Foto: Abdias
De ROBERTO ROMANO
De ROBERTO ROMANO
Folha de São Paulo. Notem, por favor, as frases do “estudioso branco”, em negritos meus.
São Paulo, domingo, 29 de maio de 2011
ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
Na gafieira com Camus
Duque de Caxias, 1947
Arquivo Pessoal
Camus com Abdias e seu grupo de teatro após ensaio de “Calígula”; leia relato de Camus sobre o encontro em folha.com/ilustrissima
ABDIAS DO NASCIMENTO
QUANDO CRIEI o Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944, a intenção era trazer à cena a cultura do negro brasileiro, até então exilado dos palcos do nosso teatro. Para realizar o seu potencial de protagonista, seria necessário superar séculos de privação do acesso à educação e às letras e construir espaços de diálogo com o mundo do teatro. O TEN promoveu cursos de alfabetização e de cultura geral, e estabeleceu relações com artistas e intelectuais como Eugene O’Neill, Richard Wright e Albert Camus (1913-60), expoentes da literatura mundial.
Em 1947, o TEN solicitou ao escritor franco-argelino permissão para encenar sua peça “Calígula”, texto denso e complexo como o que havíamos escolhido para nossa estreia, dois anos antes: “O Imperador Jones”, de Eugene O’Neill. A resposta de Camus veio rápida e positiva, como a de O’Neill. Foi um desafio trabalhar com textos em língua estrangeira, mas nós acompanhamos a versão ao português num rico processo de reflexão e interlocução com escritores como Ricardo Werneck, Efraín Tomás Bó e Gerardo Mello Mourão.
O grande artista Tomás Santa Rosa concebeu os cenários sempre em diálogo conosco. O trabalho de Santa Rosa enfeitiçou “O Imperador Jones” no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 8 de maio de 1945. Mas, no caso de “Calígula”, não conseguimos os meios para montar a peça. Fizemos uma apresentação especial para o autor no teatro Ginástico em 1949, quando encenamos também o segundo ato da peça “Aruanda”, de Joaquim Ribeiro. Camus assistiu atento e discutiu o trabalho conosco e com os atores do TEN, entre eles Claudiano Filho, Ruth de Souza, Haroldo Costa e Natalino Dionísio.
Além desse memorável encontro, tive a oportunidade de compartilhar com Camus o seu profundo interesse pela cultura brasileira de origem africana. Visitamos, no então vilarejo de Duque de Caxias, os terreiros de candomblé, onde eu tivera o privilégio de conhecer uma grande liderança religiosa, Joãosinho da Gomeia -figura forte e afirmativa, com aquela doçura dos iluminados.
Ainda dividi com Camus uma noitada na gafieira Elite, no centro do Rio. Ele aplaudiu os bailados afro-brasileiros de Mercedes Batista, ensaiou dançar o samba, ouviu a Orquestra Afro-Brasileira de Abigail Moura e assistiu à Fausta apresentando o frevo pernambucano.
Em 1950, o TEN promoveu o 1º Congresso do Negro Brasileiro, cujo registro taquigráfico e teses apresentadas compunham os anais que reuni em dois volumes. Mergulhado na organização desses anais, soube da publicação de “O Homem Revoltado”, ensaio filosófico de Camus. O texto era fascinante; pude conhecê-lo de forma viva e em versão direta em longas discussões com Efraín e Gerardo. A obra inspirou o título do primeiro volume dos anais do Congresso, “O Negro Revoltado”. Sumariamente rejeitado pelas editoras até 1968, o livro é todo pontuado com trechos de “O Homem Revoltado”, epígrafes em homenagem a Camus.
O segundo volume dos anais seria “A Negritude Polêmica”, que registrava a discussão em torno da tese “Estética da Negritude”, de Ironides Rodrigues. Nunca encontrou editora. Já o volume publicado registra vários documentos como extraviados, pois um sociólogo que se aproximou do TEN para investigar a questão racial os pediu emprestados e não os devolveu. Publicou sua pesquisa recheada de referências negativas em termos, digamos, pouco científicos, agredindo o TEN e as organizações negras em geral.
Nós apontamos publicamente o caráter tendencioso do trabalho. A resposta do autor expressa bem a geografia humana dessa linha de investigação científica em relação ao negro: “Duvido que haja biologista que veja, digamos, um micróbio tomar de pena e vir a público dizer sandices a respeito da pesquisa em que participou como material de laboratório”.
Ao contrário da morte inexorável do movimento social pelos direitos civis e humanos dos negros no Brasil anunciada por tais autores, hoje assistimos às suas conquistas. Entre elas estão a discussão e a formulação de políticas públicas afirmativas para a construção da igualdade racial.
