TUCA PUC 1977
EU QUASE QUE NADA SEI. MAS DESCONFIO DE MUITA COISA. GUIMARÃES ROSA.

terça-feira, 18 de maio de 2010

favelão



Recebi da Marta Saia, querida amiga...
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Queridos amigos

Mais uma vez a admirável Maria Rita Kehl coloca o dedo na ferida. Enquanto a prefeitura e o governo do Estado flertam com a eugenia, tentando limpar a cidade dos "feios, sujos e malvados", fechando albergues e inaugurando obras farônicas como o Teatro da Dança no coração da cracolância, nós, cidadãos, somos surpreendidos dia-a-dia pela monstruosidade e indiferença das ruas sujas, calçadas quebradas, pessoas dormindo em todos os lugares e se drogando em plena luz do dia. A última ação dos poderes públicos na região da Luz foi digna dos três patetas.


A cidade é leiloada aos empreiteiros e às construtoras com a benção de nosso legislativo que têm os orgãos de preservação do patrimônio em suas mãos. Alguns bairros estão sendo literalmente vitimados por empreendimentos imobiliários, vide o que está acontecendo com Perdizes, até ontem um bairro de classe média e hoje, sufocado por "torres" de tijolinhos aparente e fontes de águas borbulhantes (deve ser a última moda entre os nouveaux riches), perde sua identidade e sua qualidade de vida. Assim está acontecendo com a Pompéia, a Móoca e a Barra Funda. As periferias abandonadas, parece que nem fazem parte da cidade, dos projetos politicamente corretos como o Cidade Limpa e a Lei anti-fumo, pura jogada de marketing político. Tanta preocupação com a poluição visual, e a poluição do ar? E a poluição sonora? Com tantos carros e viadutos a cidade está cada vez mais irrespirável e barulhenta. E por favor, sem bairrismo e nem deslumbramento de querer comparar São Paulo com Nova York e desfilar suas "grandezas" como o número de "Ferraris" e de lojas "Tiffany' s". Melhor apostar na delicadeza.
Boa leitura
Beijos
Marina
PS: O texto de Maria Rita Kehl foi publicado no jornal OESP em 15/05/10.



