Do Blog de Roberto Romano
Revista Liberdades do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Nº 6: JANEIRO - ABRIL DE 2011
ISSN 2175-5280
ENTREVISTA
João Paulo Orsini Martinelli entrevista ROBERTO ROMANO
Nesta 6ª edição, a Revista Liberdades apresenta entrevista exclusiva com o Professor Titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Roberto Romano. O entrevistado é graduado em Filosofia pela USP e pós-graduado na USP e na Escola de Altos Estudos Sociais de Paris, onde se doutorou em 1978. Possui uma vida acadêmica ativa e, atualmente, leciona "História da Filosofia Moderna" na graduação e "Ética e Filosofia" na pós-graduação do IFCH. Durante dois anos, coordenou a Frente Nacional em Defesa da Ciência e Tecnologia. Foi presidente da Comissão de Perícias da Unicamp, quando esta ajudou a equacionar o problema das "Ossadas de Perus". Já proferiu centenas de conferências e palestras no País e no Exterior sobre Ética, Democracia, Direitos Humanos e Defesa do Ensino Público. Foi distinguido, em 2000, pela "Associação Juízes para a Democracia", como defensor dos direitos humanos no Brasil. Recebeu, ainda, a Medalha de Direitos Humanos da B´nai B´rith em 2007. Entre seus livros, destacam-se: O Caldeirão de Medeia (Ed. Perspectiva); Cidadania – Verso e Reverso (Ed. Imprensa Oficial-SP); Corpo e Cristal: Marx Romântico (Ed. Guanabara); Silêncio e Ruído (Ed. da Unicamp); Brasil, Igreja contra Estado (Ed. Kayrós) e Conservadorismo Romântico (Ed. Unesp).
A seguinte entrevista foi concedida a João Paulo Orsini Martinelli, Coordenador-Chefe do Departamento de Internet do IBCCRIM:
JP: Professor, primeiramente gostaríamos de saber um pouco de sua carreira acadêmica, especialmente o que o levou a estudar a ética.
RR: Minha primeira ideia de filosofia foi me dada pelo professor Ubaldo Martini Puppi, filósofo que ensinava na Faculdade de Ciência e Letras de Marília, interior de São Paulo. Com ele, e com a leitura de Santo Tomás de Aquino, aprendi conceitos, como o de Bem Comum, essenciais para o pensamento ético. Depois, segui cursos no Convento dos Padres Dominicanos, em Juiz De Fora (MG) e São Paulo, além de ser aluno do Instituto de Filosofia e Teologia (IFC) em São Paulo. Após deixar aquele Instituto, fiz a graduação em Filosofia na USP, em que aprofundei a pesquisa em Ética e Filosofia Política. O curso de doutorado, na França (Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, concluído em 1978), foi orientado para a Filosofia Política. E minha tese (Brasil, Igreja contra Estado, São Paulo, Ed. Kayrós, 1979) tratou de temas éticos e políticos a partir de questões religiosas. Quanto à motivação extra-acadêmica, ela vem do seguinte fato: o Brasil é uma sociedade na qual a corrupção política atinge níveis insuportáveis. O cidadão que paga impostos não recebe os serviços que deveriam ser trazidos pelo Estado, o grande sorvedouro de taxas e impostos. E de tempos a outros, demagogos espertos (ou partidos idem) mobilizam discursos moralistas para chegar ao poder, aproveitando a perene revolta das pessoas com o descalabro dos serviços públicos na educação, saúde, segurança. A diferença entre o moralismo e a ética tem sido o motor de minhas investigações, de modo a contribuir para que nossa gente não se deixe enganar pelos demagogos mencionados.
JP: O Brasil é um país ético? O que o senhor quer dizer com a seguinte frase, mencionada em entrevista concedida à Revista Veja: “A ética brasileira é fundada na violência, no favor e no poder?”
RR: É bom definir as premissas. A ética se define como o complexo de posturas físicas, valores anímicos e atos de uma coletividade. Uma vez aprendidos os costumes de uma sociedade, os indivíduos e grupos que a ela pertencem passam a praticá-los de modo automático, sem demasiada reflexão. Tal é o perigo da ética: os automatismos aprendidos e aprofundados. Dou um exemplo: a esmagadora maioria dos motoristas brasileiros aprendeu que os pedestres não merecem respeito. Assim, de maneira automática, diante de um sinal vermelho ou faixa de pedestre, o automatismo os leva a acelerar o veículo, raramente a parar. Todos os que agem daquele modo ficariam assustados se alguém lhes dissesse que a sua ética é assassina. De modo idêntico em todos os demais setores da vida. Raros brasileiros não pediram um favor para eludir procedimentos formais e igualitários no âmbito do Estado ou da sociedade. É uma cultura do “quebra-galho” universalizada. E existe uma hierarquia social e política inconfessada que manda dobrar a espinha a quem “pode mais”, econômica ou politicamente. A frase “sabe com quem está falando?” é por demais eloquente. Em outras terras, quando existe tensão entre indivíduos, o revoltado diz ao seu oponente: “Quem você pensa que é ?” Aqui, na pergunta já surge a lógica perversa e anti-igualitária: “eu sou importante e você terá problemas, mesmo que esteja cumprindo o seu dever funcional”. Poderíamos elencar milhares de costumes semelhantes, hediondos, mas aceitos como “normais” entre nós. Aqui, numa fila qualquer, o esperto que a desobedece é admirado. O que reclama contra ele é “chato”. Não é mesmo? Em tais exemplos micrológicos, notamos o que se passa em termos macrológicos na sociedade e no Estado.
