far-“ de “farrundu” (variante: furrundu), que designa “dança rasgada, ruidosa, sem preceito, desordenada (s.v. furrundu). “Farrundu” seria originário de “far-” (trapo, rasgão, desordem) + “lundu” (dança angolesa). Como membros da mesma família de “farrobodó”, com a raiz “far-“, Macedo Soares enumera, no verbete “farpela” (designativo de “prostituta reles, meretriz pobre e andrajosa”), os seguintes vocábulos, entre muitos outros: farpa, farrapo, farroupilha, farândula, farfalha, fanfarrão e harpa.
Assim, “forrobodó” seria uma variação de “farrobodó”. Com relação ao primeiro elemento, “far-”, parece-me que é de mesma origem o vocábulo “forró”, ainda em curso no falar alagoano. No “Vocabulário e fraseologia”, glossário que compõe a segunda parte do seu livro Dinâmica de uma Linguagem (sobre o falar de Alagoas) (Maceió: Universidade Federal de Alagoas, 1976), Paulino Santiago registra o verbete “forró”, socialmente estigmatizado, com o significado de “frouxo, lasso, relaxado, com particular referência às prostitutas”. Vê-se que o sentido da raiz “far-” permanece no termo “forró”.
Assim como “farrundu” seria formado de dois elementos, “farrobodó” ou “forrobodó” também teria dois elementos em sua formação. Se não há dúvidas quanto ao primeiro, “forró” (a mudança do a para o seria explicada por assimilação), como explicar o segundo?
No Dicionário do Aurélio, está consignado no verbete “bruxaria” o sinônimo “bozó”, de curso no Ceará, ao lado de “fobó”(s.v. arrasta-pé), possivelmente alteração de “forró”, que, entre outras coisas, significa, como na Bahia, além de “bruxaria” (s.v.), “despacho”, “macumba”. É possível, portanto, que “forrobodó” seja a junção de “forró”, desordem, com “bozó”, macumba. O Houaiss cita explicação de Bechara, segundo a qual “forrobodó” seria oriundo do galego forbodó, pelo francês “faux-bourdon”, o que não me parece muito provável, primeiro porque “faux-bourdon” designa um processo de escrita musical oriunda da Inglaterra ou um canto religioso, e não um baile de gente humilde; segundo, porque forbodó é originalmente um regionalismo, e se pronuncia “forbodo”, paroxítono, em galego, e não oxítono; terceiro: não sei se o termo é realmente comum em Portugal, como assevera o Dicionário; e quarto: forrobodó poderia ser, originalmente, “macumba ruidosa e desordenada”, a julgar pelo que diz Renato Mendonça (A Influência Africana no Português do Brasil, Rio: MEC/ Civilização Brasileira, 1973, p. 76 e 80), isto é, talvez “forrobodó” não designasse originariamente a dança, mas apenas a macumba. Câmara Cascudo fala em forrobodança, no seu Dicionário (s.v.). Forrobodança seria forrobodó-dança, com redução haplológica, donde “forrobodó”.
Si non è vero...
José Augusto Carvalho, Professor de Linguística da Universidade do Espírito Santo, Mestre em Linguística pela Unicam e Dr pela USP.
Há algum tempo, Pasquale Cipro Neto divulgou na Internet explicações incorretas de expressões populares, como “batatinha quando nasce espalha a rama pelo chão” (o correto mesmo é “se esparrama pelo chão”), “esculpido e encarnado” (o correto é realmente “cuspido e escarrado”; a expressão veio do francês, em que o verbo “cracher”, escarrar, também significa identidade, donde a palavra “crachat”, escarro, que deu origem ao português “crachá”, designativo da plaquinha de identificação que as pessoas trazem no peito; em inglês, “spit”, cuspo, também é usado como identificação); “corre de burro quando foge” (forma que Castro Lopes sugeriu para corrigir a expressão adequada “cor de burro quando foge”, em que “burro” designa a cor vermelha que um fujão apresenta, e não o animal; de “burro”, cor, temos palavras como “borro”, designativa do carneiro entre um e dois anos, e “borracho”, que designa o pombo sem penas, por sua coloração avermelhada, e possivelmente “borrega”, ovelha de um ano); “quem tem boca vaia – verbo vaiar – Roma” (o correto é exatamente “quem tem boca vai – verbo ir – a Roma”, frase originada das peregrinações a Roma, donde palavras como “romaria” e “romeiro”, associadas à peregrinação); “ ter bicho no corpo inteiro” (o correto é “ter bicho-carpinteiro”, referência, segundo Leite de Vasconcelos, ao oxiuro que provoca pruridos anais e movimentos sacudidos); “quem não tem cão caça como gato”, isto é, “sozinho” (o correto é mesmo “quem não tem cão caça com gato”). Essas explicações são anticientíficas, sem respaldo documental, e devem ser desprezadas.
