TUCA PUC 1977
EU QUASE QUE NADA SEI. MAS DESCONFIO DE MUITA COISA. GUIMARÃES ROSA.

terça-feira, 1 de março de 2011

O resto ...

O resto virá depois

Por Rui Bebiano, Portugal, A terceira noite AQUI


Em artigo editado na semana passada pelo Público, Eduardo Lourenço escreveu que a Europa, como o Ocidente em geral, «já não faz revoluções». Ao contrário, «sofre-as, deixa-se surpreender por elas», arrastada por movimentos poderosos que não controla e tem dificuldade em compreender. A propensão do ensaísta para transformar certas hipóteses aparentes em verdades temporárias – desde Montaigne, como é sabido, a característica essencial do ensaio – conduz a afirmações como esta, com a qual podemos dialogar mas que não convém tomarmos à letra. Se falarmos das revoluções com um carácter total, absoluto, determinadas perfazer o círculo e a reconduzir a história ao quilómetro zero para produzirem um mundo radicalmente novo e supostamente melhor, a afirmação de Lourenço fará sentido. Mas tal já não acontece quando nos referirmos aquelas que resultam da insuportabilidade de uma situação ou da necessidade imperativa da sua ultrapassagem, transformada em estímulo para a insurreição.

Ora, como a história recente tem vindo a mostrar, estes momentos são não só imprevisíveis como impossíveis de cartografar por antecipação. Acontecem quando e onde parte significativa das sociedades compreende que deixou de ser possível suportar o insuportável, encontrando forças para jogar tudo na cartada da mudança. Sob esta perspectiva, quem poderá garantir que se eclodiram agora na Tunísia, no Egipto e na Líbia, se parecem estar a alastrar à maior parte dos países árabes, onde até há pouco tempo a generalidade dos analistas só via resignação e imobilismo, não possam também ocorrer aqui ao lado ou mesmo à nossa porta, dentro das nossas cidades? Como actos raros e ocasionais, nos quais a necessidade imperativa e a desrazão que esta provoca jogam um papel decisivo, as revoluções não caem do céu – nisso tinha razão Mao Tsé-Tung – mas também não se programam.
A impossibilidade para conceber uma possibilidade revolucionária na casa europeia, do lado da cá desse Mediterrâneo que nos separa de um Oriente próximo mas ainda bastante indecifrável, depende de a concebermos ou não como resultado de um conjunto de condicionantes históricas que têm um lugar na nossa memória colectiva e nas expectativas às quais a associamos. Este aponta muitas vezes para a concepção de um destino histórico desenhado com antecedência, para um programa que lhe tenha podido dar forma, para uma direcção politica que saiba prepará-lo e conduzi-lo. Isto é, para uma Revolução com um R maiúsculo e um encontro marcado com a História. E todavia, se olharmos para as grandes e perduráveis revoluções europeias, desde 1789 até 1989, veremos que, à excepção da revolução russa, junto delas essas circunstâncias nunca se produziram. Fora do Velho Continente, elas foram raríssimas também. É no entanto este conceito de revolução, associado de maneira directa ou indirecta à grande narrativa determinada pelo poderoso paradigma marxista, que está na origem da incompreensão – por estranho que possa parecer, partilhada por Lourenço – diante da possibilidade de emergência de uma vaga revolucionária na Europa. Ou que projecta o cepticismo e o desânimo relativamente a tudo aquilo que se está a passar no Magrebe e no Médio-Oriente.

Para percebermos estas revoluções e lhe darmos aquilo que elas merecem – capital de esperança e um esforço de diálogo e entreajuda com as novas autoridades delas emergentes – é preciso não as vermos como um fim em si mesmo, mas olhá-las antes como um princípio. O que mudará, a médio prazo, até poderá não ser o essencial dos regimes e das condições de funcionamento dos Estados e das sociedades, como em 1848, aqui na Europa, estes não mudaram com a esperançosa mas falhada «primavera dos povos». Mas será, com uma forte dose de certeza, uma perspectiva da história e uma valorização desse princípio de igualdade e de liberdade que advém de expectativas legítimas elevadas pelos povos em revolta à condição de urgente necessidade.

Irá então perdurar a complexa «revolução árabe» em curso? Claro que é muito cedo para juízos absolutos e nos tempos que correm já ninguém acredita em oráculos, mas estou convencido de que, independentemente de retrocessos inevitáveis, a longo prazo ela deixará fortes marcas. E porquê? Justamente porque não define uma meta fechada, não propõe um destino, um modelo único, nem depende de direcções inflexíveis e cheias de certezas. Por isso mesmo é poderosa e sobreviverá: ela resulta de uma necessidade imperativa e da recusa de um modelo opressivo, mas não propõe uma utopia de imaginária felicidade e regimes despóticos e iluminados destinados a prepará-la. Por isso também, com o seu inconformismo instintivo, têm sido principalmente os mais jovens a alimentá-la e a dar-lhe um forte sentido de urgência e de novidade. Eles sabem muito bem o que não querem: viver sem liberdade e conviver com mais do mesmo. O resto virá depois.

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