JP: Na sua avaliação, como a ética pode reduzir a criminalidade?
RR: Ética, insisto, se diz de muitos modos. Existem valores éticos positivos, que levam aos atos úteis ao Bem Comum. Existem valores éticos negativos, que levam ao esgarçamento dos vínculos sociais. Para mudar os comportamentos criminosos, é preciso que toda a sociedade abandone a ética do favor, da burla face à lei, da licença política etc. No caso da lei da “ficha limpa”, notamos que mudanças microscópicas, mas significativas, começam a ocorrer e os criminosos de colarinho branco passam a ser punidos. Mas enquanto não for abolido o privilégio de foro para os políticos, uma licença para o crime, nada mudará em termos substanciais. Só existe uma fórmula para reduzir a criminalidade: democracia e respeito dos direitos de todos e de cada um (incluindo os acusados de cometer delitos ou crimes) e acatamento da lei. Fora tal fórmula, temos apenas a barbárie, a vingança, o linchamento, que não diminuem a criminalidade, visto que temos aí crimes desumanos, mera reação de massa.
JP: Qual a sua opinião sobre o sistema carcerário brasileiro?
RR: Ele ajuda a entender a lógica do genocídio. Monstruosidade é pouco para definir um sistema que gera o crime industrialmente. A professora Alba Zaluar, em seus trabalhos, mostra o quanto tal sistema deve ao positivismo que formou nossa pobre república. Não me deterei na análise dos seus textos. Mas seus trabalhos sobre o comércio de drogas a levam a considerações estratégicas sobre a conivência da “boa sociedade” com o crime, ao ser tolerado o sistema dantesco das triagens feitas pela polícia e do armazenamento de corpos que aquelas triagens acarretam, as almas são violentadas mesmo antes das prisões, mas depois delas, perde o sentido o termo “alma” porque o processo oficial conduz à animalização dos seres humanos entregues à suposta guarda do Estado.
JP: O senhor acha viável a pena de morte?
RR: A pena de morte nunca resolveu ou atenuou a criminalidade. Trata-se de uma covardia dos Estados e dos seus cidadãos. Os primeiros usam o monopólio da força em sentido oposto a qualquer tese sobre o contrato. Mesmo a tese hobbesiana é mais digna do que as doutrinas de hoje que pregam a pena capital. Quando digo que a sociedade brasileira tem como ética a violência, penso inclusive nos programas fascistas (ditos policiais) que incitam perenemente os cidadãos para que exijam a covardia de Estado a que aludi. Os inúmeros linchamentos, ocorridos devido às mentes intoxicadas pelo fascismo policialesco (existem policiais que são mais clementes e humanos do que muitos jornalistas “especializados”), mostram um lado insuportável da ética gerada e reproduzida no Brasil.
JP: E a prisão perpétua? Qual sua opinião a respeito?
RR: Estamos em 2010. Cesare Beccaria escreveu o monumento intitulado Dei delitti e delle pene em 1763. Temos, pois, 247 anos de experiência, análise, renovação das teorias sobre a pena. Prisão perpétua equivale à pena de morte civil, é algo que mostra o falecimento da sociedade, a sua fraqueza em inserir indivíduos no seu interior. O tempo cósmico pode ser finito ou infinito, conforme a perspectiva pela qual é considerado. Mas o tempo das sociedades é sempre finito e o dos indivíduos ainda mais restrito. “Perpétuo” é algo que só vigora para o registro natural ou divino. Nenhuma sociedade reúne toda a natureza, e nenhuma sociedade é divina. Ela deve premiar ou punir de acordo com o diapasão temporal que é o seu. Punir alguém “pela vida toda” que lhe resta é arrogância e, portanto, viola a essência do convívio humano. Permito-me indicar, sobre o tema, um artigo meu publicado para uma revista universitária cujo título, justamente, é o seguinte: “Os laços do orgulho. Reflexões sobre a política e o mal”. A revista chama-se Unimontes Científica, volume 6, número 1, janeiro /junho de 2005), no endereço eletrônico: http://www.unimontes.br/unimontescientifica/revistas/sumario_v6_n1.htm. Alí, mostro o quanto a arrogante atitude de homens é, ela mesma, a matriz de todos os males, de todos os crimes.
JP: Quais seriam as principais causas da criminalidade na sua opinião?