A prática de inventar explicações não é nova. Fernão de Oliveira, no séc. XVI, alertava contra as adivinhações que tentassem explicar as dicções portuguesas, como: homem, porque está no meio; mulher, porque é mole; tempo, porque tempera as coisas; pássaro, porque passa voando, etc. (Ver A gramática da linguagem portuguesa. Ed. de Maria Leonor Carvalhão Buescu. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1975, p. 83.). No séc. XVII, Ménage fazia de faba o étimo de haricot, e o nosso Castro Lopes explicava carnaval como oriundo de lupercália, ou, então, de canto arval (informação de Machado de Assis, citado por Izidoro Blikstein, no artigo “As etimologias de Ménage”, publicado em Língua e literatura, v. 6, n. 6, 1977, p. 100).
Reinaldo Pimenta, no livro A casa de Mãe Joana (8.ed. Rio de Janeiro: Campus, 2002, p. 56), comete a ingenuidade de dizer que o nome “bissexto” se chama assim “porque o ano de 366 dias tem duas vezes o número seis” . O calendário romano tinha três datas com nome próprio: Kalendae ou Calendas (o primeiro dia de cada mês), Nonae ou Nonas (o dia 5 de todos os meses, exceto março, maio, julho e outubro, em que Nonae designava o dia 7) e Idus ou Idos (o dia 15 para aqueles quatro meses e o dia 13 para os outros meses). Os outros dias de cada mês eram citados a partir daqueles três nomes. Exemplifiquemos: o dia 3 de abril era chamado “o terceiro dia antes das nonas de abril” (“ante diem tertium nonas Apriles”); a expressão “desde 3 de junho até 31 de agosto” se dizia em latim como “terceiro dia antes das nonas de junho até o primeiro das calendas de setembro” (“ante diem III Nonas Junias usque ad pridie Kalendas Septembres”).
O dia 24 de fevereiro era chamado “o sexto das calendas de março”. No nosso calendário, o gregoriano, no ano bissexto, temos um dia a mais, acrescentado ao último dia do mês de fevereiro. Mas, no calendário juliano, o dia a mais era acrescentado ao dia 24. Ou melhor: havia dois dias de número 24. Portanto, havia duas vezes o sextus dies (bis sextus) antes das calendas de março. Desses dois sextos é que se originou a expressão “ano bissexto”.
A palavra “gringo”, segundo informação também indevida de Silveira Bueno, no livro Tratado de semântica brasileira (4.ed. São Paulo: Saraiva, 1965, p. 115), teria vindo das primeiras palavras de uma canção americana utilizada pela cavalaria dos Estados Unidos, na guerra contra o México, no séc. XIX: “Green go the rashes O / the happiest hours that here I spent / were spent among the lasses O.” Os dicionários etimológicos de Corominas, de José Pedro Machado e de A.G.Cunha atribuem a gringo uma variação de griego. O dicionário de Corominas, mais informativo e mais preciso, no verbete griego, cita o dicionarista Esteban de Terreros y Pando, do séc. XVIII: “Gringos llaman en Málaga a los estranjeros, que tienen cierta especie de acento, que los priva de una locución fácil y natural Castellana, y en Madrid dan el mismo nombre con particularidad a los irlandeses”. Ora, se gringo já estava dicionarizado no séc. XVIII, não se pode atribuir-lhe origem mexicana no séc. XIX, na época da guerra com os Estados Unidos.