Se eu fosse Deus e se eu existisse, executaria em São Paulo uma prosaica providência administrativa. Tombaria a cidade inteira pelos próximos dez anos: como está, fica. Não se derruba mais nada, ndão se constrói mais nada. Tratem de melhorar a cidade que já existe: monstruosa, desigual, mal planejada e mal cuidada. Se é para movimentar dinheiro, invistam-se nos espaços públicos: ruas, praças, jardins, calçadas, iluminação, centros de lazer, prevenção contra enchentes – tudo o que faz, de um amontoado de moradias, algo parecido com a magnífica invenção humana chamada cidade. Investir em urbanidade também dá retorno financeiro.
Vista assim do alto, do ponto de vista celeste, São Paulo mais parece uma cidade bombardeada
. Imensas crateras em todos os bairros, quarteirões de casas derrubadas, populações pobres jogadas de lá pra cá à procura de lugar para criar novos campos de refugiados de onde serão expulsas pouco tempo depois. Inundações, trânsito bloqueado, gente desesperada presa dentro dos carros parados, gente enlouquecendo pela dificuldade de tocar o dia a dia. Gente que sente no corpo e na alma os efeitos de viver sob uma cúpula negra de poluição que só se vê de cima. Parece uma guerra, mas é só o capitalismo: bombando, enriquecendo alguns e empobrecendo o resto. Enquanto a cidade se torna infernal, se oferece aos que podem pagar o lenitivo de viver numa torre, bem acima do chão, de onde se finge escapar da realidade urbana. O uso novo-rico da palavra torre substituiu as obsoletas “edifício” e “prédio”, além da simpática e infantil “arranha-céu”. Nas histórias de fadas, a torre era o lugar onde se encarceravam as princesas. Privilégio em São Paulo é viver encerrado numa torre.
Mas como parar todos os negócios imobiliários da cidade? E a economia? E a geração de empregos
? Digamos que, se eu fosse Deus, daria um jeito nisso. Se uma prefeitura rica como a nossa, em vez de se tornar cliente de um setor poderoso, investisse os impostos que recebe em outras atividades, em pouco tempo a cidade recuperaria sua pujança. Digamos que seja possível planejar um pouco a economia municipal. Só assim deixaríamos de ser reféns de quem já detém poder econômico. Dez anos são menos que uma fração de segundo pra quem vê o tempo do ponto de vista da eternidade. Mas quem sabe, tempo suficiente para que a cidade pudesse eleger uma nova prefeitura e uma câmara dos vereadores livres de compromissos com o poderoso Secovi, maior sindicato de comércio imobiliário da América Latina.
Mas – em nome de que Deus faria uma coisa dessas? Em nome de que impediria a cidade de, digamos – “crescer”? Não, Deus não precisaria ser socialista. Nem urbanista. Bastaria agir em nome de um valor que está presente em todas as perspectivas sagradas, religiosas ou simplesmente humanistas: em nome da delicadeza. Bastaria considerar que as cidades não existem para impressionar e oprimir as pessoas, mas para ampliar a esfera da liberdade, das possibilidades e daquilo que se costuma chamar de urbanidade.
Nesse ponto convido o leitor a trocar a vista aérea de São Paulo pelo ponto de vista pedestre. Basta descer um pouco do carro e passear a esmo pelas ruas. Se achar a proposta muito mixuruca, finja que é Baudelaire flanando por Paris no século 19, tentando captar o que sobrou da antiga cidade depois da monumental reforma executada por Haussmann a mando de Napoleão III. Ou finja que você é o João do Rio, cronista da capital brasileira reformada por Pereira Passos. A diferença, claro, é que essas duas enormes destruições/reconstruções urbanas foram planejadas visando a modernizar o espaço público, enquanto hoje a construção civil compra o poder público e faz literalmente o que quer em nome do interesse das pessoas, isto é, do mercado. Parece que o mercado é igual à soma das vontades das pessoas. Não é. O que chamamos mercado é um dispositivo formado por poucos, porém grandes interesses, que se impõe às pessoas de modo a determinar o que elas devem querer.
O que será de uma cidade que destrói todas as suas reservas de delicadeza, de graça, de modéstia? Caminhe um pouco pelas ruas de seu bairro em busca dos cantinhos que ainda não foram devastados por alguma obra grandiosa e brega. O que será de uma cidade sem varandas? Sem janelas dando para a rua – e o gato que espia pelo vidro de uma delas? O que será de nosso convívio diário numa cidade sem o pequeno comércio da rua, responsável pelo território coletivo onde as pessoas aos poucos se conhecem, se cumprimentam, conversam? Uma cidade sem zonas de familiaridade? O que será de uma cidade sem as vilas com casas antigas onde o pedestre entra sem passar por uma guarita e encontra um micro-oásis de sombra e silêncio? Sem a minúscula pracinha que sobrou numa esquina onde se esqueceram de construir outra coisa? Procure os lugares em que ainda seja possível o encontro entre o público e o privado, o íntimo e o estranho, o desafiante e o acolhedor. O que será de uma cidade que é pura arrogância, exibicionismo e eficiência? O que será de nós, moradores de uma cidade que despreza a vida urbana

2 comentários:

Marina disse...

Oi Marta
Obrigada pela publicação da mensagem, principalmente por fazer circular este texto magnífico da Maria Rita Khel. Prazer "reencontrá-la" e ver que você nunca desiste! Seu blog está lindo! Estamos esperando vocês aqui em Sampa, pena que não podemos dizer em nossa bela e humana cidade... Beijos na Julia!

Marina e Marta disse...

Olá Marta
Obrigada por publicar a mensagem, principalmente por fazer circular o magnífico artigo da Maria Rita Khel. É um prazer reencontrá-la e ver que a verve continua intacta. Estamos com saudades e esperamos uma visita de vocês, pena que não podemos dizer em nossa agrádavel e humana cidade... Beijos na Julia.

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