RR: As causas podem ser múltiplas, e as ciências da psicologia social, da sociologia, da política, do direito, com uso de inúmeros instrumentos técnicos (da estatística às pesquisas, como as já referidas, da Dra. Alba Zaluar) ajudam a aclarar um pouco os mecanismos que distorcem o agir humano e fazem os indivíduos e grupos seguirem a via da violência física ou psíquica contra seus semelhantes. Explicações religiosas, como a doutrina do pecado original cristã, podem ajudar a entender um pouco o mecanismo do crime. Não por acaso, nos relatos religiosos, o assassinato surge logo após a queda dos entes humanos do mítico paraíso, com a história de Caim e Abel. Tais figuras simbólicas mostram o traço arcaico do crime na sociedade. E a sua relevância. Existe também toda uma doutrina prudencial sobre o crime: apenas os hipócritas (o Novo Testamento os chama de “fariseus”, devido a uma seita rigorista em termos de moral e direito) se imaginam isentos de cair no crime. Os hipócritas não conhecem a misericórdia quando alguém comete um atentado à vida alheia, à sua propriedade etc. A justiça (os gregos a chamam “epikéia”) vai além da letra da lei, reconhecendo o fato de que todos os entes humanos são suscetíveis de praticar crimes. Ela dosa as penas de maneira a não permitir que um crime seja retribuído por outro, sob a chancela do poder político ou religioso. Se me permitem, eu diria, sabendo todo o peso das palavras, que o crime, ainda hoje e, imagino, em longo prazo, será um mistério para a humanidade. Tentar compreendê-lo com os métodos científicos ou filosóficos pode ajudar, mas não desce até suas raízes.
JP: Qual deveria ser o papel da mídia na divulgação dos casos de violência?
RR: Deveria ser exigido da mídia que preservasse o direito das vítimas e o dos agressores, sobretudo quando eles são apenas supostos agressores. A exibição pornográfica de presos (muitos depois inocentados), com sensacionalismo fascista, deveria ser proibida. Na Europa, quando alguém é preso e acusado, seu rosto aparece borrado nas telas de televisão. Aqui, lembremos o caso da Escola de Base, a TV policialesca mostra a casa, os familiares do acusado, além do próprio, julgando antes do juiz e do devido processo legal. Existem “jornalistas” que interpelam advogados de defesa, como se exercer aquele múnus fosse um crime a mais.
JP: Qual sua opinião sobre a reação popular em crimes de grande repercussão? Isso é prejudicial à democracia?
RR: Tal manipulação das massas é um treino para o fascismo.
JP: Normalmente, a massa fica mais exaltada quando ocorre um crime praticado por meio da violência. No entanto, parece haver menor mobilização popular nos casos de corrupção. A população, em geral, ainda não assimilou que um crime envolvendo a Administração Pública pode ser mais grave por atingir pessoas indeterminadas?
RR: Infelizmente, não. E pior: com o sistema de concentração quase absoluta que torna inoperante a prática federativa entre nós, os recursos monetários e humanos sendo quase monopolizados pelo poder de Brasilia, os impostos só voltam às cidades pelo mecanismo do “é dando, que se recebe”. Os políticos oligarcas conseguem, em tratos não raro espúrios com o Executivo Federal, liberar verbas e obras para suas regiões. A massa dos contribuintes que vive nos municipios, embora condenando, da boca para fora, a “corrupção”, só vota nos candidatos que já mostraram eficácia na obtenção de verbas (escolas, estradas, hospitais etc.) para suas cidades. Assim, temos uma hipocrisia política estonteante, visto que os mais prejudicados pela corrupção aprovam e só votam nos candidatos que praticam o “realismo” político, ou seja, a troca do que é público por supostos “favores” dos eventuais governantes.
JP: O senhor acha correto que autoridades públicas apareçam em público para darem suas opiniões a respeito de crimes que investigam ou denunciam? Promotores e delegados não deveriam se manifestar apenas nos autos do processo e do inquérito?
RR: Um julgamento (no júri) possui quatro partes essenciais e sem uma delas é vingança ou tirania: a acusação, a defesa, o juíz e os jurados. Eles efetivam um sistema harmônico e solidário na busca dos fatos e das leis aplicáveis a cada caso. Se o acusador (e antes dele a polícia) se permite vir a público, antes do julgamento e da sentença, para afirmar a culpa de um acusado, ele deixa o sistema e passa a operar como parte independente. Logo, subverte o sistema da justiça, abusa do seu múnus, age de maneira injustificavelmente tirânica. Gosto de recordar que a instituição do acusador público teve origem na Atenas democrática. Aquela figura, na primeira forma democrática, surgiu justamente para evitar a vingança das famílias, algo que impedia a unidade do Estado em guerras privadas. O acusador fala em nome da família ofendida, mas também em nome do povo. Contudo, naquele regime ateniense, o acusador, se não apresentasse provas ponderadas que levassem à condenação do acusado, deveria pagar multa pesada. Platão, nas “Leis”, propõe multas também para os juízes que não operam de acordo com o correto julgamento. Se, no Brasil, multas fossem aplicadas aos operadores do direito que trabalham na acusação e extrapolam seus limites, boa parte do apelo midiático (que os leva a operar fora do sistema judicial correto) já teria desaparecido.
