Imagem: Andy W.
O ARTIGO – GÊNERO E CONCORDÂNCIA
José Augusto Carvalho, Professor Dr da Universidade Federal do Espírito Santo
José Augusto Carvalho, Professor Dr da Universidade Federal do Espírito Santo
Grata pelo envio, professor!
Bons gramáticos, como Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova gramática do português contemporâneo) e Rocha Lima (Gramática normativa da língua portuguesa) afirmam que o nome próprio oriundo de um nome comum se constrói com o artigo: o Porto, o Cairo (de El-Kahira, a vitoriosa), o Rio de Janeiro, o Havre (que significa “o porto”). O problema é que todos os nomes próprios (de lugar ou de pessoa) de alguma forma se originaram de adjetivos ou de nomes comuns, como Cláudio (o capenga; daí vem o verbo “claudicar”), Honório (que recebe honras), Ricardo (príncipe forte), Lituânia (terra chuvosa), Sagres (sagrado), etc. Muitos nomes de lugar no ES vêm de nomes comuns e se usam sem artigo: Vitória, Castelo, Cachoeiro, Guarapari (“curral das garças”), etc.
As gramáticas são omissas quanto ao gênero de substantivos que se tornaram próprios no plural e que, portanto, perderam a idéia de pluralidade. Alagoas, por exemplo, pode ser usado facultativamente com o artigo feminino (as Alagoas), mas Amazonas só admite o artigo masculino, que Drummond usa no plural, no poema “Hino Nacional”, do livro Brejo das Almas (p. 45 da edição de suas obras completas – Poesia e Prosa __,da Ed. Aguilar, de 1988, de onde tiro todos os exemplos; o número entre parênteses, após cada citação, indica a página em que o exemplo se encontra).
Não é a origem feminina do nome que determina o uso do artigo ou de um adjetivo no feminino. Belo Horizonte, embora masculino na origem, é feminino como nome próprio: a desprevenida Belô (p. 718; note-se o hiperbibasmo do tipo diástole, isto é, o deslocamento para a frente do acento tônico de “Belo”). Não se pode dizer que está subentendida a palavra “cidade”, porque em “Minas orgulhosa” (431), ou em “pura Minas” (711), por exemplo, não está subentendida a palavra “estado”. Além disso, só há elipse quando o termo subentendido pode ser recuperado no texto ou contexto anterior (por anáfora), o que elimina a possibilidade de se chamar “elíptico” ao sujeito de uma oração em que se suprimiu o pronome reto, como em “Vamos embora”, por exemplo, já que “eu”, (“nós”) ou “tu” (“você”, “vós”, “vocês”) são pronomes exofóricos, isto é, são dêiticos, que remetem sua significação a agentes fora do texto, à situação do discurso.
Não há razão específica para que Londres seja do gênero feminino, e Paris seja do gênero masculino. Não há razão para que Alagoas possa ter diante de si o artigo feminino plural, e não o singular, como o Amazonas. Nem há razão para que nomes como Ásia, Holanda, Europa, França, Espanha, Inglaterra e África (que formam a frase mnemônica “Ah, é feia!”) sejam articulados facultativamente. Drummond escreve “Europa” sem artigo: “Cai neve em Parnaíba (...) seus filhos que jamais viram Europa” (784). Rui Barbosa escreveu “Inglaterra”, sem artigo, no título de seu livro de 1896: Cartas de Inglaterra.
