do Blog de Roberto Romano
Um excelente texto. Folha de São Paulo.
São Paulo, quarta-feira, 01 de dezembro de 2010
MARCELO COELHO
Do Oiapoque ao Chuí
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As redações que li foram espantosas. Espantosas no melhor sentido possível. O português era 99% correto
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SETE MILHÕES de alunos da rede pública participaram, neste ano, de um concurso de redações escolares organizado pelo MEC e pela Fundação Itaú.
Depois de muitas eliminatórias, sobraram cerca de 150 textos. Fui um dos membros do júri na etapa final, tendo de selecionar os cinco vencedores em cada categoria (poema, crônica, artigo de opinião e memórias literárias).
As redações que li foram espantosas. No bom sentido; no melhor sentido possível.
O português era 99% correto. Fora algumas distrações, até os erros eram testemunha de que o aluno estava familiarizado com a norma culta. Exemplo clássico, o da "ascenção", com cedilha em vez de "s". Trata-se de erro que só se aprende nos livros.
Passei anos dando aulas de jornalismo numa faculdade conhecida aqui em São Paulo, e conto nos dedos os alunos que sabiam aplicar as regras da crase.
Outro mistério da língua é o uso do "cujo". Foge-se da palavra como se fosse o próprio capeta.
Pois bem, esses alunos de 13, 14, 17 anos, no máximo, tinham perfeita noção dos recursos que a gramática oferece aos interessados.
Claro que os textos passaram por oficinas e revisões em classe. Digo que me espantariam pela qualidade do mesmo jeito, se tivessem sido escritos pelos professores -de cujos conhecimentos (epa!) eu costumava desconfiar um bocado.
Os concorrentes vinham dos lugares mais improváveis. A cidade de Formiga, em Minas Gerais, era das poucas de que já tinha ouvido falar.
Vitória do Xingu (PA), Carrapateira (PB), Nova Alvorada do Sul (MS), Vila Paixão (ES): em cada lugar desses, há um adolescente escrevendo coisa com coisa, citando Clarice Lispector (1920-1977) ou Carlos Drummond (1902-1987), pesando os prós e os contras da colheita mecanizada na lavoura do café ou analisando o impacto da construção de uma barragem.
Nas crônicas, nos artigos de opinião e nos registros do passado feitos por meio de entrevistas com idosos, tem-se um vislumbre da realidade brasileira. Cidades que se formam em poucos anos e se dedicam à exportação de mexerica. Crianças que, depois de estudar, ajudam na colheita do chuchu. Economias formadas graças à exploração do xisto betuminoso.
Os relatos dos mais velhos, reproduzidos pelas crianças, tendem a assinalar o progresso material. A chegada da primeira televisão numa casa de sapé no Amazonas, a luz elétrica no sertão maranhense, a primeira viagem de trem.
Nos artigos de opinião, vê-se de que maneira a perspectiva da nova geração se modificou. O projeto desenvolvimentista clássico, que bem ou mal unificou ideologicamente o país durante boa parte do século 20, já não produz empolgação.
A mentalidade ecológica, mesmo nas menores cidades, predomina; há pequenas Marinas Silvas em qualquer escola.
Talvez não haja novos Gracilianos ou Clarices nos textos que li. Os clichês mais batidos, os "regatos de águas límpidas", as "revoadas de pássaros ao crepúsculo", não correm risco de extinção.
Do Oiapoque ao Chuí, para celebrar esse lindo clichê também, esses alunos estão aprendendo a mesma coisa e vão sendo familiarizados com o padrão que toda escola deve transmitir.
Para a realização das Olimpíadas, houve minucioso treinamento dos professores. Prova disso é que as exigências de cada gênero literário foram seguidas à risca em todos os lugares. A crônica de um menino catarinense era indiscutivelmente uma crônica, assim como era crônica o texto da aluna do Acre.
A uniformidade dos textos e o número de clichês atestaram, para mim, a presença de um esforço das escolas e dos professores, mais do que do acaso ingovernável de algum talento individual.
Cidades pequenas: qual o segredo delas? Dois, a meu ver. O primeiro é que são mais mobilizáveis para projetos desse tipo.
O segundo, menos auspicioso, é que lá o ensino público provavelmente não concorre com escolas particulares: crianças de famílias mais instruídas estudam ao lado das paupérrimas, e talvez seja esse um fator a ajudar o sucesso das primeiras na competição.
Mas escrevo isso só para não cair num otimismo exagerado. Lógico que, na média, tudo continua mal. Malíssimo. Mas não tudo, nem todos: ainda há quem fale de regatos límpidos e de revoadas de pássaros. E alunos pondo suas crases e seus cujos no lugar certo.
