IHU-Unisinos. cap-tirado do Blog de Roberto Romano AQUI
A estrangeirização da propriedade fundiária no Brasil
Só entre outubro de 2008 e agosto de 2009, foram comercializados mais de 45 milhões de hectares, sendo que 75% destes na África e outros 3,6 milhões de hectares no Brasil e Argentina, impulsionando aquilo que se convencionou chamar, na expressão em inglês, de “land grabbing”. O crescimento da produção agrícola e das demandas e transações de compra de terras, se concentra na expansão de oito commodities : milho, soja, cana-de-açúcar, dendê (óleo), arroz, canola, girassol e floresta plantada. A participação brasileira se dá fundamentalmente nos três primeiros produtos. O artigo é de Sérgio Sauer e Sérgio Pereira Leite e publicado por Carta Maior, 20-12-2010.
Sérgio Sauer é professor da Universidade de Brasília (UnB), na Faculdade de Planaltina (FUP) e na pós-gradução do Propaga e Relator Nacional do Direito Humano a Terra, Território e Alimentação - Plataforma DhESCA Brasil.
Sérgio Pereira Leite é professor do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) e Coordenador do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (OPPA).
Eis o artigo.
Estamos assistindo nos últimos tempos a um crescimento do interesse e busca por terras em todo o mundo, especialmente em razão da demanda por alimentos, agroenergias e matérias primas. Segundo recente estudo do Banco Mundial, de 2010, a demanda mundial por terras tem sido enorme, especialmente a partir de 2008, tornando a “disputa territorial” um fenômeno global. A transferência de terras agricultáveis (ou terras cultivadas) era da ordem de quatro milhões de hectares por ano antes de 2008. Só entre outubro de 2008 e agosto de 2009, foram comercializados mais de 45 milhões de hectares, sendo que 75% destes na África e outros 3,6 milhões de hectares no Brasil e Argentina, impulsionando aquilo que se convencionou chamar, na expressão em inglês, de “land grabbing”.
Uma constatação fundamental do estudo do Banco Mundial é que o crescimento da produção agrícola e, conseqüentemente, das demandas e transações de compra de terras, se concentra na expansão de apenas oito commodities : milho, soja, cana-de-açúcar, dendê (óleo), arroz, canola, girassol e floresta plantada. A participação brasileira se dá fundamentalmente nos três primeiros produtos. Melhores preços dos agrocombustíveis e os subsídios governamentais levaram à expansão desses cultivos. Em 2008, a estimativa era de 36 milhões de hectares a área total cultivada com matérias-primas para os agrocombustíveis no mundo, área duas vezes maior que em 2004. Deste total, 8,3 milhões de hectares estão na União Européia (com cultivo de canola), 7,5 milhões nos Estados Unidos (com milho) e 6,4 milhões de hectares na América Latina (basicamente com cultivos de cana no Brasil).
Ainda segundo o mesmo documento, em torno de 23% do crescimento da produção agrícola mundial se deu em função da expansão das “fronteiras agrícolas”, apesar de que o aumento mais expressivo (cerca de 70%) da produção é resultado do incremento da produtividade física. As razões dessa expansão da produção (e também do volume das transações de terras) foram: a) demanda por alimentos, ração, celulose e outros insumos industriais, em conseqüência do aumento populacional e da renda; b) demanda por matérias-primas para os agrocombustíveis (reflexo das políticas e procura dos principais países consumidores), e c) deslocamento da produção de commodities para regiões com terra abundante, mais barata e com boas possibilidades de crescimento da produtividade.
Um dos dados mais significativos neste estudo do Banco Mundial é a caracterização dos atuais demandantes de terras no mundo: a) governos preocupados com o consumo interno e sua incapacidade de produzir alimentos suficientes para a população, especialmente a partir da crise alimentar de 2008; b) empresas financeiras que, na conjuntura atual, encontram vantagens comparativas na aquisição de terras e, c) empresas do setor agroindustrial que, devido ao alto nível de concentração do comércio e processamento, procuram expandir seus negócios.
