Em debates, falta tempo para exposição de ideias, critica Sírio Possenti
cap-tirada do Blog de Roberto Romano
Sírio Possenti
De Campinas (SP)
O que vou dizer pode parecer cínico. Mas acho que chegou a hora de deixar as coisas claras. De constatar cruamente, não de apenas queixar-se.
Nos últimos anos, há bem mais de uma década, se diz, como se fosse uma queixa, uma barbaridade, o fim do mundo, um equívoco grosseiro, uma falta de vergonha, que as propagandas eleitorais tentam vender candidatos como se fossem sabonetes (não sei por que escolheram os sabonetes; às vezes, parece que tentam vendê-los como se fossem cerveja para jovens barulhentos ou desodorantes que prometem legiões de mulheres aos homens que os usem).
Acho que está na hora de levar a sério que propaganda política é pura propaganda. Todos dizem isso, acho que as leis tratam da questão com essa palavra (não fui verificar, mas sei que a Justiça tem condenado candidatos e parceiros por propaganda eleitoral antecipada; então, deve ser "propaganda", não é?).
É um dado trivial que os ouvintes ou leitores encaram os diferentes textos de maneira diferente. Por exemplo, se um jornal noticia que uma mulher foi assassinada por seu marido ou namorado ou amante, todos acham que houve mesmo um assassinato. Mas se uma piada começa dizendo "quando FHC morreu, chegou lá no céu e disse para S. Pedro que...", ninguém vai achar que FHC morreu (pode até ser um desejo inconsciente do autor ou do contador da piada, mas isso é outra coisa).
Por que? Porque nós achamos que jornais contam a verdade, que noticiam fatos. E que as piadas não dizem verdades factuais (uns acharão que elas é que as dizem, mas aí se trata de outro tipo de verdade). Ninguém foi procurar os restos mortais de Brás Cubas, mas, segundo Cony, até hoje tenta-se encontrar os ossos de Diana de Teffé.
Para fazer valer uma categoria de algumas teorias de discurso, os contratos são diferentes em campos discursivos diferentes. A ciência e o jornalismo, nós supomos, informam sobre fatos. Já a literatura e o humor não têm essa função. Um cientista e um jornalista podem ser tachados de mentirosos. Um romancista, nunca. Ou, se for, é porque leram o romance com se fosse um livro de história.
E a propaganda? É um campo que joga ao mesmo tempo em mais de um terreno. Se uma peça publicitária diz que o motor de um carro consome tanto combustível ou que tem tantos cavalos, isso é lido como uma informação. Deveria ser verdadeira. Mas se diz que andando nele você consegue que as meninas peguem carona adoidado, pode ser que isso não seja verdade. Pode ser que isso dependa mais de você do que do carro. Ou que dependa das meninas (espero que não achem que estou sendo machista: é que as propagandas que prometem resultados desse tipo sempre são dirigidas aos homens). Se você acha que, se seu pai comprar um certo carro, vai parecer o super-homem, e depois nada acontece, você não vai poder processar nem a fábrica nem a agência de publicidade. O juiz gargalharia se você aparecesse diante dele acusando a fábrica de ter feito propaganda enganosa. Imagine alguém indo à Justiça reclamar que usou Axe e nada de as mulheres o agarrarem...
O máximo que uma propaganda faz, além de prometer mundos e fundos, é acrescentar avisos como "se os sintomas persistirem", que parece uma forma de dizer que o comprimido pode não fazer tudo o que a propaganda diz que faz. Mas nenhum alisador de cabelo diz "se seu cabelo continuar crespo...".
Ora, propagandas políticas são propagandas. Simples assim. Por isso não precisam dizer (isto é, a sociedade permite que elas não digam) a verdade. Por serem simplesmente propagandas, aumentam as virtudes do seu candidato-sabonete. Se ele fez uma ponte, diz que vai fazer mil. Se construiu um posto de saúde, diz vai construir um em cada esquina. Como as propagandas. Segundo elas, as pilhas duram para sempre.
Por outro lado, sendo propagandas, nunca dizem que o candidato vai fazer também coisas contra você, nem vai dizer que ele custa muito caro, muito menos que os adversários também são razoáveis. Cada um diz que é ótimo e que os outros não servem para nada, ou que não servem mais. Que os outros só têm defeitos e que eles só têm virtudes.
Se as propagandas eleitorais são propagandas, a saída é apenas não acreditar nelas. Ou só ouvir essas propagandas como se ouvem as outras.
Até porque, às vezes, as propagandas são melhores do que os programas. Mesmo os políticos...
Os promotores dos debates dizem que é nessas ocasiões que os candidatos devem dizer o que vão fazer. Mas como eles podem dizer o que vão fazer em dois minutos? Nesse tempo, só é possível dizer algumas generalidades - e elas são de tipo propaganda! Num debate, no máximo, podemos saber se um candidato é bom de discurso. O que, hoje se sabe, tem sua importância. Governa-se falando - pelo menos nas democracias. Fazer o povo acreditar em certas coisas. Quem faz as contas - administra - são os funcionários.
Os verdadeiros programas de governo são decididos em reuniões com pouca gente - com o povo do PIB, da Sociedade (que cabe num restaurante de tamanho médio). Para nós, sobra a propaganda.
Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso e Língua na Mídia.
Sírio Possenti
De Campinas (SP)
O que vou dizer pode parecer cínico. Mas acho que chegou a hora de deixar as coisas claras. De constatar cruamente, não de apenas queixar-se.
Nos últimos anos, há bem mais de uma década, se diz, como se fosse uma queixa, uma barbaridade, o fim do mundo, um equívoco grosseiro, uma falta de vergonha, que as propagandas eleitorais tentam vender candidatos como se fossem sabonetes (não sei por que escolheram os sabonetes; às vezes, parece que tentam vendê-los como se fossem cerveja para jovens barulhentos ou desodorantes que prometem legiões de mulheres aos homens que os usem).
Acho que está na hora de levar a sério que propaganda política é pura propaganda. Todos dizem isso, acho que as leis tratam da questão com essa palavra (não fui verificar, mas sei que a Justiça tem condenado candidatos e parceiros por propaganda eleitoral antecipada; então, deve ser "propaganda", não é?).
É um dado trivial que os ouvintes ou leitores encaram os diferentes textos de maneira diferente. Por exemplo, se um jornal noticia que uma mulher foi assassinada por seu marido ou namorado ou amante, todos acham que houve mesmo um assassinato. Mas se uma piada começa dizendo "quando FHC morreu, chegou lá no céu e disse para S. Pedro que...", ninguém vai achar que FHC morreu (pode até ser um desejo inconsciente do autor ou do contador da piada, mas isso é outra coisa).
Por que? Porque nós achamos que jornais contam a verdade, que noticiam fatos. E que as piadas não dizem verdades factuais (uns acharão que elas é que as dizem, mas aí se trata de outro tipo de verdade). Ninguém foi procurar os restos mortais de Brás Cubas, mas, segundo Cony, até hoje tenta-se encontrar os ossos de Diana de Teffé.
Para fazer valer uma categoria de algumas teorias de discurso, os contratos são diferentes em campos discursivos diferentes. A ciência e o jornalismo, nós supomos, informam sobre fatos. Já a literatura e o humor não têm essa função. Um cientista e um jornalista podem ser tachados de mentirosos. Um romancista, nunca. Ou, se for, é porque leram o romance com se fosse um livro de história.
E a propaganda? É um campo que joga ao mesmo tempo em mais de um terreno. Se uma peça publicitária diz que o motor de um carro consome tanto combustível ou que tem tantos cavalos, isso é lido como uma informação. Deveria ser verdadeira. Mas se diz que andando nele você consegue que as meninas peguem carona adoidado, pode ser que isso não seja verdade. Pode ser que isso dependa mais de você do que do carro. Ou que dependa das meninas (espero que não achem que estou sendo machista: é que as propagandas que prometem resultados desse tipo sempre são dirigidas aos homens). Se você acha que, se seu pai comprar um certo carro, vai parecer o super-homem, e depois nada acontece, você não vai poder processar nem a fábrica nem a agência de publicidade. O juiz gargalharia se você aparecesse diante dele acusando a fábrica de ter feito propaganda enganosa. Imagine alguém indo à Justiça reclamar que usou Axe e nada de as mulheres o agarrarem...
O máximo que uma propaganda faz, além de prometer mundos e fundos, é acrescentar avisos como "se os sintomas persistirem", que parece uma forma de dizer que o comprimido pode não fazer tudo o que a propaganda diz que faz. Mas nenhum alisador de cabelo diz "se seu cabelo continuar crespo...".
Ora, propagandas políticas são propagandas. Simples assim. Por isso não precisam dizer (isto é, a sociedade permite que elas não digam) a verdade. Por serem simplesmente propagandas, aumentam as virtudes do seu candidato-sabonete. Se ele fez uma ponte, diz que vai fazer mil. Se construiu um posto de saúde, diz vai construir um em cada esquina. Como as propagandas. Segundo elas, as pilhas duram para sempre.
Por outro lado, sendo propagandas, nunca dizem que o candidato vai fazer também coisas contra você, nem vai dizer que ele custa muito caro, muito menos que os adversários também são razoáveis. Cada um diz que é ótimo e que os outros não servem para nada, ou que não servem mais. Que os outros só têm defeitos e que eles só têm virtudes.
Se as propagandas eleitorais são propagandas, a saída é apenas não acreditar nelas. Ou só ouvir essas propagandas como se ouvem as outras.
Até porque, às vezes, as propagandas são melhores do que os programas. Mesmo os políticos...
Os promotores dos debates dizem que é nessas ocasiões que os candidatos devem dizer o que vão fazer. Mas como eles podem dizer o que vão fazer em dois minutos? Nesse tempo, só é possível dizer algumas generalidades - e elas são de tipo propaganda! Num debate, no máximo, podemos saber se um candidato é bom de discurso. O que, hoje se sabe, tem sua importância. Governa-se falando - pelo menos nas democracias. Fazer o povo acreditar em certas coisas. Quem faz as contas - administra - são os funcionários.
Os verdadeiros programas de governo são decididos em reuniões com pouca gente - com o povo do PIB, da Sociedade (que cabe num restaurante de tamanho médio). Para nós, sobra a propaganda.
Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso e Língua na Mídia.
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