JP: Qual a importância da interdisciplinariedade do curso de direito com outros ramos do conhecimento? O que as demais ciências humanas podem acrescentar ao jurista?
RR: Existem trabalhos sobre o assunto, de modo que eu pouco acrescentaria ao ponto. Mas com o nível e complexidade das informações teóricas e práticas a que chegamos hoje, quase nenhuma especialização dispensa o auxílio de pesquisas conexas. Isto ocorre nas ciências da natureza, nas matemáticas, na lógica e no direito. A informação pluridisciplinar permite ao profissional perceber nexos entre problemas e soluções que permaneceriam ignorados nos limites estreitos e estritos das supostas especializações.
JP: Quais seriam os pensadores que o senhor entende fundamentais aos estudiosos do direito?
RR: Ouso indicar um apenas. Como disse alguém, toda a filosofia do Ocidente é apenas um conjunto de notas de rodapé aos seus livros: Platão.
JP: Agora uma questão mais polêmica, que envolve direito e outros ramos do conhecimento: qual sua opinião a respeito da eutanásia?
RR: A morte abraça a vida desde a gênese dos seres. Como diz André Leroi-Gourhan, um etnólogo maior do século 20, os humanos construíram seu corpo e seus instrumentos na luta, de instante a instante, contra a violência da natureza, ou seja, da morte. E sabemos, com as teses sobre a entropia, que os mundos, as estrelas, as constelações, o universo, todos morrem. Importa sobremodo determinar o jeito pelo qual o tempo que nos resta é usado, se a soma das tristezas e misérias é menor ou maior do que a que resulta em felicidade.
Desconfio das palavras e atos que se iniciam com a inicial grega "eu". Tais ações e termos podem conduzir a coisas deslumbrantes e saudáveis, como é o caso do Euangelion (Evangelho, boa notícia). Mas não podemos ignorar o quanto o século 20 se esmerou em atrocidades em nome da eugenia e da eutanásia. Basta ler o pungente livro de Edwin Black, A Guerra contra os Pobres, traduzido para nossa língua pela Editora Girafa. Aliás, as raízes da violência contra os desvalidos vem do predomínio, sem demasiadas vigilâncias, da ordem médica. Não é preciso aprovar as análises de Michel Foucault sobre o poder da clínica, para suspeitar de medidas supostamente oferecidas para "minorar o sofrimento" humano. Um dado: ainda no século XVI, o estatuto do louco era o de "ausente". Aos juízes e advogados, era atribuído o seu cuidado. Se houvesse "retorno a si", decidido pelo juiz, o tutor do louco deveria prestar contas a ele e à sociedade de a respeito de sua pessoa, seus bens etc. Com o domínio do "saber médico", no entanto, o estatuto do louco passou a ser o de morto. Os abusos, a falta de proteção jurídica e toda uma panóplia de malefícios surgiram do poder médico. A história dos choques, das castrações e outras, ainda mais trágicas (que desembocaram no Holocausto), indica que devemos, se quisermos ser prudentes, desconfiar de doutrinas "humanitárias" como a eutanásia. Quem desejar informações sobre o que digo, recomendo a leitura do simpósio internacional ocorrido em Bruxelas: Folie et déraison à la Renaissance. Colloque international (1973), Fédération Internationale des Instituts et Sociétés pour l'Etude de la Renaissance, Bruxelles, Editions de l'Université de Bruxelles. Decisões "humanitárias" levam, de maneira constante, a decisões como a do juiz norte-americano que exigiu a castração de uma jovem, depois de a mãe da mesma jovem ter sido castrada, em nome do bem-estar social. Basta conferir o processo Buck versus Bell, no qual se definiu o direito de usar a eugenia em nome da "proteção e da saúde do Estado". As vítimas, supostamente, deveriam consentir no "bem maior" em favor do coletivo. Alí se consagrou a doutrina eugênica, exportada para a Alemanha e nela usada como instrumento de aniquilação de massa.
Face à dor que antecede a morte, é previsível que entes humanos desejem a libertação com o fim da vida. Mas oficializar a licença para a morte, dando mais poderes ainda ao poder médico, anuncia desgraças futuras. Quem sofre dores insuportáveis não tem pleno domínio de si mesmo, seu livre-arbítrio está abalado até os fundamentos. Não esqueçamos a pressão coletiva, e mesmo de familiares, para que o fim seja apressado. O egoísmo se transforma, como por mágica (na verdade, a partir de intensa propaganda), em humanitarismo. Dar licença para a sua morte, sobretudo aos médicos, é retirar da pessoa doente a liberdade efetiva, atribuindo-a ao estamento médico, cuja arrogância "científica" já mostrou sobejos frutos de arbítrio, erros, atentados à ética.
JP: Por fim, quando se fala em punição no Brasil, existem desigualdades?
RR: Sim, inúmeras. A Justiça lenta e apegada a ritos formais, e menos atenta à “epikéia”, conduz ao privilégio negativo (o conceito é de Max Weber) dos pobres e dos que não têm poder. O privilégio de foro demonstra o quanto somos uma sociedade injusta, com uma justiça que raramente merece seu nome.