São Paulo, domingo, 29 de maio de 2011
ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
Na gafieira com Camus
Duque de Caxias, 1947
Arquivo Pessoal
Camus com Abdias e seu grupo de teatro após ensaio de “Calígula”; leia relato de Camus sobre o encontro em folha.com/ilustrissima
ABDIAS DO NASCIMENTO
QUANDO CRIEI o Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944, a intenção era trazer à cena a cultura do negro brasileiro, até então exilado dos palcos do nosso teatro. Para realizar o seu potencial de protagonista, seria necessário superar séculos de privação do acesso à educação e às letras e construir espaços de diálogo com o mundo do teatro. O TEN promoveu cursos de alfabetização e de cultura geral, e estabeleceu relações com artistas e intelectuais como Eugene O’Neill, Richard Wright e Albert Camus (1913-60), expoentes da literatura mundial.
Em 1947, o TEN solicitou ao escritor franco-argelino permissão para encenar sua peça “Calígula”, texto denso e complexo como o que havíamos escolhido para nossa estreia, dois anos antes: “O Imperador Jones”, de Eugene O’Neill. A resposta de Camus veio rápida e positiva, como a de O’Neill. Foi um desafio trabalhar com textos em língua estrangeira, mas nós acompanhamos a versão ao português num rico processo de reflexão e interlocução com escritores como Ricardo Werneck, Efraín Tomás Bó e Gerardo Mello Mourão.
O grande artista Tomás Santa Rosa concebeu os cenários sempre em diálogo conosco. O trabalho de Santa Rosa enfeitiçou “O Imperador Jones” no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 8 de maio de 1945. Mas, no caso de “Calígula”, não conseguimos os meios para montar a peça. Fizemos uma apresentação especial para o autor no teatro Ginástico em 1949, quando encenamos também o segundo ato da peça “Aruanda”, de Joaquim Ribeiro. Camus assistiu atento e discutiu o trabalho conosco e com os atores do TEN, entre eles Claudiano Filho, Ruth de Souza, Haroldo Costa e Natalino Dionísio.
Além desse memorável encontro, tive a oportunidade de compartilhar com Camus o seu profundo interesse pela cultura brasileira de origem africana. Visitamos, no então vilarejo de Duque de Caxias, os terreiros de candomblé, onde eu tivera o privilégio de conhecer uma grande liderança religiosa, Joãosinho da Gomeia -figura forte e afirmativa, com aquela doçura dos iluminados.
Ainda dividi com Camus uma noitada na gafieira Elite, no centro do Rio. Ele aplaudiu os bailados afro-brasileiros de Mercedes Batista, ensaiou dançar o samba, ouviu a Orquestra Afro-Brasileira de Abigail Moura e assistiu à Fausta apresentando o frevo pernambucano.
Em 1950, o TEN promoveu o 1º Congresso do Negro Brasileiro, cujo registro taquigráfico e teses apresentadas compunham os anais que reuni em dois volumes. Mergulhado na organização desses anais, soube da publicação de “O Homem Revoltado”, ensaio filosófico de Camus. O texto era fascinante; pude conhecê-lo de forma viva e em versão direta em longas discussões com Efraín e Gerardo. A obra inspirou o título do primeiro volume dos anais do Congresso, “O Negro Revoltado”. Sumariamente rejeitado pelas editoras até 1968, o livro é todo pontuado com trechos de “O Homem Revoltado”, epígrafes em homenagem a Camus.
O segundo volume dos anais seria “A Negritude Polêmica”, que registrava a discussão em torno da tese “Estética da Negritude”, de Ironides Rodrigues. Nunca encontrou editora. Já o volume publicado registra vários documentos como extraviados, pois um sociólogo que se aproximou do TEN para investigar a questão racial os pediu emprestados e não os devolveu. Publicou sua pesquisa recheada de referências negativas em termos, digamos, pouco científicos, agredindo o TEN e as organizações negras em geral.
Nós apontamos publicamente o caráter tendencioso do trabalho. A resposta do autor expressa bem a geografia humana dessa linha de investigação científica em relação ao negro: “Duvido que haja biologista que veja, digamos, um micróbio tomar de pena e vir a público dizer sandices a respeito da pesquisa em que participou como material de laboratório”.
Ao contrário da morte inexorável do movimento social pelos direitos civis e humanos dos negros no Brasil anunciada por tais autores, hoje assistimos às suas conquistas. Entre elas estão a discussão e a formulação de políticas públicas afirmativas para a construção da igualdade racial.
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