Texto de Maria Rita Kehl
Convém que me apresente nessa estréia. Além da combinação única e aleatórea de proteinas, aminoácidos, H2O e tal, sou feita de que? De tempo, assim como vocês. Tempo vivido e tempo imaginado. Feita de passado, o de meus ancestrais, transmitido pelos gens, a cultura, o inconsciente; mais a história de vida que me trouxe até aqui. É só o que temos: um corpo e uma história, já que o presente é uma partícula, deletada tão logo eu acabe de escrever partícula. E o futuro, lamento dizer, não existe. A não ser, é claro, sob a forma de fantasias e projetos. Mas fantasias e projetos são feitos de que? De restos, fiapos, pedaços não resolvidos do passado. No futuro só o que existe na certa é a morte esperando a gente. Deixa quieto.
Àqueles dez anos inaugurais de perplexidade e inquietação, chamo de infância. Tão minha e tão perdida. Ao longo período da dita maturidade eu me refiro como “outro dia mesmo”. Já o pedaço da vida que vai do final da adolescência (aquela chatice) até os trinta, mais ou menos, costumo chamar de “o meu tempo”. Nisso não estou sozinha. Prá muita gente, a referência óbvia para “meu tempo...” é a juventude. Os anos de formação, como diziam os românticos do dezenove. Período das experiências que definiram o que pretendíamos ser, assim como as promessas que continuam a acenar no horizonte das possibilidades.
Um bom amigo que morre de medo de se tornar ultrapassado costuma me contestar com outro refrão: meu tempo é hoje! Mas Paulinho da Viola, que canta o verso de Wilson Batista, “meu mundo é hoje”, tem lá suas ressalvas ao império do presente absoluto: “...mas não me altere o samba tanto assim”. Defendo o modesto passadismo do sambista. A juventude é um período movediço em que se vai meio às cegas por caminhos excitantes, ou idiotas, ou desastrosos, sem saber o que se quer encontrar. Daí a necessidade de estabelecer, a posteriori, alguma solidez pelo menos às recordações daquele tempo. Redescobrir na memória um filme já superado e atribuir a ele significados incríveis; reler um livro que nos fez a cabeça aos 20 anos (Sidharta, todo mundo lia Sidartha – que não li, sei lá por que); reencontrar a praia dos melhores verões como se ainda fosse deserta, passar pela rua onde a casa que foi comunidade hippie está para virar um prédio. São tentativas de consolidar aquele riquíssimo período em que se estabelecem, por tentativa e erro, nossas grandes referências exogâmicas, cosmopolitas, universais.
Tem gente que entra na juventude como se o mundo fosse continuação do quintal familiar. Vai de cabeça sem medo, sem nem se dar conta de que caminha no escuro. Faço parte do outro grupo: para mim, tudo era grande demais. Eu ia, ansiava por ir, mas com um respeito danado pela imensidão à minha frente. Por isso meu tempo não foi tecido apenas das coisas que efetivamente fiz. Sou fiel ao que fiquei devendo à minha geração, essa rede de identificações imaginárias a que julgamos pertencer. A história daquilo que não fiz é minha biografia em baixo relevo, indelével como todos os desejos não realizados.
Àqueles dez anos inaugurais de perplexidade e inquietação, chamo de infância. Tão minha e tão perdida. Ao longo período da dita maturidade eu me refiro como “outro dia mesmo”. Já o pedaço da vida que vai do final da adolescência (aquela chatice) até os trinta, mais ou menos, costumo chamar de “o meu tempo”. Nisso não estou sozinha. Prá muita gente, a referência óbvia para “meu tempo...” é a juventude. Os anos de formação, como diziam os românticos do dezenove. Período das experiências que definiram o que pretendíamos ser, assim como as promessas que continuam a acenar no horizonte das possibilidades.
Um bom amigo que morre de medo de se tornar ultrapassado costuma me contestar com outro refrão: meu tempo é hoje! Mas Paulinho da Viola, que canta o verso de Wilson Batista, “meu mundo é hoje”, tem lá suas ressalvas ao império do presente absoluto: “...mas não me altere o samba tanto assim”. Defendo o modesto passadismo do sambista. A juventude é um período movediço em que se vai meio às cegas por caminhos excitantes, ou idiotas, ou desastrosos, sem saber o que se quer encontrar. Daí a necessidade de estabelecer, a posteriori, alguma solidez pelo menos às recordações daquele tempo. Redescobrir na memória um filme já superado e atribuir a ele significados incríveis; reler um livro que nos fez a cabeça aos 20 anos (Sidharta, todo mundo lia Sidartha – que não li, sei lá por que); reencontrar a praia dos melhores verões como se ainda fosse deserta, passar pela rua onde a casa que foi comunidade hippie está para virar um prédio. São tentativas de consolidar aquele riquíssimo período em que se estabelecem, por tentativa e erro, nossas grandes referências exogâmicas, cosmopolitas, universais.
Tem gente que entra na juventude como se o mundo fosse continuação do quintal familiar. Vai de cabeça sem medo, sem nem se dar conta de que caminha no escuro. Faço parte do outro grupo: para mim, tudo era grande demais. Eu ia, ansiava por ir, mas com um respeito danado pela imensidão à minha frente. Por isso meu tempo não foi tecido apenas das coisas que efetivamente fiz. Sou fiel ao que fiquei devendo à minha geração, essa rede de identificações imaginárias a que julgamos pertencer. A história daquilo que não fiz é minha biografia em baixo relevo, indelével como todos os desejos não realizados.
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COMENTÁRIO: que belo texto! Para mim tudo era grande demais também. Na minha infância; na minha adolescência. Ainda que tenha ousado na minha adolescência não fui de cabeça. Na minha rede de identificações imaginárias à qual julgo ter pertencido tinha amigos aloprados, socialistas, comunistas, partidários do amor livre, gays e lesbianas, amigos que curtiam a vida rural .... Era ousadia ter esses amigos. Tanto que suporto pouco a ausência da "pitada" de sal nas pessoas. Com esse grupo entre outras pessoas li, trabalhei, dei com os burros nágua com alguns amores... Por fim, com 55 anos de idade tenho um grande problema: DETESTO SER TRATADA COMO BEBÊ. Um político bate em minhas costas, me dá vontade de pular na garganta dele. Não o faço. Ponho-me à ironia. Respeito as administrações onde trabalho, mas SE ME tratam como bebê imbecil ... eu viro uma ONÇA. Uma amiga diz: viro puta velha. Tá aí uma ousadia dos finalmentes da vida.
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