ISSN 2175-5280
ENTREVISTA
João Paulo Orsini Martinelli entrevista ROBERTO ROMANO
Nesta 6ª edição, a Revista Liberdades apresenta entrevista exclusiva com o Professor Titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Roberto Romano. O entrevistado é graduado em Filosofia pela USP e pós-graduado na USP e na Escola de Altos Estudos Sociais de Paris, onde se doutorou em 1978. Possui uma vida acadêmica ativa e, atualmente, leciona "História da Filosofia Moderna" na graduação e "Ética e Filosofia" na pós-graduação do IFCH. Durante dois anos, coordenou a Frente Nacional em Defesa da Ciência e Tecnologia. Foi presidente da Comissão de Perícias da Unicamp, quando esta ajudou a equacionar o problema das "Ossadas de Perus". Já proferiu centenas de conferências e palestras no País e no Exterior sobre Ética, Democracia, Direitos Humanos e Defesa do Ensino Público. Foi distinguido, em 2000, pela "Associação Juízes para a Democracia", como defensor dos direitos humanos no Brasil. Recebeu, ainda, a Medalha de Direitos Humanos da B´nai B´rith em 2007. Entre seus livros, destacam-se: O Caldeirão de Medeia (Ed. Perspectiva); Cidadania – Verso e Reverso (Ed. Imprensa Oficial-SP); Corpo e Cristal: Marx Romântico (Ed. Guanabara); Silêncio e Ruído (Ed. da Unicamp); Brasil, Igreja contra Estado (Ed. Kayrós) e Conservadorismo Romântico (Ed. Unesp).
A seguinte entrevista foi concedida a João Paulo Orsini Martinelli, Coordenador-Chefe do Departamento de Internet do IBCCRIM:
JP: Professor, primeiramente gostaríamos de saber um pouco de sua carreira acadêmica, especialmente o que o levou a estudar a ética.
RR: Minha primeira ideia de filosofia foi me dada pelo professor Ubaldo Martini Puppi, filósofo que ensinava na Faculdade de Ciência e Letras de Marília, interior de São Paulo. Com ele, e com a leitura de Santo Tomás de Aquino, aprendi conceitos, como o de Bem Comum, essenciais para o pensamento ético. Depois, segui cursos no Convento dos Padres Dominicanos, em Juiz De Fora (MG) e São Paulo, além de ser aluno do Instituto de Filosofia e Teologia (IFC) em São Paulo. Após deixar aquele Instituto, fiz a graduação em Filosofia na USP, em que aprofundei a pesquisa em Ética e Filosofia Política. O curso de doutorado, na França (Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, concluído em 1978), foi orientado para a Filosofia Política. E minha tese (Brasil, Igreja contra Estado, São Paulo, Ed. Kayrós, 1979) tratou de temas éticos e políticos a partir de questões religiosas. Quanto à motivação extra-acadêmica, ela vem do seguinte fato: o Brasil é uma sociedade na qual a corrupção política atinge níveis insuportáveis. O cidadão que paga impostos não recebe os serviços que deveriam ser trazidos pelo Estado, o grande sorvedouro de taxas e impostos. E de tempos a outros, demagogos espertos (ou partidos idem) mobilizam discursos moralistas para chegar ao poder, aproveitando a perene revolta das pessoas com o descalabro dos serviços públicos na educação, saúde, segurança. A diferença entre o moralismo e a ética tem sido o motor de minhas investigações, de modo a contribuir para que nossa gente não se deixe enganar pelos demagogos mencionados.
JP: O Brasil é um país ético? O que o senhor quer dizer com a seguinte frase, mencionada em entrevista concedida à Revista Veja: “A ética brasileira é fundada na violência, no favor e no poder?”
RR: É bom definir as premissas. A ética se define como o complexo de posturas físicas, valores anímicos e atos de uma coletividade. Uma vez aprendidos os costumes de uma sociedade, os indivíduos e grupos que a ela pertencem passam a praticá-los de modo automático, sem demasiada reflexão. Tal é o perigo da ética: os automatismos aprendidos e aprofundados. Dou um exemplo: a esmagadora maioria dos motoristas brasileiros aprendeu que os pedestres não merecem respeito. Assim, de maneira automática, diante de um sinal vermelho ou faixa de pedestre, o automatismo os leva a acelerar o veículo, raramente a parar. Todos os que agem daquele modo ficariam assustados se alguém lhes dissesse que a sua ética é assassina. De modo idêntico em todos os demais setores da vida. Raros brasileiros não pediram um favor para eludir procedimentos formais e igualitários no âmbito do Estado ou da sociedade. É uma cultura do “quebra-galho” universalizada. E existe uma hierarquia social e política inconfessada que manda dobrar a espinha a quem “pode mais”, econômica ou politicamente. A frase “sabe com quem está falando?” é por demais eloquente. Em outras terras, quando existe tensão entre indivíduos, o revoltado diz ao seu oponente: “Quem você pensa que é ?” Aqui, na pergunta já surge a lógica perversa e anti-igualitária: “eu sou importante e você terá problemas, mesmo que esteja cumprindo o seu dever funcional”. Poderíamos elencar milhares de costumes semelhantes, hediondos, mas aceitos como “normais” entre nós. Aqui, numa fila qualquer, o esperto que a desobedece é admirado. O que reclama contra ele é “chato”. Não é mesmo? Em tais exemplos micrológicos, notamos o que se passa em termos macrológicos na sociedade e no Estado.
