Como foi possível?
«Sussurros» (*) foi certamente o melhor livro que li em 2010, sem que tenha qualquer prazer em dizê-lo, a tal ponto se trata de uma obra terrível, arrasadora e perturbante, que nos revela verdadeiros horrores de que a humanidade foi capaz - não em tempos recuados de escravaturas ancestrais, mas há menos de um século, a poucos milhares de quilómetros de distância.
Já muitos escreveram que é certamente uma das melhores narrativas da Revolução de 1917 e do estalinismo, não sob a forma de um tratado clássico, mas com recurso a dezenas de testemunhos orais que permitiram a reconstituição de percursos individuais e colectivos de pessoas vulgares, de vidas de famílias inteiras esmagadas pelas perseguições estalinistas, que foram parcialmente eliminadas em Gulags e não só, se separaram e se reencontraram por vezes com uma terrível estranheza que as atingiu, e ainda persiste, através de várias gerações.
Uma crueldade em estado puro, que não se limitava à perseguição política dos inimigos, mas que entrava pelas casas dentro, pelo culto da desconfiança generalizada que forçava a que se levassem vidas duplas, que tornava as pessoas incapazes de chorar, que instalava o silêncio e que limitava a comunicação a breves «sussurros». Porque, para se passar de suspeito a detido, era suficiente ser filho, amigo, ou mesmo apenas vizinho, de alguém simplesmente indesejável. Há transcrições de centenas de testemunhos impressionantes. Duas, a título de mero exemplo, que falam por si:
«A minha vida está envolta numa assustadora escuridão. A detenção do Pai foi um golpe tremendo […]. Até agora sempre andei de cabeça erguida, sempre andei com honra, mas agora… Agora Akhmetov [um colega de turma] pode dizer-me: “Somos camaradas de infortúnio!” E pensar que o desprezei, e que desprezei o pai dele, por ser trotskista. Há um pensamento que me oprime dia e noite: o meu pai também será um inimigo? Não, não pode ser, não acredito. Tudo isto é um engano horrível!» (p. 328)
«Não consigo libertar-me do medo. Senti medo durante toda a minha vida de adulta, continuo a sentir medo ainda hoje [em 2004], e sentirei medo até morrer. Mesmo agora, tenho receio de estar a ser seguida. Fui reabilitada há cinquenta anos, não tenho nada de que me envergonhe. A Constituição estabelece que ninguém tem nada que se meter na minha vida privada. Mas eu continuo a ter medo. Sei que eles têm informações suficientes sobre mim para voltarem a prender-me.» (p. 630)
Apesar das suas mais de 700 páginas, «Sussurros» lê-se muito facilmente, não só pelo conteúdo absolutamente empolgante, mas por uma construção, muito bem concebida, de capítulos e subcapítulos que se encadeiam extraordinariamente bem.
Prenda de Natal aconselhada, sem dúvida, seguindo aqui a sugestão de João Tunes que acaba de publicar um belo texto sobre esta obra, cuja leitura também recomendo. Como tive ocasião de lhe dizer ontem, alimentou-me a preguiça e dispensou-me de entrar aqui em detalhes de observações e análises que ele já fez.
(*) Orlando Figes, Sussurros, A vida privada na Rússia de Estaline, Aletheia, 2010, 738 p.
«Sussurros» (*) foi certamente o melhor livro que li em 2010, sem que tenha qualquer prazer em dizê-lo, a tal ponto se trata de uma obra terrível, arrasadora e perturbante, que nos revela verdadeiros horrores de que a humanidade foi capaz - não em tempos recuados de escravaturas ancestrais, mas há menos de um século, a poucos milhares de quilómetros de distância.
Já muitos escreveram que é certamente uma das melhores narrativas da Revolução de 1917 e do estalinismo, não sob a forma de um tratado clássico, mas com recurso a dezenas de testemunhos orais que permitiram a reconstituição de percursos individuais e colectivos de pessoas vulgares, de vidas de famílias inteiras esmagadas pelas perseguições estalinistas, que foram parcialmente eliminadas em Gulags e não só, se separaram e se reencontraram por vezes com uma terrível estranheza que as atingiu, e ainda persiste, através de várias gerações.
Uma crueldade em estado puro, que não se limitava à perseguição política dos inimigos, mas que entrava pelas casas dentro, pelo culto da desconfiança generalizada que forçava a que se levassem vidas duplas, que tornava as pessoas incapazes de chorar, que instalava o silêncio e que limitava a comunicação a breves «sussurros». Porque, para se passar de suspeito a detido, era suficiente ser filho, amigo, ou mesmo apenas vizinho, de alguém simplesmente indesejável. Há transcrições de centenas de testemunhos impressionantes. Duas, a título de mero exemplo, que falam por si:
«A minha vida está envolta numa assustadora escuridão. A detenção do Pai foi um golpe tremendo […]. Até agora sempre andei de cabeça erguida, sempre andei com honra, mas agora… Agora Akhmetov [um colega de turma] pode dizer-me: “Somos camaradas de infortúnio!” E pensar que o desprezei, e que desprezei o pai dele, por ser trotskista. Há um pensamento que me oprime dia e noite: o meu pai também será um inimigo? Não, não pode ser, não acredito. Tudo isto é um engano horrível!» (p. 328)
«Não consigo libertar-me do medo. Senti medo durante toda a minha vida de adulta, continuo a sentir medo ainda hoje [em 2004], e sentirei medo até morrer. Mesmo agora, tenho receio de estar a ser seguida. Fui reabilitada há cinquenta anos, não tenho nada de que me envergonhe. A Constituição estabelece que ninguém tem nada que se meter na minha vida privada. Mas eu continuo a ter medo. Sei que eles têm informações suficientes sobre mim para voltarem a prender-me.» (p. 630)
Apesar das suas mais de 700 páginas, «Sussurros» lê-se muito facilmente, não só pelo conteúdo absolutamente empolgante, mas por uma construção, muito bem concebida, de capítulos e subcapítulos que se encadeiam extraordinariamente bem.
Prenda de Natal aconselhada, sem dúvida, seguindo aqui a sugestão de João Tunes que acaba de publicar um belo texto sobre esta obra, cuja leitura também recomendo. Como tive ocasião de lhe dizer ontem, alimentou-me a preguiça e dispensou-me de entrar aqui em detalhes de observações e análises que ele já fez.
(*) Orlando Figes, Sussurros, A vida privada na Rússia de Estaline, Aletheia, 2010, 738 p.
Nenhum comentário:
Postar um comentário