Uma coisa é certa: há nomes que rejeitam obrigatoriamente o artigo, exceto quando seguidos ou precedidos de outro(s) determinante(s), como Portugal, Lisboa, Paris, Cabo Verde, Salvador e outros; há os que podem ser precedidos ou não, facultativamente, do artigo, como (o) Recife, (o) Marrocos, (a) Serra e os nomes que formam o acrônimo “Ah, é feia!”, acima citado; e há os que exigem obrigatoriamente o artigo, como Estados Unidos, Brasil, Rússia (exceto nas enumerações, como aqui, ou em manchetes de Jornal). Assim, uma frase como “Estados Unidos invadem o Iraque” é admissível como manchete de periódico, em que a ausência do artigo se permite talvez por economia de espaço; mas a concordância verbal se faz como se o artigo estivesse lá, isto é, a ausência eventual do artigo diante de nomes próprios que o exigem não implica mudança nas regras de concordância. Em títulos, contudo, a concordância verbal se faz com o artigo: “Os Sertões constituem uma obra-prima de Euclides da Cunha.” Se o título não tem artigo, a concordância se faz no singular: “Locuções tradicionais do Brasil, de Câmara Cascudo, presta bons serviços ao estudioso.” Se o título original tem artigo, não se deve suprimi-lo nunca. Euclides da Cunha escreveu Os Sertões, e não “Sertões”; Luís de Camões escreveu Os Lusíadas e não “Lusíadas”. A concordância verbal no singular com títulos articulados no plural só é admissível com o verbo “ser”, se o predicativo é singular: “Os Lusíadas (são) é um belo poema.”
O artigo pode usar-se facultativamente diante de nomes próprios de pessoas e diante de possessivo, mas é omitido obrigatoriamente diante de vocativo, de demonstrativo ou de pronome de tratamento formado por possessivo + substantivo abstrato, incluindo você. É por não ser articulado o vocativo que fica estranha a frase “Vinde a mim as criancinhas”, que encerra a letra de uma música popular antiga. O correto seria “Vinde a mim, criancinhas” ou “Venham a mim as criancinhas”. O artigo definido e os pronomes pessoais de 3ª pessoa originaram-se do demonstrativo latino ille, illa, illud. Já por isso o artigo definido e o demonstrativo se excluem mutuamente, isto é, não podem coocorrer diante do mesmo nome.
Quando há elipse nominal, um elemento periférico (adjunto) passa a exercer a função de núcleo. Assim, em “Vejo ali duas senhoras: a da esquerda é recém-casada”, o “a” é artigo definido e não pronome demonstrativo; a locução “da esquerda”, originalmente adjetiva, passou a ser substantiva, ao tornar-se núcleo do sintagma em que houve elipse. Demonstremos: em “Comprei a camisa de duas cores; e ele comprou a de bolinhas”, se é possível dizer “ele comprou aquela de bolinhas”, também é possível dizer “ele comprou UMA de bolinhas”, e seria absurdo dizer que “uma” é pronome demonstrativo. Em “Ele gosta de camisas azuis, mas eu prefiro as brancas”, “brancas” assume a função nuclear, graças à omissão do substantivo “camisas”, recuperável por anáfora. Ora, se, na frase “Vejo duas senhoras: a da esquerda é recém-casada”, o “a” fosse demonstrativo, também seria o “as” de “as brancas”, na elipse citada. A identidade semântica entre “a” e “aquela” nas frases em análise não implica identidade sintática ou funcional, e ainda menos gramatical.
Da mesma forma, o “a” ou o “o”, complemento verbal, é pronome pessoal e não demonstrativo, embora semanticamente se identifique com ele em: “Que ele era bobo, eu já o sabia”. Esse “o” equivale a “isso”, mas é um pronome pessoal, ainda que se possa dizer que se trata de um pronome pessoal “neutro”, nunca de um demonstrativo. Cf. fr.: “Qu’il était dingo, je LE savais déjà”, em que se usa o pronome pessoal, e não o demonstrativo. Quando o “o” substitui um adjetivo em função predicativa, também é “neutro”: “Eles são felizes, mas eu não o sou”, porque o “o” predicativo não tem o mesmo estatuto do “o” pronome objetivo. A uma mulher a quem se pergunta se é professora, poderá responder “Eu o sou”, nunca “Eu a sou”. Já o pronome pessoal “o” concorda com o seu referente: “Ela chegou tarde, por isso não a vi entrar”. Na frase “Que ele era louco, eu já o sabia”, esse “o” substitui pleonasticamente a oração anterior, por isso está no masculino, que é a ausência de gênero. O “o” ou “a” só é demonstrativo diante de pronome relativo: “Das mulheres, ela é a que eu mais amo”. Ainda que se possa pensar em elipse da palavra “mulher”, o artigo não pode exercer função nuclear. O antecedente de um pronome relativo é sempre um substantivo ou um pronome (um sintagma nominal).