JP: Na sua avaliação, como a ética pode reduzir a criminalidade?
RR: Ética, insisto, se diz de muitos modos. Existem valores éticos positivos, que levam aos atos úteis ao Bem Comum. Existem valores éticos negativos, que levam ao esgarçamento dos vínculos sociais. Para mudar os comportamentos criminosos, é preciso que toda a sociedade abandone a ética do favor, da burla face à lei, da licença política etc. No caso da lei da “ficha limpa”, notamos que mudanças microscópicas, mas significativas, começam a ocorrer e os criminosos de colarinho branco passam a ser punidos. Mas enquanto não for abolido o privilégio de foro para os políticos, uma licença para o crime, nada mudará em termos substanciais. Só existe uma fórmula para reduzir a criminalidade: democracia e respeito dos direitos de todos e de cada um (incluindo os acusados de cometer delitos ou crimes) e acatamento da lei. Fora tal fórmula, temos apenas a barbárie, a vingança, o linchamento, que não diminuem a criminalidade, visto que temos aí crimes desumanos, mera reação de massa.
JP: Qual a sua opinião sobre o sistema carcerário brasileiro?
RR: Ele ajuda a entender a lógica do genocídio. Monstruosidade é pouco para definir um sistema que gera o crime industrialmente. A professora Alba Zaluar, em seus trabalhos, mostra o quanto tal sistema deve ao positivismo que formou nossa pobre república. Não me deterei na análise dos seus textos. Mas seus trabalhos sobre o comércio de drogas a levam a considerações estratégicas sobre a conivência da “boa sociedade” com o crime, ao ser tolerado o sistema dantesco das triagens feitas pela polícia e do armazenamento de corpos que aquelas triagens acarretam, as almas são violentadas mesmo antes das prisões, mas depois delas, perde o sentido o termo “alma” porque o processo oficial conduz à animalização dos seres humanos entregues à suposta guarda do Estado.
JP: O senhor acha viável a pena de morte?
RR: A pena de morte nunca resolveu ou atenuou a criminalidade. Trata-se de uma covardia dos Estados e dos seus cidadãos. Os primeiros usam o monopólio da força em sentido oposto a qualquer tese sobre o contrato. Mesmo a tese hobbesiana é mais digna do que as doutrinas de hoje que pregam a pena capital. Quando digo que a sociedade brasileira tem como ética a violência, penso inclusive nos programas fascistas (ditos policiais) que incitam perenemente os cidadãos para que exijam a covardia de Estado a que aludi. Os inúmeros linchamentos, ocorridos devido às mentes intoxicadas pelo fascismo policialesco (existem policiais que são mais clementes e humanos do que muitos jornalistas “especializados”), mostram um lado insuportável da ética gerada e reproduzida no Brasil.
JP: E a prisão perpétua? Qual sua opinião a respeito?
RR: Estamos em 2010. Cesare Beccaria escreveu o monumento intitulado Dei delitti e delle pene em 1763. Temos, pois, 247 anos de experiência, análise, renovação das teorias sobre a pena. Prisão perpétua equivale à pena de morte civil, é algo que mostra o falecimento da sociedade, a sua fraqueza em inserir indivíduos no seu interior. O tempo cósmico pode ser finito ou infinito, conforme a perspectiva pela qual é considerado. Mas o tempo das sociedades é sempre finito e o dos indivíduos ainda mais restrito. “Perpétuo” é algo que só vigora para o registro natural ou divino. Nenhuma sociedade reúne toda a natureza, e nenhuma sociedade é divina. Ela deve premiar ou punir de acordo com o diapasão temporal que é o seu. Punir alguém “pela vida toda” que lhe resta é arrogância e, portanto, viola a essência do convívio humano. Permito-me indicar, sobre o tema, um artigo meu publicado para uma revista universitária cujo título, justamente, é o seguinte: “Os laços do orgulho. Reflexões sobre a política e o mal”. A revista chama-se Unimontes Científica, volume 6, número 1, janeiro /junho de 2005), no endereço eletrônico: http://www.unimontes.br/unimontescientifica/revistas/sumario_v6_n1.htm. Alí, mostro o quanto a arrogante atitude de homens é, ela mesma, a matriz de todos os males, de todos os crimes.
JP: Quais seriam as principais causas da criminalidade na sua opinião?