Após a crise dos preços dos alimentos, em 2008, e das previsões de demanda futura, não é surpreendente o crescente interesse de governos – puxados pela China e por vários países árabes – pela aquisição de terras para a produção de alimentos para satisfazer o consumo doméstico. Chamam a atenção, no entanto, os investimentos do setor financeiro, historicamente avesso à imobilização de capital, especialmente na compra de terra, um mercado caracterizado pela baixa liquidez.
Na mesma perspectiva do levantamento do Banco Mundial, estudos encomendados pelo Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (NEAD) do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), do governo brasileiro, mostram que houve um crescimento significativo de investimentos estrangeiros diretos (IEDs) totais no Brasil a partir de 2002 (107% entre 2002 e 2008, passando de 4,33 a 8,98 bilhões de dólares no mesmo período). Segundo o jornal O Globo, o IPEA mostrou que os IEDs no setor primário brasileiro passaram de US$ 2,4 bi, em 2000, para US$ 13,1 bi, em 2007, sendo que a alta de 445% foi puxada pela mineração, que respondeu por 71% do total recebido nesse último ano. Também houve crescimento da participação externa nas atividades agropecuárias como, por exemplo, no cultivo da cana-de-açúcar e da soja e na produção de álcool e agrocombustíveis, especialmente por meio da compra e fusões de empresas brasileiras já existentes.
Apesar de não existir um levantamento mais sistemático, é possível concluir que esses investimentos estrangeiros no setor primário brasileiro resultam também na aquisição de muitas terras. De acordo com levantamento realizado pelos estudos do NEAD, no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), existiam 34.632 registros de imóveis em mãos de estrangeiros em 2008, que abarcavam uma área total de 4.037.667 hectares, números bastante expressivos considerando-se que não abrangeu o “período da corrida por terras” após crise de 2008. Deve-se ressaltar que mais de 83% desse total são imóveis classificados como grandes propriedades (acima de 15 módulos fiscais).
Utilizando diferentes fontes de informações, inclusive pesquisas no SNCR, mas também empresas de consultoria no ramo, os jornais de circulação nacional vêm publicando, desde meados dos anos 2000, dados sobre este processo de aquisição de terras por estrangeiros no Brasil. Em matéria do dia 02/11/2010, a partir de análises do Cadastro do INCRA, a Folha voltou a divulgar o avanço sobre as terras pelo capital estrangeiro. Segundo a reportagem, “empresas e pessoas de outros países compram o equivalente a 22 campos de futebol em terras no Brasil a cada uma hora. Em dois anos e meio, os estrangeiros adquiriram 1.152 imóveis, num total de 515,1 mil hectares”.
Este interesse global por terras (relativamente abundantes) da América Latina (especial destaque ao Brasil, Argentina e Uruguai) e da África subsaariana tem provocado uma elevação dos seus preços. Constatado pelo citado estudo do Banco Mundial, o aumento de preço das terras brasileiras também vem sendo regularmente anunciado pela grande imprensa. No entanto, não há estudos sistemáticos capazes de oferecer um panorama nacional – ou mesmo regional – das transações e preços, sendo que as notícias são ilustradas com levantamentos de casos exemplares e dados locais, municipais ou regionais.
Segundo o jornal O Valor, os projetos sucroalcooleiros implantados entre 2008 e 2010 provocaram a valorização das terras nas regiões de expansão dos cultivos de cana-de-açúcar, especialmente nas novas “fronteiras”, localizadas principalmente nos Estados de Tocantins, Goiás, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais, com índices que chegam até a 33% de majoração nos preços. Dados sobre o comportamento do mercado de terras, calculados pelo Instituto FNP para várias regiões brasileiras, corroboram as informações da imprensa sobre aumentos nos preços dos imóveis rurais em áreas de expansão das monoculturas (soja e cana, sobretudo).
Por outro lado, é fundamental ter presente que parte significativa dos investimentos estrangeiros é financiada com recursos públicos, especialmente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do Fundo Constitucional do Centro Oeste (FCO). Estes empréstimos e incentivos fiscais estão sendo alocados principalmente em regiões de expansão do cultivo de cana e produção de etanol (Centro-Oeste) e soja (Centro-Oeste, Amazônia, Bahia e Tocantins).
