TUCA PUC 1977
EU QUASE QUE NADA SEI. MAS DESCONFIO DE MUITA COISA. GUIMARÃES ROSA.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Do Blog do Solda


Fernando Pessoa tem um poema em que ele se ocupa das pessoas que estão em nossas vidas sem fazer parte da parte mais profunda. A partir de uma cadeira vazia numa barbearia, ele se dá conta de um vazio nele mesmo. E o morto nem era o seu barbeiro. A lista se alonga, por todos aqueles figurantes que compunham o seu cotidiano, lá por volta de 1920/30. Açougueiros, sapateiros, balconistas de armarinhos e armazéns, farmacêuticos. Todos a integrar a vida diária daquela época, em seus procedimentos mais prosaicos, o prosseguimento comezinho em que, de fato, se resume a vida e não a literatice sobre ela. Novo parágrafo.
Há muito tempo o cotidiano das pessoas se impessoaliza, o elenco de coadjuvantes significativos ao nosso redor é cada vez menor, muito menos próximo. Os interstícios de relacionamentos têm hoje a consistência do átomo e a relevância do átimo. Matéria com a qual se fazem as nostalgias e as teorias sociais. Mais um parágrafo.
Sei lá se Fernando Pessoa ia ou não ia a cinema. Nem quero conjeturar sobre seu convívio com porteiros, bilheteiras,lanterninhas ou projecionistas. Me pergunto se alguma vez se perguntou sobre os seres lá na tela e os autores atrás dela. Outro parágrafo.
Perder Bergman e Antonioni de uma vez só me leva a pensar como Pessoa. Que eram para mim esses diretores? Por que suas fotos e seus necrológios me engasgaram retroativamente? O fato de ser cinéfilo não explica, pois tantos cineastas e atores desaparecem e em mim não aparece nem um rasgo de perturbação. Parágrafo novamente.
Bergman e Antonioni eram "difíceis". Traziam para o jovem tosco que eu era alguma sofisticação reflexiva. A cada fim de sessão, me deixavam a sós com suas elucubrações existenciais, turvando mais ainda o escuro da sala. Eu adorava passar por isso. Era uma forma de deixar de ser quem tinha sido até então, a maturação pela angústia alheia. Voltava para a rua com inéditas complexidades, às vezes com uma deslocada densidade à luz do dia. Parágrafo.

Quer dizer, Bergman e Antonioni (e Visconti e Fellini e Pasolini e tantos outros, nas décadas de 60 e 70) conviviam comigo cotidianamente. Os encontros eram previstos e cumpridos – os cartazes nas fachadas dos cinemas como páginas de uma agenda a respeitar. Com o tempo, todos os meus diretores favoritos – Billy Wilder no topo da lista de reverência – passaram a ser íntimos do meu íntimo. Uma mistureba entre as descobertas reais acerca de mim mesmo através das minhas próprias experiências com o que descobria a meu respeito através das inquietações deles, em suas obras. Parágrafo, mais uma vez.
Essa mistureba me trouxe até aqui. Me mantém interessado em mais e mais misturebas, vindas das telas e dos livros, da música e das artes. Com essa mistureba devo ir até não ir mais a parte alguma. Mas só os cineastas me acompanham tão de perto. Para trás – atrás da memória, esse biombo que está sempre entre mim e a época que tento vislumbrar melhor – ficaram os vultos dos baratilhos de antigamente, os barbeiros do corte cadete, o guarda-noturno, a benzedeira do bairro, o açougueiro, o afiador de facas, todos aqueles que emigraram do meus desgastados neurônios. Inclusive poetas, Pessoa inclusive. Parágrafo.
Bergman e Antonioni, e todos os demais influenciadores do meu imaginário, ficaram como as personas de uma família secundária que adotei, quase que sem considerar sua fundamental importância. Cada vez que perco um parente, um amigo, é um ponto final, brutal interrupção definitiva no viver. E cada vez que morre um diretor de cinema essencial para mim, a natureza nebulosa dessa perda me confunde. Só sei que é menos um parágrafo.
Fraga/Coletiva.net

Um comentário:

Anônimo disse...

Que bonito texto!!!!

Braziu!

Braziu!

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