RR: As causas podem ser múltiplas, e as ciências da psicologia social, da sociologia, da política, do direito, com uso de inúmeros instrumentos técnicos (da estatística às pesquisas, como as já referidas, da Dra. Alba Zaluar) ajudam a aclarar um pouco os mecanismos que distorcem o agir humano e fazem os indivíduos e grupos seguirem a via da violência física ou psíquica contra seus semelhantes. Explicações religiosas, como a doutrina do pecado original cristã, podem ajudar a entender um pouco o mecanismo do crime. Não por acaso, nos relatos religiosos, o assassinato surge logo após a queda dos entes humanos do mítico paraíso, com a história de Caim e Abel. Tais figuras simbólicas mostram o traço arcaico do crime na sociedade. E a sua relevância. Existe também toda uma doutrina prudencial sobre o crime: apenas os hipócritas (o Novo Testamento os chama de “fariseus”, devido a uma seita rigorista em termos de moral e direito) se imaginam isentos de cair no crime. Os hipócritas não conhecem a misericórdia quando alguém comete um atentado à vida alheia, à sua propriedade etc. A justiça (os gregos a chamam “epikéia”) vai além da letra da lei, reconhecendo o fato de que todos os entes humanos são suscetíveis de praticar crimes. Ela dosa as penas de maneira a não permitir que um crime seja retribuído por outro, sob a chancela do poder político ou religioso. Se me permitem, eu diria, sabendo todo o peso das palavras, que o crime, ainda hoje e, imagino, em longo prazo, será um mistério para a humanidade. Tentar compreendê-lo com os métodos científicos ou filosóficos pode ajudar, mas não desce até suas raízes.
JP: Qual deveria ser o papel da mídia na divulgação dos casos de violência?
RR: Deveria ser exigido da mídia que preservasse o direito das vítimas e o dos agressores, sobretudo quando eles são apenas supostos agressores. A exibição pornográfica de presos (muitos depois inocentados), com sensacionalismo fascista, deveria ser proibida. Na Europa, quando alguém é preso e acusado, seu rosto aparece borrado nas telas de televisão. Aqui, lembremos o caso da Escola de Base, a TV policialesca mostra a casa, os familiares do acusado, além do próprio, julgando antes do juiz e do devido processo legal. Existem “jornalistas” que interpelam advogados de defesa, como se exercer aquele múnus fosse um crime a mais.
JP: Qual sua opinião sobre a reação popular em crimes de grande repercussão? Isso é prejudicial à democracia?
RR: Tal manipulação das massas é um treino para o fascismo.
JP: Normalmente, a massa fica mais exaltada quando ocorre um crime praticado por meio da violência. No entanto, parece haver menor mobilização popular nos casos de corrupção. A população, em geral, ainda não assimilou que um crime envolvendo a Administração Pública pode ser mais grave por atingir pessoas indeterminadas?
RR: Infelizmente, não. E pior: com o sistema de concentração quase absoluta que torna inoperante a prática federativa entre nós, os recursos monetários e humanos sendo quase monopolizados pelo poder de Brasilia, os impostos só voltam às cidades pelo mecanismo do “é dando, que se recebe”. Os políticos oligarcas conseguem, em tratos não raro espúrios com o Executivo Federal, liberar verbas e obras para suas regiões. A massa dos contribuintes que vive nos municipios, embora condenando, da boca para fora, a “corrupção”, só vota nos candidatos que já mostraram eficácia na obtenção de verbas (escolas, estradas, hospitais etc.) para suas cidades. Assim, temos uma hipocrisia política estonteante, visto que os mais prejudicados pela corrupção aprovam e só votam nos candidatos que praticam o “realismo” político, ou seja, a troca do que é público por supostos “favores” dos eventuais governantes.
JP: O senhor acha correto que autoridades públicas apareçam em público para darem suas opiniões a respeito de crimes que investigam ou denunciam? Promotores e delegados não deveriam se manifestar apenas nos autos do processo e do inquérito?
RR: Um julgamento (no júri) possui quatro partes essenciais e sem uma delas é vingança ou tirania: a acusação, a defesa, o juíz e os jurados. Eles efetivam um sistema harmônico e solidário na busca dos fatos e das leis aplicáveis a cada caso. Se o acusador (e antes dele a polícia) se permite vir a público, antes do julgamento e da sentença, para afirmar a culpa de um acusado, ele deixa o sistema e passa a operar como parte independente. Logo, subverte o sistema da justiça, abusa do seu múnus, age de maneira injustificavelmente tirânica. Gosto de recordar que a instituição do acusador público teve origem na Atenas democrática. Aquela figura, na primeira forma democrática, surgiu justamente para evitar a vingança das famílias, algo que impedia a unidade do Estado em guerras privadas. O acusador fala em nome da família ofendida, mas também em nome do povo. Contudo, naquele regime ateniense, o acusador, se não apresentasse provas ponderadas que levassem à condenação do acusado, deveria pagar multa pesada. Platão, nas “Leis”, propõe multas também para os juízes que não operam de acordo com o correto julgamento. Se, no Brasil, multas fossem aplicadas aos operadores do direito que trabalham na acusação e extrapolam seus limites, boa parte do apelo midiático (que os leva a operar fora do sistema judicial correto) já teria desaparecido.