O crescente volume de aplicações estrangeiras em terras brasileiras tem sido objeto de manifestações contrárias, inclusive, de segmentos representativos do chamado “agronegócio” brasileiro, bem como de editoriais da grande imprensa. É interessante notar que mesmo nesses setores que advogam uma perspectiva “pró-mercado”, há claramente uma posição de alerta com a quantidade de terras sendo adquiridas por estrangeiros, distanciando-se portanto das recomendações do estudo do Banco Mundial, mais voltado a explorar as janelas de oportunidades dessas novas áreas por meio do que vem sendo denominado de “investimentos responsáveis”.
Em uma perspectiva distinta, o Executivo Federal, a partir da preocupação com uma possível perda de soberania territorial, solicitou que a Advocacia Geral da União (AGU) fizesse uma revisão do Parecer GQ nº 181, publicado em 1998, que desmobilizou qualquer forma de controle efetivo sobre a aquisição de terras por parte de empresas estrangeiras no Brasil. De acordo com os termos do documento da AGU, desde os pareceres anteriores, de 1994 e 1998, “...o Estado brasileiro perdera as condições objetivas de proceder a controle efetivo sobre a aquisição e o arrendamento de terras realizadas por empresas brasileiras cujo controle acionário e controle de gestão estivessem nas mãos de estrangeiros não-residentes no território nacional”.
Diante da conjuntura atual de uma crescente demanda por terras e da constatação de que o INCRA não possui mecanismos concretos para efetuar um controle adequado das compras de imóveis rurais, o grupo de trabalho formado para avaliar tal situação concluiu que era necessária a “revisão dos pareceres de modo a dotar o Estado brasileiro de melhores condições de fiscalização sobre a compra de terras realizada por empresas brasileiras controladas por estrangeiros”.
A AGU publicou então o Parecer nº LA-01, de 19 de agosto de 2010, o qual re-estabeleceu possibilidades para limitar, ou melhor, para regulamentar os processos de estrangeirização das terras no Brasil. Este documento legal retoma a Lei nº 5.709, de 1971, afirmando que a mesma deve ser acolhida pela Constituição de 1988. Esta lei foi criada para regulamentar a compra de terras por estrangeiros, estabelecendo o limite máximo de compra em 50 módulos (art. 3º), sendo que a soma das propriedades de uma pessoa estrangeira não pode ultrapassar a um quarto (¼) da área do município (art. 12).
Sem desmerecer a importância jurídico-legal de tal parecer, cujo anúncio causou boa impressão em determinados circuitos internacionais ao mostrar a possibilidade de ação efetiva do Estado em área tão estratégica, a solução do problema não se materializa com a referida publicação. Primeiro, há problemas no próprio conteúdo da Lei 5.709 como, por exemplo, o limite de 50 módulos ou a restrição a um quarto da área do município, pois há municípios imensos no Brasil, especialmente nas regiões Norte e Centro-Oeste, principais alvos da busca por terras e expansão do agronegócio. No entanto, tal iniciativa, abre um caminho para que essa discussão ganhe maior espaço e amplitude no país.
A problemática fundiária transcende em muito ao problema do “land grabbing”, que pode envolver desde a “grilagem ou arresto de terras” até transações comerciais propriamente ditas, uma reação aos efeitos negativos da corrida por terra e a conseqüente estrangeirização. É fundamental não esquecer os históricos níveis de concentração da propriedade da terra no Brasil, novamente corroborados pelo Censo Agropecuário de 2006. Essa concentração fundiária não será revertida somente com adoção de mecanismos de controle da aquisição de terras por estrangeiros, pois a esmagadora maioria das grandes propriedades está nas mãos de poucos brasileiros, o que torna cada vez mais urgente a adoção de políticas redistributivas e de ordenamento territorial, como, por exemplo, a reforma agrária e o reconhecimento das terras pertencentes à populações indígenas e tradicionais.
