UM TEXTO DE ROBERTO ROMANO DE 2004
São Paulo, quarta-feira, 29 de dezembro de 2004
TENDÊNCIAS/DEBATES FSP
Segredos e cumplicidade pública
ROBERTO ROMANO
Ao discutir o Chile de Pinochet, um jornalista sério pergunta onde estavam as cortes de Justiça quando ocorreu a repressão. Com raras exceções, as togas apoiaram o tirano. Se a pergunta fosse ampliada para os empresários, reitores, profissionais de todos os campos e até mesmo jornalistas, a resposta seria idêntica.
No Brasil, o mesmo hino foi entoado. Muitos que exibem credenciais democráticas agiram com os militares. E silenciam quando os quartéis são visados. Quem serviu com eficácia a repressão nos campi, nas fábricas e gabinetes -mesmo nas sacristias- ousa falar de seu imaculado devocionário às liberdades, aos direitos humanos etc.
É preciso descobrir e analisar documentos secretos do Brasil, mas urge discutir textos não sigilosos que mostram uma complexa rede de solidariedade ao regime autoritário. Tomo apenas um caso, o da igreja, hoje imersa em olor de santidade quando o assunto é a ditadura Vargas ou militar. Como católico, estudo o que a hierarquia eclesiástica fez durante o poder varguista e castrense. Só um diminuto setor religioso ergueu-se contra aqueles regimes. Os documentos, neste caso, são públicos e notórios. Basta reuni-los sem intentos apologéticos.
O AI-1 afirmava : "A revolução vitoriosa, como o Poder Constituinte, legitima-se por si mesma (...) Ela edita normas jurídicas, sem que nisto esteja limitada pela normatividade anterior à sua vitória (...) Fica, assim, bem claro que a revolução não procura se legitimar através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação".
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Muitos que exibem credenciais democráticas agiram com os militares. E silenciam quando os quartéis são visados
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"Legitimidade" é termo jurídico pesado. Se o mando não tem origem na lei existente, mas legitima a si mesmo, qualquer atribuição de legitimidade ao governo significa reconhecer o novo status quo. A igreja deu esse passo. Ela ainda hoje deve responder pelas conseqüências, unida aos que assumiram o poder. Quem deseja condenar os militares e as violações dos direitos na época deve incluir, por honestidade ética, no banco dos réus a Comissão Central da CNBB. Caso contrário, age de modo parcial.
Em 1964, milhões de pessoas foram às ruas sob o báculo dos hierarcas para exigir a queda do governo legal. O golpe gerou a reunião extraordinária dos metropolitas em maio de 1964. O texto dela emanado aceita o alvo da "revolução de livrar o país do comunismo e agradece aos militares, mas faz ressalvas e o voto de que a reconstrução do país siga a doutrina social da igreja" (Antoniazzi, A., "Igreja Católica e Atuação Política". www.cnbb.org.br/estudos/encar641. html).
Em 19 de fevereiro de 1969, a CNBB propõe ao governo "leal colaboração" e reconhece a legitimidade do novo regime "institucionalizado em dezembro último", afirmando que os poderes excepcionais permitiriam "realizar rapidamente as reformas de base". Os antístites reconhecem que, em face da repressão generalizada, as elites católicas sofriam ameaças, o que as conduzia à "perigosa clandestinidade" (Cf. "Declaração dos Membros da Comissão Central da CNBB", São Paulo, 18/2/69. Texto reproduzido integralmente em "Igreja e Governo", extra 3, ano I, fevereiro de 1977, pp. 32-33).
Após a ditadura, foi idealizado o papel da igreja como defensora dos direitos humanos. Vários bispos, padres e leigos lutaram contra o arbítrio. Paulo Evaristo Arns, Pedro Casaldaglia e outros são dignos do maior respeito. Mas a hierarquia apoiou o poder militar.
Urge pedir que documentos secretos venham à luz. Mas, se for para condenar alguma instituição -civil, militar, religiosa-, que isso se faça segundo a eqüidade: "A cada um, o seu!"
Na tragédia ditatorial não existiram inocentes. Ler textos secretos ou públicos é exercício de lucidez. Mas ninguém tem o direito de se enfeitar com vestes angelicais. Lúcifer foi o anjo mais elevado. Sua mentira e orgulho jogaram-no merecidamente no inferno.