É improcedente, portanto, aludir à semelhança de formas ou à identidade semântica para justificar uma pretensa identidade de funções
Bons gramáticos, como Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova gramática do português contemporâneo) e Rocha Lima (Gramática normativa da língua portuguesa) afirmam que o nome próprio oriundo de um nome comum se constrói com o artigo: o Porto, o Cairo (de El-Kahira, a vitoriosa), o Rio de Janeiro, o Havre (que significa “o porto”). O problema é que todos os nomes próprios (de lugar ou de pessoa) de alguma forma se originaram de adjetivos ou de nomes comuns, como Cláudio (o capenga; daí vem o verbo “claudicar”), Honório (que recebe honras), Ricardo (príncipe forte), Lituânia (terra chuvosa), Sagres (sagrado), etc. Muitos nomes de lugar no ES vêm de nomes comuns e se usam sem artigo: Vitória, Castelo, Cachoeiro, Guarapari (“curral das garças”), etc.
As gramáticas são omissas quanto ao gênero de substantivos que se tornaram próprios no plural e que, portanto, perderam a idéia de pluralidade. Alagoas, por exemplo, pode ser usado facultativamente com o artigo feminino (as Alagoas), mas Amazonas só admite o artigo masculino, que Drummond usa no plural, no poema “Hino Nacional”, do livro Brejo das Almas (p. 45 da edição de suas obras completas – Poesia e Prosa __,da Ed. Aguilar, de 1988, de onde tiro todos os exemplos; o número entre parênteses, após cada citação, indica a página em que o exemplo se encontra).
Não é a origem feminina do nome que determina o uso do artigo ou de um adjetivo no feminino. Belo Horizonte, embora masculino na origem, é feminino como nome próprio: a desprevenida Belô (p. 718; note-se o hiperbibasmo do tipo diástole, isto é, o deslocamento para a frente do acento tônico de “Belo”). Não se pode dizer que está subentendida a palavra “cidade”, porque em “Minas orgulhosa” (431), ou em “pura Minas” (711), por exemplo, não está subentendida a palavra “estado”. Além disso, só há elipse quando o termo subentendido pode ser recuperado no texto ou contexto anterior (por anáfora), o que elimina a possibilidade de se chamar “elíptico” ao sujeito de uma oração em que se suprimiu o pronome reto, como em “Vamos embora”, por exemplo, já que “eu”, (“nós”) ou “tu” (“você”, “vós”, “vocês”) são pronomes exofóricos, isto é, são dêiticos, que remetem sua significação a agentes fora do texto, à situação do discurso.
Não há razão específica para que Londres seja do gênero feminino, e Paris seja do gênero masculino. Não há razão para que Alagoas possa ter diante de si o artigo feminino plural, e não o singular, como o Amazonas. Nem há razão para que nomes como Ásia, Holanda, Europa, França, Espanha, Inglaterra e África (que formam a frase mnemônica “Ah, é feia!”) sejam articulados facultativamente. Drummond escreve “Europa” sem artigo: “Cai neve em Parnaíba (...) seus filhos que jamais viram Europa” (784). Rui Barbosa escreveu “Inglaterra”, sem artigo, no título de seu livro de 1896: Cartas de Inglaterra.
Uma coisa é certa: há nomes que rejeitam obrigatoriamente o artigo, exceto quando seguidos ou precedidos de outro(s) determinante(s), como Portugal, Lisboa, Paris, Cabo Verde, Salvador e outros; há os que podem ser precedidos ou não, facultativamente, do artigo, como (o) Recife, (o) Marrocos, (a) Serra e os nomes que formam o acrônimo “Ah, é feia!”, acima citado; e há os que exigem obrigatoriamente o artigo, como Estados Unidos, Brasil, Rússia (exceto nas enumerações, como aqui, ou em manchetes de Jornal). Assim, uma frase como “Estados Unidos invadem o Iraque” é admissível como manchete de periódico, em que a ausência do artigo se permite talvez por economia de espaço; mas a concordância verbal se faz como se o artigo estivesse lá, isto é, a ausência eventual do artigo diante de nomes próprios que o exigem não implica mudança nas regras de concordância. Em títulos, contudo, a concordância verbal se faz com o artigo: “Os Sertões constituem uma obra-prima de Euclides da Cunha.” Se o título não tem artigo, a concordância se faz no singular: “Locuções tradicionais do Brasil, de Câmara Cascudo, presta bons serviços ao estudioso.” Se o título original tem artigo, não se deve suprimi-lo nunca. Euclides da Cunha escreveu Os Sertões, e não “Sertões”; Luís de Camões escreveu Os Lusíadas e não “Lusíadas”. A concordância verbal no singular com títulos articulados no plural só é admissível com o verbo “ser”, se o predicativo é singular: “Os Lusíadas (são) é um belo poema.”