A estrangeirização da propriedade fundiária no Brasil
Só entre outubro de 2008 e agosto de 2009, foram comercializados mais de 45 milhões de hectares, sendo que 75% destes na África e outros 3,6 milhões de hectares no Brasil e Argentina, impulsionando aquilo que se convencionou chamar, na expressão em inglês, de “land grabbing”. O crescimento da produção agrícola e das demandas e transações de compra de terras, se concentra na expansão de oito commodities : milho, soja, cana-de-açúcar, dendê (óleo), arroz, canola, girassol e floresta plantada. A participação brasileira se dá fundamentalmente nos três primeiros produtos. O artigo é de Sérgio Sauer e Sérgio Pereira Leite e publicado por Carta Maior, 20-12-2010.
Sérgio Sauer é professor da Universidade de Brasília (UnB), na Faculdade de Planaltina (FUP) e na pós-gradução do Propaga e Relator Nacional do Direito Humano a Terra, Território e Alimentação - Plataforma DhESCA Brasil.
Sérgio Pereira Leite é professor do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) e Coordenador do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (OPPA).
Eis o artigo.
Estamos assistindo nos últimos tempos a um crescimento do interesse e busca por terras em todo o mundo, especialmente em razão da demanda por alimentos, agroenergias e matérias primas. Segundo recente estudo do Banco Mundial, de 2010, a demanda mundial por terras tem sido enorme, especialmente a partir de 2008, tornando a “disputa territorial” um fenômeno global. A transferência de terras agricultáveis (ou terras cultivadas) era da ordem de quatro milhões de hectares por ano antes de 2008. Só entre outubro de 2008 e agosto de 2009, foram comercializados mais de 45 milhões de hectares, sendo que 75% destes na África e outros 3,6 milhões de hectares no Brasil e Argentina, impulsionando aquilo que se convencionou chamar, na expressão em inglês, de “land grabbing”.
Uma constatação fundamental do estudo do Banco Mundial é que o crescimento da produção agrícola e, conseqüentemente, das demandas e transações de compra de terras, se concentra na expansão de apenas oito commodities : milho, soja, cana-de-açúcar, dendê (óleo), arroz, canola, girassol e floresta plantada. A participação brasileira se dá fundamentalmente nos três primeiros produtos. Melhores preços dos agrocombustíveis e os subsídios governamentais levaram à expansão desses cultivos. Em 2008, a estimativa era de 36 milhões de hectares a área total cultivada com matérias-primas para os agrocombustíveis no mundo, área duas vezes maior que em 2004. Deste total, 8,3 milhões de hectares estão na União Européia (com cultivo de canola), 7,5 milhões nos Estados Unidos (com milho) e 6,4 milhões de hectares na América Latina (basicamente com cultivos de cana no Brasil).
Ainda segundo o mesmo documento, em torno de 23% do crescimento da produção agrícola mundial se deu em função da expansão das “fronteiras agrícolas”, apesar de que o aumento mais expressivo (cerca de 70%) da produção é resultado do incremento da produtividade física. As razões dessa expansão da produção (e também do volume das transações de terras) foram: a) demanda por alimentos, ração, celulose e outros insumos industriais, em conseqüência do aumento populacional e da renda; b) demanda por matérias-primas para os agrocombustíveis (reflexo das políticas e procura dos principais países consumidores), e c) deslocamento da produção de commodities para regiões com terra abundante, mais barata e com boas possibilidades de crescimento da produtividade.
Um dos dados mais significativos neste estudo do Banco Mundial é a caracterização dos atuais demandantes de terras no mundo: a) governos preocupados com o consumo interno e sua incapacidade de produzir alimentos suficientes para a população, especialmente a partir da crise alimentar de 2008; b) empresas financeiras que, na conjuntura atual, encontram vantagens comparativas na aquisição de terras e, c) empresas do setor agroindustrial que, devido ao alto nível de concentração do comércio e processamento, procuram expandir seus negócios.