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Roberto Romano, 58, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp e autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - a Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo).
TENDÊNCIAS/DEBATES FSP
Segredos e cumplicidade pública
ROBERTO ROMANO
Ao discutir o Chile de Pinochet, um jornalista sério pergunta onde estavam as cortes de Justiça quando ocorreu a repressão. Com raras exceções, as togas apoiaram o tirano. Se a pergunta fosse ampliada para os empresários, reitores, profissionais de todos os campos e até mesmo jornalistas, a resposta seria idêntica.
No Brasil, o mesmo hino foi entoado. Muitos que exibem credenciais democráticas agiram com os militares. E silenciam quando os quartéis são visados. Quem serviu com eficácia a repressão nos campi, nas fábricas e gabinetes -mesmo nas sacristias- ousa falar de seu imaculado devocionário às liberdades, aos direitos humanos etc.
É preciso descobrir e analisar documentos secretos do Brasil, mas urge discutir textos não sigilosos que mostram uma complexa rede de solidariedade ao regime autoritário. Tomo apenas um caso, o da igreja, hoje imersa em olor de santidade quando o assunto é a ditadura Vargas ou militar. Como católico, estudo o que a hierarquia eclesiástica fez durante o poder varguista e castrense. Só um diminuto setor religioso ergueu-se contra aqueles regimes. Os documentos, neste caso, são públicos e notórios. Basta reuni-los sem intentos apologéticos.
O AI-1 afirmava : "A revolução vitoriosa, como o Poder Constituinte, legitima-se por si mesma (...) Ela edita normas jurídicas, sem que nisto esteja limitada pela normatividade anterior à sua vitória (...) Fica, assim, bem claro que a revolução não procura se legitimar através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação".
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Muitos que exibem credenciais democráticas agiram com os militares. E silenciam quando os quartéis são visados
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"Legitimidade" é termo jurídico pesado. Se o mando não tem origem na lei existente, mas legitima a si mesmo, qualquer atribuição de legitimidade ao governo significa reconhecer o novo status quo. A igreja deu esse passo. Ela ainda hoje deve responder pelas conseqüências, unida aos que assumiram o poder. Quem deseja condenar os militares e as violações dos direitos na época deve incluir, por honestidade ética, no banco dos réus a Comissão Central da CNBB. Caso contrário, age de modo parcial.
Em 1964, milhões de pessoas foram às ruas sob o báculo dos hierarcas para exigir a queda do governo legal. O golpe gerou a reunião extraordinária dos metropolitas em maio de 1964. O texto dela emanado aceita o alvo da "revolução de livrar o país do comunismo e agradece aos militares, mas faz ressalvas e o voto de que a reconstrução do país siga a doutrina social da igreja" (Antoniazzi, A., "Igreja Católica e Atuação Política". www.cnbb.org.br/estudos/encar641. html).
Em 19 de fevereiro de 1969, a CNBB propõe ao governo "leal colaboração" e reconhece a legitimidade do novo regime "institucionalizado em dezembro último", afirmando que os poderes excepcionais permitiriam "realizar rapidamente as reformas de base". Os antístites reconhecem que, em face da repressão generalizada, as elites católicas sofriam ameaças, o que as conduzia à "perigosa clandestinidade" (Cf. "Declaração dos Membros da Comissão Central da CNBB", São Paulo, 18/2/69. Texto reproduzido integralmente em "Igreja e Governo", extra 3, ano I, fevereiro de 1977, pp. 32-33).
Após a ditadura, foi idealizado o papel da igreja como defensora dos direitos humanos. Vários bispos, padres e leigos lutaram contra o arbítrio. Paulo Evaristo Arns, Pedro Casaldaglia e outros são dignos do maior respeito. Mas a hierarquia apoiou o poder militar.
Urge pedir que documentos secretos venham à luz. Mas, se for para condenar alguma instituição -civil, militar, religiosa-, que isso se faça segundo a eqüidade: "A cada um, o seu!"
Na tragédia ditatorial não existiram inocentes. Ler textos secretos ou públicos é exercício de lucidez. Mas ninguém tem o direito de se enfeitar com vestes angelicais. Lúcifer foi o anjo mais elevado. Sua mentira e orgulho jogaram-no merecidamente no inferno.
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Roberto Romano, 58, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp e autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - a Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo).
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