A etimologia popular ensina que “forró” se origina do inglês “for all”. Mas “forró” é apenas a forma abreviada de “forrobodó”. O problema está, portanto, em explicar a origem de “forrobodó”, que “for all”, obviamente, não explica.
É possível que “forrobodó” tenha nascido no Nordeste, segundo se depreende da lição de Câmara Cascudo (Dicionário do Folclore Brasileiro, 5.ed. rev. e aum. São Paulo: Nacional, 1967, s.v.) e tinha uma conotação original de desprestígio social, porque “nele tomam parte indivíduos de baixa esfera social” e, no Ceará, era um “baile de canalha”, ainda segundo Câmara Cascudo, que informa que a primeira atestação de “forrobodó” parece ser de 1882.
Macedo Soares, no seu Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa (MEC/INL, 1954, vol. I – 1955, vol. II), acredita que “forrobodó” seja uma corruptela de “farrobodó”, de mesma raiz “far-“ de “farrundu” (variante: furrundu), que designa “dança rasgada, ruidosa, sem preceito, desordenada (s.v. furrundu). “Farrundu” seria originário de “far-” (trapo, rasgão, desordem) + “lundu” (dança angolesa). Como membros da mesma família de “farrobodó”, com a raiz “far-“, Macedo Soares enumera, no verbete “farpela” (designativo de “prostituta reles, meretriz pobre e andrajosa”), os seguintes vocábulos, entre muitos outros: farpa, farrapo, farroupilha, farândula, farfalha, fanfarrão e harpa.
Assim, “forrobodó” seria uma variação de “farrobodó”. Com relação ao primeiro elemento, “far-”, parece-me que é de mesma origem o vocábulo “forró”, ainda em curso no falar alagoano. No “Vocabulário e fraseologia”, glossário que compõe a segunda parte do seu livro Dinâmica de uma Linguagem (sobre o falar de Alagoas) (Maceió: Universidade Federal de Alagoas, 1976), Paulino Santiago registra o verbete “forró”, socialmente estigmatizado, com o significado de “frouxo, lasso, relaxado, com particular referência às prostitutas”. Vê-se que o sentido da raiz “far-” permanece no termo “forró”.
Assim como “farrundu” seria formado de dois elementos, “farrobodó” ou “forrobodó” também teria dois elementos em sua formação. Se não há dúvidas quanto ao primeiro, “forró” (a mudança do a para o seria explicada por assimilação), como explicar o segundo?
No Dicionário do Aurélio, está consignado no verbete “bruxaria” o sinônimo “bozó”, de curso no Ceará, ao lado de “fobó”(s.v. arrasta-pé), possivelmente alteração de “forró”, que, entre outras coisas, significa, como na Bahia, além de “bruxaria” (s.v.), “despacho”, “macumba”. É possível, portanto, que “forrobodó” seja a junção de “forró”, desordem, com “bozó”, macumba. O Houaiss cita explicação de Bechara, segundo a qual “forrobodó” seria oriundo do galego forbodó, pelo francês “faux-bourdon”, o que não me parece muito provável, primeiro porque “faux-bourdon” designa um processo de escrita musical oriunda da Inglaterra ou um canto religioso, e não um baile de gente humilde; segundo, porque forbodó é originalmente um regionalismo, e se pronuncia “forbodo”, paroxítono, em galego, e não oxítono; terceiro: não sei se o termo é realmente comum em Portugal, como assevera o Dicionário; e quarto: forrobodó poderia ser, originalmente, “macumba ruidosa e desordenada”, a julgar pelo que diz Renato Mendonça (A Influência Africana no Português do Brasil, Rio: MEC/ Civilização Brasileira, 1973, p. 76 e 80), isto é, talvez “forrobodó” não designasse originariamente a dança, mas apenas a macumba. Câmara Cascudo fala em forrobodança, no seu Dicionário (s.v.). Forrobodança seria forrobodó-dança, com redução haplológica, donde “forrobodó”.
Si non è vero...
2 comentários:
Aparentemente forrobodó vem de farrobodó do Conde de Farrobo.
Há quem tenha ainda outras teorias para a origem da palavra forrobodó (http://vozesdebruxelas.blogspot.com/2009/06/forobodo-barao-de-quintela-conde-de.html).
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