Após a crise dos preços dos alimentos, em 2008, e das previsões de demanda futura, não é surpreendente o crescente interesse de governos – puxados pela China e por vários países árabes – pela aquisição de terras para a produção de alimentos para satisfazer o consumo doméstico. Chamam a atenção, no entanto, os investimentos do setor financeiro, historicamente avesso à imobilização de capital, especialmente na compra de terra, um mercado caracterizado pela baixa liquidez.
Na mesma perspectiva do levantamento do Banco Mundial, estudos encomendados pelo Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (NEAD) do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), do governo brasileiro, mostram que houve um crescimento significativo de investimentos estrangeiros diretos (IEDs) totais no Brasil a partir de 2002 (107% entre 2002 e 2008, passando de 4,33 a 8,98 bilhões de dólares no mesmo período). Segundo o jornal O Globo, o IPEA mostrou que os IEDs no setor primário brasileiro passaram de US$ 2,4 bi, em 2000, para US$ 13,1 bi, em 2007, sendo que a alta de 445% foi puxada pela mineração, que respondeu por 71% do total recebido nesse último ano. Também houve crescimento da participação externa nas atividades agropecuárias como, por exemplo, no cultivo da cana-de-açúcar e da soja e na produção de álcool e agrocombustíveis, especialmente por meio da compra e fusões de empresas brasileiras já existentes.
Apesar de não existir um levantamento mais sistemático, é possível concluir que esses investimentos estrangeiros no setor primário brasileiro resultam também na aquisição de muitas terras. De acordo com levantamento realizado pelos estudos do NEAD, no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), existiam 34.632 registros de imóveis em mãos de estrangeiros em 2008, que abarcavam uma área total de 4.037.667 hectares, números bastante expressivos considerando-se que não abrangeu o “período da corrida por terras” após crise de 2008. Deve-se ressaltar que mais de 83% desse total são imóveis classificados como grandes propriedades (acima de 15 módulos fiscais).
Utilizando diferentes fontes de informações, inclusive pesquisas no SNCR, mas também empresas de consultoria no ramo, os jornais de circulação nacional vêm publicando, desde meados dos anos 2000, dados sobre este processo de aquisição de terras por estrangeiros no Brasil. Em matéria do dia 02/11/2010, a partir de análises do Cadastro do INCRA, a Folha voltou a divulgar o avanço sobre as terras pelo capital estrangeiro. Segundo a reportagem, “empresas e pessoas de outros países compram o equivalente a 22 campos de futebol em terras no Brasil a cada uma hora. Em dois anos e meio, os estrangeiros adquiriram 1.152 imóveis, num total de 515,1 mil hectares”.
Este interesse global por terras (relativamente abundantes) da América Latina (especial destaque ao Brasil, Argentina e Uruguai) e da África subsaariana tem provocado uma elevação dos seus preços. Constatado pelo citado estudo do Banco Mundial, o aumento de preço das terras brasileiras também vem sendo regularmente anunciado pela grande imprensa. No entanto, não há estudos sistemáticos capazes de oferecer um panorama nacional – ou mesmo regional – das transações e preços, sendo que as notícias são ilustradas com levantamentos de casos exemplares e dados locais, municipais ou regionais.
Segundo o jornal O Valor, os projetos sucroalcooleiros implantados entre 2008 e 2010 provocaram a valorização das terras nas regiões de expansão dos cultivos de cana-de-açúcar, especialmente nas novas “fronteiras”, localizadas principalmente nos Estados de Tocantins, Goiás, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais, com índices que chegam até a 33% de majoração nos preços. Dados sobre o comportamento do mercado de terras, calculados pelo Instituto FNP para várias regiões brasileiras, corroboram as informações da imprensa sobre aumentos nos preços dos imóveis rurais em áreas de expansão das monoculturas (soja e cana, sobretudo).
Por outro lado, é fundamental ter presente que parte significativa dos investimentos estrangeiros é financiada com recursos públicos, especialmente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do Fundo Constitucional do Centro Oeste (FCO). Estes empréstimos e incentivos fiscais estão sendo alocados principalmente em regiões de expansão do cultivo de cana e produção de etanol (Centro-Oeste) e soja (Centro-Oeste, Amazônia, Bahia e Tocantins).