O artigo pode usar-se facultativamente diante de nomes próprios de pessoas e diante de possessivo, mas é omitido obrigatoriamente diante de vocativo, de demonstrativo ou de pronome de tratamento formado por possessivo + substantivo abstrato, incluindo você. É por não ser articulado o vocativo que fica estranha a frase “Vinde a mim as criancinhas”, que encerra a letra de uma música popular antiga. O correto seria “Vinde a mim, criancinhas” ou “Venham a mim as criancinhas”. O artigo definido e os pronomes pessoais de 3ª pessoa originaram-se do demonstrativo latino ille, illa, illud. Já por isso o artigo definido e o demonstrativo se excluem mutuamente, isto é, não podem coocorrer diante do mesmo nome.
Quando há elipse nominal, um elemento periférico (adjunto) passa a exercer a função de núcleo. Assim, em “Vejo ali duas senhoras: a da esquerda é recém-casada”, o “a” é artigo definido e não pronome demonstrativo; a locução “da esquerda”, originalmente adjetiva, passou a ser substantiva, ao tornar-se núcleo do sintagma em que houve elipse. Demonstremos: em “Comprei a camisa de duas cores; e ele comprou a de bolinhas”, se é possível dizer “ele comprou aquela de bolinhas”, também é possível dizer “ele comprou UMA de bolinhas”, e seria absurdo dizer que “uma” é pronome demonstrativo. Em “Ele gosta de camisas azuis, mas eu prefiro as brancas”, “brancas” assume a função nuclear, graças à omissão do substantivo “camisas”, recuperável por anáfora. Ora, se, na frase “Vejo duas senhoras: a da esquerda é recém-casada”, o “a” fosse demonstrativo, também seria o “as” de “as brancas”, na elipse citada. A identidade semântica entre “a” e “aquela” nas frases em análise não implica identidade sintática ou funcional, e ainda menos gramatical.
Da mesma forma, o “a” ou o “o”, complemento verbal, é pronome pessoal e não demonstrativo, embora semanticamente se identifique com ele em: “Que ele era bobo, eu já o sabia”. Esse “o” equivale a “isso”, mas é um pronome pessoal, ainda que se possa dizer que se trata de um pronome pessoal “neutro”, nunca de um demonstrativo. Cf. fr.: “Qu’il était dingo, je LE savais déjà”, em que se usa o pronome pessoal, e não o demonstrativo. Quando o “o” substitui um adjetivo em função predicativa, também é “neutro”: “Eles são felizes, mas eu não o sou”, porque o “o” predicativo não tem o mesmo estatuto do “o” pronome objetivo. A uma mulher a quem se pergunta se é professora, poderá responder “Eu o sou”, nunca “Eu a sou”. Já o pronome pessoal “o” concorda com o seu referente: “Ela chegou tarde, por isso não a vi entrar”. Na frase “Que ele era louco, eu já o sabia”, esse “o” substitui pleonasticamente a oração anterior, por isso está no masculino, que é a ausência de gênero. O “o” ou “a” só é demonstrativo diante de pronome relativo: “Das mulheres, ela é a que eu mais amo”. Ainda que se possa pensar em elipse da palavra “mulher”, o artigo não pode exercer função nuclear. O antecedente de um pronome relativo é sempre um substantivo ou um pronome (um sintagma nominal).
É improcedente, portanto, aludir à semelhança de formas ou à identidade semântica para justificar uma pretensa identidade de funções
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