JP: Qual a importância da interdisciplinariedade do curso de direito com outros ramos do conhecimento? O que as demais ciências humanas podem acrescentar ao jurista?
RR: Existem trabalhos sobre o assunto, de modo que eu pouco acrescentaria ao ponto. Mas com o nível e complexidade das informações teóricas e práticas a que chegamos hoje, quase nenhuma especialização dispensa o auxílio de pesquisas conexas. Isto ocorre nas ciências da natureza, nas matemáticas, na lógica e no direito. A informação pluridisciplinar permite ao profissional perceber nexos entre problemas e soluções que permaneceriam ignorados nos limites estreitos e estritos das supostas especializações.
JP: Quais seriam os pensadores que o senhor entende fundamentais aos estudiosos do direito?
RR: Ouso indicar um apenas. Como disse alguém, toda a filosofia do Ocidente é apenas um conjunto de notas de rodapé aos seus livros: Platão.
JP: Agora uma questão mais polêmica, que envolve direito e outros ramos do conhecimento: qual sua opinião a respeito da eutanásia?
RR: A morte abraça a vida desde a gênese dos seres. Como diz André Leroi-Gourhan, um etnólogo maior do século 20, os humanos construíram seu corpo e seus instrumentos na luta, de instante a instante, contra a violência da natureza, ou seja, da morte. E sabemos, com as teses sobre a entropia, que os mundos, as estrelas, as constelações, o universo, todos morrem. Importa sobremodo determinar o jeito pelo qual o tempo que nos resta é usado, se a soma das tristezas e misérias é menor ou maior do que a que resulta em felicidade.
Desconfio das palavras e atos que se iniciam com a inicial grega "eu". Tais ações e termos podem conduzir a coisas deslumbrantes e saudáveis, como é o caso do Euangelion (Evangelho, boa notícia). Mas não podemos ignorar o quanto o século 20 se esmerou em atrocidades em nome da eugenia e da eutanásia. Basta ler o pungente livro de Edwin Black, A Guerra contra os Pobres, traduzido para nossa língua pela Editora Girafa. Aliás, as raízes da violência contra os desvalidos vem do predomínio, sem demasiadas vigilâncias, da ordem médica. Não é preciso aprovar as análises de Michel Foucault sobre o poder da clínica, para suspeitar de medidas supostamente oferecidas para "minorar o sofrimento" humano. Um dado: ainda no século XVI, o estatuto do louco era o de "ausente". Aos juízes e advogados, era atribuído o seu cuidado. Se houvesse "retorno a si", decidido pelo juiz, o tutor do louco deveria prestar contas a ele e à sociedade de a respeito de sua pessoa, seus bens etc. Com o domínio do "saber médico", no entanto, o estatuto do louco passou a ser o de morto. Os abusos, a falta de proteção jurídica e toda uma panóplia de malefícios surgiram do poder médico. A história dos choques, das castrações e outras, ainda mais trágicas (que desembocaram no Holocausto), indica que devemos, se quisermos ser prudentes, desconfiar de doutrinas "humanitárias" como a eutanásia. Quem desejar informações sobre o que digo, recomendo a leitura do simpósio internacional ocorrido em Bruxelas: Folie et déraison à la Renaissance. Colloque international (1973), Fédération Internationale des Instituts et Sociétés pour l'Etude de la Renaissance, Bruxelles, Editions de l'Université de Bruxelles. Decisões "humanitárias" levam, de maneira constante, a decisões como a do juiz norte-americano que exigiu a castração de uma jovem, depois de a mãe da mesma jovem ter sido castrada, em nome do bem-estar social. Basta conferir o processo Buck versus Bell, no qual se definiu o direito de usar a eugenia em nome da "proteção e da saúde do Estado". As vítimas, supostamente, deveriam consentir no "bem maior" em favor do coletivo. Alí se consagrou a doutrina eugênica, exportada para a Alemanha e nela usada como instrumento de aniquilação de massa.
Face à dor que antecede a morte, é previsível que entes humanos desejem a libertação com o fim da vida. Mas oficializar a licença para a morte, dando mais poderes ainda ao poder médico, anuncia desgraças futuras. Quem sofre dores insuportáveis não tem pleno domínio de si mesmo, seu livre-arbítrio está abalado até os fundamentos. Não esqueçamos a pressão coletiva, e mesmo de familiares, para que o fim seja apressado. O egoísmo se transforma, como por mágica (na verdade, a partir de intensa propaganda), em humanitarismo. Dar licença para a sua morte, sobretudo aos médicos, é retirar da pessoa doente a liberdade efetiva, atribuindo-a ao estamento médico, cuja arrogância "científica" já mostrou sobejos frutos de arbítrio, erros, atentados à ética.
JP: Por fim, quando se fala em punição no Brasil, existem desigualdades?
RR: Sim, inúmeras. A Justiça lenta e apegada a ritos formais, e menos atenta à “epikéia”, conduz ao privilégio negativo (o conceito é de Max Weber) dos pobres e dos que não têm poder. O privilégio de foro demonstra o quanto somos uma sociedade injusta, com uma justiça que raramente merece seu nome.
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