Do blog RERUM NATURA, PORTUGAL
É para isto que eu sirvo?...
A indisciplina dos alunos que parece (re)instalar-se no ensino superior, afirmando-se de modo mais notório em cada novo ano lectivo, e ao qual João Boavida se referiu em texto aqui publicado, está longe se ser um fenómeno dos tempos presentes, sendo recorrente em certos momentos e escolas.
Não serve esta nota de teor histórico para menosprezar esse fenómeno mas para chamar a atenção para os ambientes académicos - onde interferem variáveis cognitivas, de domínio de conhecimentos, de relação interpessoal, de valores fundamentais, de simples princípios de urbanidade, etc. - que o potenciam ou inibem. Não é, pois, uma nota assente na lógica sempre equívoca e imobilista de que "sempre foi assim", logo, "é assim", não se justificando qualquer acção.
Efectivamente, se estamos perante um problema, devemos encará-lo como tal, sob pena de as suas consequências comprometerem ainda mais o já tão débil ensino superior universitário português (falo em geral e não em núcleos de excelência que sei que existem).
Vejamos, então, dois exemplos que se reportam ao fenómeno no passado em universidades prestigiadas.
Edward Everett, Reitor da Universidade de Harvard, escrevia nas suas Memórias (1846-1849) o seguinte[1]:
“Tarefas detestáveis de manhã: interrogar três alunos que fizeram sinais a mulheres da rua nos terrenos da Universidade numa tarde de domingo; outros dois que assobiaram no corredor, outro que fumou nos terrenos da Universidade. É para isto que eu sirvo?... A vida que agora levo tem de acabar, ou então será ela que acabará comigo (...). O meu tempo completamente tomado durante todo o dia com os mais repugnantes detalhes de disciplina, capazes de pôr qualquer coração doente: fraude, dissimulação, falsidade, comportamento grosseiro, pais e amigos a aborrecer-me o tempo todo e acreditando estupidamente nas mentiras que os seus filhos lhe contam.”
A história da Universidade de Coimbra está também repleta de situações problemáticas de disciplina dos seus estudantes [2], que aconteciam sobretudo nos meses de Abril, Maio e Junho, altura de festividades académicas e da cidade. Lembremos que esta escola tinha uma cadeia e dispunha dum corpo policial próprio — a Polícia Académica com os seus Archeiros — cujo objectivo era manter a ordem. No regulamento desse corpo policial que esteve em vigor até ao século XIX pode ler-se o seguinte [3]:
“(…) a disciplina escholar dos estabelecimentos litherários [e punir disciplinarmente] os actos de insubordinação. [Essas punições constavam na] reprehensão dada na presença do secretário da Universidade e notada por elle no livro competente com os motivos que deram logar á demonstração; a participação das faltas literárias e moraies aos paies, tutores ou pessoas em quem possa tocar; a preterição na ordem ou procedência dos actos; a detenção em custódia por tempo de um a oito dias; a sahida da cidade por tempo de seiz mezes a um anno; a exclusão perpetua da Universidade.”
NOTAS:
[1] Citado em Harvard Alumni Bulletin, de 1 de Maio de 1965, 583. In Sprinthall & Sprinthall (1994). Psicologia Educacional: uma abordagem desenvolvimentista. Lisboa, McGraw-Hill, página 528.
[2] Sobre esta questão pode consultar-se a obra Universidade(s): História, Memórias, Perspectivas - Actas do Congresso «História da Universidade» (No 7.º Centenário da sua Fundação), 1991, vol. 3, páginas 216-361.
[3] Citação de M. R. Coimbra (1991, 330) In José Ramos Bandeira (1947). Universidade de Coimbra, Coimbra, Casa do Castelo, 2.º vol., página 140.
POR Helena Damião
*************************************************************
O mais fundo da crise
Novo texto de João Boavida, na sequência de anteriores sobre a vivência no Ensino Superior.
Uma professora universitária que conheço, experiente, competente, dinâmica, desempoeirada e, além disso, pessoa brilhante e de grande qualidade moral, anda desanimadíssima dizendo que não pode mais com muitos dos alunos que tem agora. Conversam continuamente nas aulas, não ligam nenhuma às advertências, não sabem coisas elementares nem mostram interesse em saber e são até insolentes e grosseiros. De tal modo que já uma vez ou outra abandonou a aula por não poder suportar mais o ambiente. E não são alunos do 1.º ano, mas do mestrado pós-Bolonha, ou seja, são licenciados e com vários anos de Faculdade.
Não sei se o quadro é geral, mas não será único e sei que, neste caso, não é por deficiência da professora. Ora, isto é um alarmante sinal de que a nossa crise é ainda mais profunda do que se diz. Sempre houve alunos desleixados e poucos dados ao estudo - a boémia académica está cheia de estudantes bragantes e de inúmeras histórias de uma certa “jumentude esturdiosa”. Mas eram muito menos que hoje e tinham educação, o que permitia que as coisas funcionassem e os maus não impediam os outros de aprender, como hoje acontece.
Era inevitável, dirão os professores do Básico e do Secundário, já há alguns anos que eles estão a passar por nós, teriam que chegar às universidades. Não era possível que os alunos se tornassem educados e trabalhadores de um dia para o outro e só por terem entrado no ensino superior. Mas como é possível desenvolver um país quando muitos jovens licenciados entram na vida prática sem formação científica, cultural e humana, porque a recusam? Eis a maior de todas as crises.
João Boavida
A indisciplina dos alunos que parece (re)instalar-se no ensino superior, afirmando-se de modo mais notório em cada novo ano lectivo, e ao qual João Boavida se referiu em texto aqui publicado, está longe se ser um fenómeno dos tempos presentes, sendo recorrente em certos momentos e escolas.