São Paulo, quarta-feira, 01 de dezembro de 2010
MARCELO COELHO
Do Oiapoque ao Chuí
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As redações que li foram espantosas. Espantosas no melhor sentido possível. O português era 99% correto
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SETE MILHÕES de alunos da rede pública participaram, neste ano, de um concurso de redações escolares organizado pelo MEC e pela Fundação Itaú.
Depois de muitas eliminatórias, sobraram cerca de 150 textos. Fui um dos membros do júri na etapa final, tendo de selecionar os cinco vencedores em cada categoria (poema, crônica, artigo de opinião e memórias literárias).
As redações que li foram espantosas. No bom sentido; no melhor sentido possível.
O português era 99% correto. Fora algumas distrações, até os erros eram testemunha de que o aluno estava familiarizado com a norma culta. Exemplo clássico, o da "ascenção", com cedilha em vez de "s". Trata-se de erro que só se aprende nos livros.
Passei anos dando aulas de jornalismo numa faculdade conhecida aqui em São Paulo, e conto nos dedos os alunos que sabiam aplicar as regras da crase.
Outro mistério da língua é o uso do "cujo". Foge-se da palavra como se fosse o próprio capeta.
Pois bem, esses alunos de 13, 14, 17 anos, no máximo, tinham perfeita noção dos recursos que a gramática oferece aos interessados.
Claro que os textos passaram por oficinas e revisões em classe. Digo que me espantariam pela qualidade do mesmo jeito, se tivessem sido escritos pelos professores -de cujos conhecimentos (epa!) eu costumava desconfiar um bocado.
Os concorrentes vinham dos lugares mais improváveis. A cidade de Formiga, em Minas Gerais, era das poucas de que já tinha ouvido falar.
Vitória do Xingu (PA), Carrapateira (PB), Nova Alvorada do Sul (MS), Vila Paixão (ES): em cada lugar desses, há um adolescente escrevendo coisa com coisa, citando Clarice Lispector (1920-1977) ou Carlos Drummond (1902-1987), pesando os prós e os contras da colheita mecanizada na lavoura do café ou analisando o impacto da construção de uma barragem.
Nas crônicas, nos artigos de opinião e nos registros do passado feitos por meio de entrevistas com idosos, tem-se um vislumbre da realidade brasileira. Cidades que se formam em poucos anos e se dedicam à exportação de mexerica. Crianças que, depois de estudar, ajudam na colheita do chuchu. Economias formadas graças à exploração do xisto betuminoso.
Os relatos dos mais velhos, reproduzidos pelas crianças, tendem a assinalar o progresso material. A chegada da primeira televisão numa casa de sapé no Amazonas, a luz elétrica no sertão maranhense, a primeira viagem de trem.
Nos artigos de opinião, vê-se de que maneira a perspectiva da nova geração se modificou. O projeto desenvolvimentista clássico, que bem ou mal unificou ideologicamente o país durante boa parte do século 20, já não produz empolgação.
A mentalidade ecológica, mesmo nas menores cidades, predomina; há pequenas Marinas Silvas em qualquer escola.
Talvez não haja novos Gracilianos ou Clarices nos textos que li. Os clichês mais batidos, os "regatos de águas límpidas", as "revoadas de pássaros ao crepúsculo", não correm risco de extinção.
Do Oiapoque ao Chuí, para celebrar esse lindo clichê também, esses alunos estão aprendendo a mesma coisa e vão sendo familiarizados com o padrão que toda escola deve transmitir.
Para a realização das Olimpíadas, houve minucioso treinamento dos professores. Prova disso é que as exigências de cada gênero literário foram seguidas à risca em todos os lugares. A crônica de um menino catarinense era indiscutivelmente uma crônica, assim como era crônica o texto da aluna do Acre.
A uniformidade dos textos e o número de clichês atestaram, para mim, a presença de um esforço das escolas e dos professores, mais do que do acaso ingovernável de algum talento individual.
Cidades pequenas: qual o segredo delas? Dois, a meu ver. O primeiro é que são mais mobilizáveis para projetos desse tipo.
O segundo, menos auspicioso, é que lá o ensino público provavelmente não concorre com escolas particulares: crianças de famílias mais instruídas estudam ao lado das paupérrimas, e talvez seja esse um fator a ajudar o sucesso das primeiras na competição.
Mas escrevo isso só para não cair num otimismo exagerado. Lógico que, na média, tudo continua mal. Malíssimo. Mas não tudo, nem todos: ainda há quem fale de regatos límpidos e de revoadas de pássaros. E alunos pondo suas crases e seus cujos no lugar certo.
Um comentário:
Marta essa olímpiada foi d+ mesmo, aqui no CAP uma aluna nossa, Giovana Scalabrini, foi classificada para a fase final, com a sua crônica, o que com certeza é motivo de muito orgulho a todos nós
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