Memórias da morte de um homem digno por CLÓVIS ROSSI
A cobertura do golpe no Chile em setembro de 1973 foi minha primeira experiência internacional. Como, a julgar pelo Twitter, a maioria dos meus "seguidores" é formada por jornalistas e/ou estudantes de comunicação, aproveito para contar como fui escalado para essa cobertura, evento da maior importância, só para mostrar que raramente há escolhas digamos científicas no jornalismo.
Foi assim: Oliveiros S. Ferreira, então editor-chefe do "Estadão", do qual eu era assistente, berrou na redação, no dia do golpe: "Quem tem o passaporte em dia?". Eu tinha (acabara de voltar dos Estados Unidos) e ainda por cima sentava perto do Oli, como chamávamos o chefe. Ganhei a cobertura, cientificamente.
Mas não fui imediatamente para o Chile, porque o país estava fechado por terra, mar e ar, para que se perpetrasse a matança.
Fui para Buenos Aires e, ao anoitecer de um dia frustrante pela absoluta impossibilidade de cruzar a fronteira, caminhava pela calle Florida --o formidável calçadão portenho-- rumo ao hotel quando topei com uma manifestação de estudantes da UBA (Universidade de Buenos Aires).
Davam a volta ao quarteirão cantando "Allende no se suicidó/yankis lo mataron/a la puta que los parió".
Durante muito tempo, eu acreditei no canto da moçada. Ainda mais que, quando consegui, uma semana depois, chegar a Santiago, todos os sinais de um genocídio estavam ainda presentes.
Deu para ver filetes de sangue no Mapocho, o riacho que corta a capital chilena, provenientes dos cadáveres nele despejado. Deu para ver a queima de livros em praça pública, cena que deu origem a uma foto famosa, porque reminiscência de ato semelhante praticado pelos nazistas, pais ideológicos do golpe de 1973.
Deu ainda para acompanhar pais brasileiros ao Estádio Nacional, transformado em campo de concentração, em busca de informações de seus filhos, exilados no Chile e dos quais não tinham notícias. A julgar pelo que dava para ver e ouvir às portas do estádio, lá dentro deveria ser o mais próximo do inferno.
Deu para ver também o Palácio de la Moneda, sede do governo, semi-calcinado, bombardeado que fora pelas FACh, a força aérea, com Salvador Allende Gossens, o presidente constitucional e legítimo, lá dentro.
Aliás, observar La Moneda era o exercício de todas as noites porque o toque de recolher me obrigava a ficar retido no Hotel Carrera, atrás do palácio. Hoje, o Carrera é a sede do Ministério de Relações Exteriores.
O restaurante do hotel era a única opção para jantar para os jornalistas que lá ficamos. Era no "roof", do qual se tinha uma belíssima vista de Santiago. Todas as noites, vinha o maitre, devidamente paramentado, nos apresentava o cardápio, líamos, escolhíamos e ele dizia, todos as noites: "Só tem centolla". É um marisco carnoso delicioso mas do qual me saturei até hoje de tanto consumi-lo naquelas trágicas noites de setembro de 1973, em que se ouvia ainda, ao longe, o som horripilante de disparos, que a repressão não cessava (o grupo folclórico Inti Illimani gravou uma canção cujo refrão diz "están matando chilenos/ay que haremoos/ay que haremos?").
Naquele momento, havia pouco ou nada a fazer, a não ser relatar tudo o que era possível do genocídio (a censura brasileira cortava, no entanto, todas as menções à participação de oficiais e/ou policiais brasileiros na repressão).
Agora, há o que fazer, como o demonstra o fato de a Justiça chilena ter determinado a exumação do corpo do presidente para comprovar se foi morto ou se suicidou.
A decisão é relevante por demonstrar o desejo de procurar a verdade, desejo tão ausente no Brasil.
Mas, do meu ponto de vista, já não acredito que Allende não se suicidou. Meses ou anos depois de sua morte, já não me lembro, li uma entrevista do médico pessoal do presidente, Óscar Soto Guzmán, que estava em La Moneda no dia do golpe e testemunhava que Allende de fato se matara, depois de pedir aos auxiliares que ainda estavam em palácio que saíssem para evitar um sacrifício inútil.
O médico, mais tarde, publicou "O último dia de Salvador Allende", com todos os detalhes, inclusive o do suicídio.
Pouco antes, exatamente as 9h10 daquele 11 de setembro, Allende dirigiu aos chilenos, pela rádio Magallanes, a sua alocução final, um texto para o panteão da dignidade, de sua parte, e para o memorial da infâmia, da parte dos golpistas.
Trechos:
"Minhas palavras não têm amargura, mas decepção. Que sejam elas o castigo moral para os que traíram o juramento que fizeram" [referindo-se aos comandantes do golpe, que haviam jurado defender a Constituição].
"Eu não vou renunciar. Pagarei com a vida a lealdade do povo".
"Não se detém os processos sociais nem com o crime nem com a força. A história é nossa e fazem-na os povos".
.
"Seguramente, a rádio Magallanes será silenciada e o metal tranquilo de minha voz já não chegará a vocês. Não importa Sempre estarei junto a vocês. Pelo menos a minha recordação será a de um homem digno que foi leal com a pátria".
"Outros homens superarão este momento cinzento e amargo em que a traição pretende impor-se. Fiquem sabendo que, muito mais cedo que tarde, de novo se abrirão as alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor".