Não serve esta nota de teor histórico para menosprezar esse fenómeno mas para chamar a atenção para os ambientes académicos - onde interferem variáveis cognitivas, de domínio de conhecimentos, de relação interpessoal, de valores fundamentais, de simples princípios de urbanidade, etc. - que o potenciam ou inibem. Não é, pois, uma nota assente na lógica sempre equívoca e imobilista de que "sempre foi assim", logo, "é assim", não se justificando qualquer acção.
Efectivamente, se estamos perante um problema, devemos encará-lo como tal, sob pena de as suas consequências comprometerem ainda mais o já tão débil ensino superior universitário português (falo em geral e não em núcleos de excelência que sei que existem).
Vejamos, então, dois exemplos que se reportam ao fenómeno no passado em universidades prestigiadas.
Edward Everett, Reitor da Universidade de Harvard, escrevia nas suas Memórias (1846-1849) o seguinte[1]:
“Tarefas detestáveis de manhã: interrogar três alunos que fizeram sinais a mulheres da rua nos terrenos da Universidade numa tarde de domingo; outros dois que assobiaram no corredor, outro que fumou nos terrenos da Universidade. É para isto que eu sirvo?... A vida que agora levo tem de acabar, ou então será ela que acabará comigo (...). O meu tempo completamente tomado durante todo o dia com os mais repugnantes detalhes de disciplina, capazes de pôr qualquer coração doente: fraude, dissimulação, falsidade, comportamento grosseiro, pais e amigos a aborrecer-me o tempo todo e acreditando estupidamente nas mentiras que os seus filhos lhe contam.”
A história da Universidade de Coimbra está também repleta de situações problemáticas de disciplina dos seus estudantes [2], que aconteciam sobretudo nos meses de Abril, Maio e Junho, altura de festividades académicas e da cidade. Lembremos que esta escola tinha uma cadeia e dispunha dum corpo policial próprio — a Polícia Académica com os seus Archeiros — cujo objectivo era manter a ordem. No regulamento desse corpo policial que esteve em vigor até ao século XIX pode ler-se o seguinte [3]:
“(…) a disciplina escholar dos estabelecimentos litherários [e punir disciplinarmente] os actos de insubordinação. [Essas punições constavam na] reprehensão dada na presença do secretário da Universidade e notada por elle no livro competente com os motivos que deram logar á demonstração; a participação das faltas literárias e moraies aos paies, tutores ou pessoas em quem possa tocar; a preterição na ordem ou procedência dos actos; a detenção em custódia por tempo de um a oito dias; a sahida da cidade por tempo de seiz mezes a um anno; a exclusão perpetua da Universidade.”
NOTAS:
[1] Citado em Harvard Alumni Bulletin, de 1 de Maio de 1965, 583. In Sprinthall & Sprinthall (1994). Psicologia Educacional: uma abordagem desenvolvimentista. Lisboa, McGraw-Hill, página 528.
[2] Sobre esta questão pode consultar-se a obra Universidade(s): História, Memórias, Perspectivas - Actas do Congresso «História da Universidade» (No 7.º Centenário da sua Fundação), 1991, vol. 3, páginas 216-361.
[3] Citação de M. R. Coimbra (1991, 330) In José Ramos Bandeira (1947). Universidade de Coimbra, Coimbra, Casa do Castelo, 2.º vol., página 140.
POR Helena Damião
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O mais fundo da crise
Novo texto de João Boavida, na sequência de anteriores sobre a vivência no Ensino Superior.
Uma professora universitária que conheço, experiente, competente, dinâmica, desempoeirada e, além disso, pessoa brilhante e de grande qualidade moral, anda desanimadíssima dizendo que não pode mais com muitos dos alunos que tem agora. Conversam continuamente nas aulas, não ligam nenhuma às advertências, não sabem coisas elementares nem mostram interesse em saber e são até insolentes e grosseiros. De tal modo que já uma vez ou outra abandonou a aula por não poder suportar mais o ambiente. E não são alunos do 1.º ano, mas do mestrado pós-Bolonha, ou seja, são licenciados e com vários anos de Faculdade.
Não sei se o quadro é geral, mas não será único e sei que, neste caso, não é por deficiência da professora. Ora, isto é um alarmante sinal de que a nossa crise é ainda mais profunda do que se diz. Sempre houve alunos desleixados e poucos dados ao estudo - a boémia académica está cheia de estudantes bragantes e de inúmeras histórias de uma certa “jumentude esturdiosa”. Mas eram muito menos que hoje e tinham educação, o que permitia que as coisas funcionassem e os maus não impediam os outros de aprender, como hoje acontece.
Era inevitável, dirão os professores do Básico e do Secundário, já há alguns anos que eles estão a passar por nós, teriam que chegar às universidades. Não era possível que os alunos se tornassem educados e trabalhadores de um dia para o outro e só por terem entrado no ensino superior. Mas como é possível desenvolver um país quando muitos jovens licenciados entram na vida prática sem formação científica, cultural e humana, porque a recusam? Eis a maior de todas as crises.
João Boavida
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MEU COMENTÁRIO:
Essa crise também noto na minha corporação. Professores universitários que chegam atrasados às suas aulas e saem antes. Que faltam e não avisam os alunos, não repõem as aulas. Que não preparam suas aulas. Que são rudes com seus alunos. Os alunos criticam professores de slides eternos, que são estúpidos, que não dão boas aulas, mas nada fazem. Há uma minoria de bons alunos. Minoria.
2 comentários:
Mais uma "viúva" do Salazar...
quer dizer que uma das soluções poderia ser retivar a cadeia na universidade???
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