O crescente volume de aplicações estrangeiras em terras brasileiras tem sido objeto de manifestações contrárias, inclusive, de segmentos representativos do chamado “agronegócio” brasileiro, bem como de editoriais da grande imprensa. É interessante notar que mesmo nesses setores que advogam uma perspectiva “pró-mercado”, há claramente uma posição de alerta com a quantidade de terras sendo adquiridas por estrangeiros, distanciando-se portanto das recomendações do estudo do Banco Mundial, mais voltado a explorar as janelas de oportunidades dessas novas áreas por meio do que vem sendo denominado de “investimentos responsáveis”.
Em uma perspectiva distinta, o Executivo Federal, a partir da preocupação com uma possível perda de soberania territorial, solicitou que a Advocacia Geral da União (AGU) fizesse uma revisão do Parecer GQ nº 181, publicado em 1998, que desmobilizou qualquer forma de controle efetivo sobre a aquisição de terras por parte de empresas estrangeiras no Brasil. De acordo com os termos do documento da AGU, desde os pareceres anteriores, de 1994 e 1998, “...o Estado brasileiro perdera as condições objetivas de proceder a controle efetivo sobre a aquisição e o arrendamento de terras realizadas por empresas brasileiras cujo controle acionário e controle de gestão estivessem nas mãos de estrangeiros não-residentes no território nacional”.
Diante da conjuntura atual de uma crescente demanda por terras e da constatação de que o INCRA não possui mecanismos concretos para efetuar um controle adequado das compras de imóveis rurais, o grupo de trabalho formado para avaliar tal situação concluiu que era necessária a “revisão dos pareceres de modo a dotar o Estado brasileiro de melhores condições de fiscalização sobre a compra de terras realizada por empresas brasileiras controladas por estrangeiros”.
A AGU publicou então o Parecer nº LA-01, de 19 de agosto de 2010, o qual re-estabeleceu possibilidades para limitar, ou melhor, para regulamentar os processos de estrangeirização das terras no Brasil. Este documento legal retoma a Lei nº 5.709, de 1971, afirmando que a mesma deve ser acolhida pela Constituição de 1988. Esta lei foi criada para regulamentar a compra de terras por estrangeiros, estabelecendo o limite máximo de compra em 50 módulos (art. 3º), sendo que a soma das propriedades de uma pessoa estrangeira não pode ultrapassar a um quarto (¼) da área do município (art. 12).
Sem desmerecer a importância jurídico-legal de tal parecer, cujo anúncio causou boa impressão em determinados circuitos internacionais ao mostrar a possibilidade de ação efetiva do Estado em área tão estratégica, a solução do problema não se materializa com a referida publicação. Primeiro, há problemas no próprio conteúdo da Lei 5.709 como, por exemplo, o limite de 50 módulos ou a restrição a um quarto da área do município, pois há municípios imensos no Brasil, especialmente nas regiões Norte e Centro-Oeste, principais alvos da busca por terras e expansão do agronegócio. No entanto, tal iniciativa, abre um caminho para que essa discussão ganhe maior espaço e amplitude no país.
A problemática fundiária transcende em muito ao problema do “land grabbing”, que pode envolver desde a “grilagem ou arresto de terras” até transações comerciais propriamente ditas, uma reação aos efeitos negativos da corrida por terra e a conseqüente estrangeirização. É fundamental não esquecer os históricos níveis de concentração da propriedade da terra no Brasil, novamente corroborados pelo Censo Agropecuário de 2006. Essa concentração fundiária não será revertida somente com adoção de mecanismos de controle da aquisição de terras por estrangeiros, pois a esmagadora maioria das grandes propriedades está nas mãos de poucos brasileiros, o que torna cada vez mais urgente a adoção de políticas redistributivas e de ordenamento territorial, como, por exemplo, a reforma agrária e o reconhecimento das terras pertencentes à populações indígenas e tradicionais.
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