"Estas são minhas últimas palavras e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a felonia, a covardia e a traição".
Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às quintas e domingos na página 2 da Folha e, aos sábados, no caderno Mundo. É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo e "O Que é Jornalismo".
Foi assim: Oliveiros S. Ferreira, então editor-chefe do "Estadão", do qual eu era assistente, berrou na redação, no dia do golpe: "Quem tem o passaporte em dia?". Eu tinha (acabara de voltar dos Estados Unidos) e ainda por cima sentava perto do Oli, como chamávamos o chefe. Ganhei a cobertura, cientificamente.
Mas não fui imediatamente para o Chile, porque o país estava fechado por terra, mar e ar, para que se perpetrasse a matança.
Fui para Buenos Aires e, ao anoitecer de um dia frustrante pela absoluta impossibilidade de cruzar a fronteira, caminhava pela calle Florida --o formidável calçadão portenho-- rumo ao hotel quando topei com uma manifestação de estudantes da UBA (Universidade de Buenos Aires).
Davam a volta ao quarteirão cantando "Allende no se suicidó/yankis lo mataron/a la puta que los parió".
Durante muito tempo, eu acreditei no canto da moçada. Ainda mais que, quando consegui, uma semana depois, chegar a Santiago, todos os sinais de um genocídio estavam ainda presentes.
Deu para ver filetes de sangue no Mapocho, o riacho que corta a capital chilena, provenientes dos cadáveres nele despejado. Deu para ver a queima de livros em praça pública, cena que deu origem a uma foto famosa, porque reminiscência de ato semelhante praticado pelos nazistas, pais ideológicos do golpe de 1973.
Deu ainda para acompanhar pais brasileiros ao Estádio Nacional, transformado em campo de concentração, em busca de informações de seus filhos, exilados no Chile e dos quais não tinham notícias. A julgar pelo que dava para ver e ouvir às portas do estádio, lá dentro deveria ser o mais próximo do inferno.
Deu para ver também o Palácio de la Moneda, sede do governo, semi-calcinado, bombardeado que fora pelas FACh, a força aérea, com Salvador Allende Gossens, o presidente constitucional e legítimo, lá dentro.
Aliás, observar La Moneda era o exercício de todas as noites porque o toque de recolher me obrigava a ficar retido no Hotel Carrera, atrás do palácio. Hoje, o Carrera é a sede do Ministério de Relações Exteriores.
O restaurante do hotel era a única opção para jantar para os jornalistas que lá ficamos. Era no "roof", do qual se tinha uma belíssima vista de Santiago. Todas as noites, vinha o maitre, devidamente paramentado, nos apresentava o cardápio, líamos, escolhíamos e ele dizia, todos as noites: "Só tem centolla". É um marisco carnoso delicioso mas do qual me saturei até hoje de tanto consumi-lo naquelas trágicas noites de setembro de 1973, em que se ouvia ainda, ao longe, o som horripilante de disparos, que a repressão não cessava (o grupo folclórico Inti Illimani gravou uma canção cujo refrão diz "están matando chilenos/ay que haremoos/ay que haremos?").
Naquele momento, havia pouco ou nada a fazer, a não ser relatar tudo o que era possível do genocídio (a censura brasileira cortava, no entanto, todas as menções à participação de oficiais e/ou policiais brasileiros na repressão).
Agora, há o que fazer, como o demonstra o fato de a Justiça chilena ter determinado a exumação do corpo do presidente para comprovar se foi morto ou se suicidou.
A decisão é relevante por demonstrar o desejo de procurar a verdade, desejo tão ausente no Brasil.
Mas, do meu ponto de vista, já não acredito que Allende não se suicidou. Meses ou anos depois de sua morte, já não me lembro, li uma entrevista do médico pessoal do presidente, Óscar Soto Guzmán, que estava em La Moneda no dia do golpe e testemunhava que Allende de fato se matara, depois de pedir aos auxiliares que ainda estavam em palácio que saíssem para evitar um sacrifício inútil.
O médico, mais tarde, publicou "O último dia de Salvador Allende", com todos os detalhes, inclusive o do suicídio.
Pouco antes, exatamente as 9h10 daquele 11 de setembro, Allende dirigiu aos chilenos, pela rádio Magallanes, a sua alocução final, um texto para o panteão da dignidade, de sua parte, e para o memorial da infâmia, da parte dos golpistas.
Trechos:
"Minhas palavras não têm amargura, mas decepção. Que sejam elas o castigo moral para os que traíram o juramento que fizeram" [referindo-se aos comandantes do golpe, que haviam jurado defender a Constituição].
"Eu não vou renunciar. Pagarei com a vida a lealdade do povo".
"Não se detém os processos sociais nem com o crime nem com a força. A história é nossa e fazem-na os povos".
.
"Seguramente, a rádio Magallanes será silenciada e o metal tranquilo de minha voz já não chegará a vocês. Não importa Sempre estarei junto a vocês. Pelo menos a minha recordação será a de um homem digno que foi leal com a pátria".
"Outros homens superarão este momento cinzento e amargo em que a traição pretende impor-se. Fiquem sabendo que, muito mais cedo que tarde, de novo se abrirão as alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor".
"Estas são minhas últimas palavras e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a felonia, a covardia e a traição".
Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às quintas e domingos na página 2 da Folha e, aos sábados, no caderno Mundo. É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo e "O Que é Jornalismo".
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