TUCA PUC 1977
EU QUASE QUE NADA SEI. MAS DESCONFIO DE MUITA COISA. GUIMARÃES ROSA.

domingo, 26 de dezembro de 2010

E em Portugal....


Sábado, 25 de Dezembro de 2010 do Blog JUGULAR, Portugal AQUI


As incapacidades temporárias para o trabalho por doença
Ana Matos Pires
Noticiou-se esta semana que os serviços competentes descobriram uma pipa de "baixas" fraudulentas. Tenho andado atrapalhada e só agora pude pegar no assunto. Para começar, dois casos este ano



Uma mulher que acompanhava há anos por um quadro psiquiátrico crónico teve uma descompensação de difícil e demorado controlo. Porque se tratava de uma doente que seguia no meu consultório elaborei um relatório clínico, que enviei ao médico de família, onde dava conta da minha opinião sobre a necessidade da senhora parar a actividade laboral e pedia que fosse passado o respectivo certificado de incapacidade temporária para o trabalho - nunca nenhum colega levantou qualquer dificuldade ou questionou o meu parecer clínico, disponibilizando-se sempre para passar o certificado justificativo. A situação de ausência laboral por doença prolongou-se e todos os meses fui informando por escrito o colega do evoluir da situação, tendo também elaborado três relatórios para os serviços de verificação de incapacidades. A última vez que a doente foi presente à "junta médica" de verificação os dois clínicos que a avaliaram, numa sessão que demorou menos de 10 minutos, decidiram pela ausência de justificação para manter a incapacidade para o trabalho - de resto já aquando da segunda verificação de incapacidade lhe havia sido dito que "o tempo estava a esgotar-se" e que numa próxima vez o mais certo seria decidirem pela não existência de justificação para manter a incapacidade para o exercício laboral. A doente recorre da decisão, utilizando para o efeito um outro relatório clínico por mim elaborado. O recurso foi indeferido e a doente retoma o trabalho. Morreu menos de duas semanas depois de ter reiniciado actividade.

Numa outra situação, também no contexto de uma patologia crónica e de uma crise com remissão sintomatológica demorada, acontece exactamente o mesmo processo, sendo que desta vez, porque havia alguma capacidade económica de se manter sem qualquer provento, o doente permanece ausente do trabalho depois da recusa do recurso, sem qualquer subsídio de doença. Algum tempo depois, por lhe começar a ser complicado manter a situação e pela culpabilidade de "não estar a trazer dinheiro para casa, sobrecarregando a família", sentimento de culpa esse inscrito no próprio quadro clínico, o homem reinicia actividade - contra o meu parecer médico, pois era completamente previsível que as dificuldades de desempenho inerentes à situação clínica iriam funcionar como factor agravante da mesma. Muito pouco tempo depois acontece o esperado e volta-lhe a ser passado um certificado de incapacidade temporária para o trabalho, sendo o senhor chamado pelos serviços de verificação. Na sessão de avaliação acontece um diálogo surrealista. Tendo-se os colegas apercebido do estado clínico bastante agravado em comparação com a última aferição, que tinha determinado a não existência de justificação clínica para a manutenção da incapacidade, dizem ao senhor qualquer coisa parecida com isto "ouça, nós não damos alta a ninguém, quem dá alta são os médicos assistentes, não fomos nós que o mandámos trabalhar, apenas dissemos que não podia ficar mais tempo a receber o subsídio de doença". Como? Se a função dos serviços de verificação não fosse a avaliação da justificação clínica para a incapacidade temporária para o trabalho não seria necessário serem médicos a fazê-la, ou estou errada?



Com estes dois exemplos não estou a negar a existência de casos injustificados e abusivos de "baixas" por doença, claro que existem, alguns deles (poucos) porque o indivíduo endromina o clínico, outros porque o clínico é conivente com uma falsa situação de doença. E há ainda outros (a maioria) em que o médico, no contexto social particular daquele sujeito, opta por (hiper)valorizar as queixas clínicas - já o fiz, sempre por um período curto de tempo e na maioria das vezes com o objectivo da ausência laboral ter um efeito reorganizador, tendo a preocupação de explicar isso mesmo ao doente. Configuram estes últimos casos situações de baixa fraudulenta? Não é a saúde um estado de bem estar físico, psíquico e social? Não foram os médicos ainda há bem pouco tempo, na conclusões de um inquérito levado a cabo a propósito das prescrições por DCI, acusados de não perguntarem especificamente aos doentes sobre a sua situação social e económica (mal seria se não fosse fácil e claro para o clínico, mesmo sem uma pergunta directa sobre o assunto, perceber a situação sócio-económica do individuo que está a consultar!) e, portanto, de não a terem em conta na avaliação da situação clínica?


Vivemos uma realidade que é preciso mudar, não o discuto, onde a subsídio dependência precisa ser parada, desde logo porque a função social do estado, que defendo, tem que ser usada por quem dela necessita. No caso específico das incapacidades temporárias por doença julgo que é mandatório existirem boas comissões de aferição, regidas por princípios clínicos, pois só assim serão apanhadas as verdadeiras "baixas" fraudulentas. Aliás, que diabo de sistema é este que detecta fraude e não penaliza ninguém por ela? Onde estão os inquéritos e consequentes penalizações aos clínicos prevaricadores? Onde está a obrigação de devolução dos subsídios irregularmente recebidos por indivíduos que beneficiaram de uma "baixa" fraudulenta? Talvez valesse a pena começar por aqui: por definir baixa fraudulenta, por garantir excelência nas aferições e por penalizar os incumprimentos



Ps: Estando com a mão na massa deixo uma outra questão sobre um assunto que a Isabel já aqui mencionou: onde estão os números a comprovar a eficácia da alteração legislativa que passou a impedir a passagem dos certificados de incapacidade temporária para o trabalho e dos velhos atestados pelos médicos no decurso da sua actividade privada sem ligação ao SNS (ou melhor dizendo, porque mais real, quando os médicos - os mesmos, porque na maioria das vezes acumulam o duplo estatuto - estão a fazer clínica privada?). Nunca percebi o objectivo desta medida, juro que por diversas vezes tenho pensado que se tratou de uma estratégia para dar um singelo auxilio ao SNS através do pagamento de taxas moderadoras na consulta de "passagem do papel que o colega pede para ser passado".

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