TUCA PUC 1977
EU QUASE QUE NADA SEI. MAS DESCONFIO DE MUITA COISA. GUIMARÃES ROSA.

domingo, 3 de abril de 2011

Um encontro


MILAN KUNDERA por Eduardo Pitta, Portugal, Blog Da literatura AQUI


Hoje no Público: Gosto de escritores que dialogam com outras artes e, em particular, dos que se medem com os seus pares. Um dos meus atritos com Torga releva do facto de só se medir com Camões. Milan Kundera (n. 1929) publicou em 2009 uma recolha de ensaios a que chamou Une Rencontre.

O livro foi agora traduzido, chegando às livrarias acompanhado da reedição do último romance que publicou: A Ignorância (2000).


Exilado em França desde 1975, cidadão francês desde 1980, Kundera tornou-se mundialmente conhecido com A Insustentável Leveza do Ser (1984). Em Portugal estão traduzidos todos os seus romances, uma peça de teatro e dois volumes de ensaio. Na poesia deste expatriado ainda ninguém pegou. É pena. Os poemas que publicou entre 1953 e 1957 foram, naqueles anos de chumbo, a resposta possível ao realismo socialista.


Um Encontro junta reflexões sobre Bacon, Dostoievski, Schönberg, Roth e outros. À medida que avanço na sua leitura penso nos ensaios sobre Machado de Assis, Danilo Kis e outros que Susan Sontag juntou em Where the Stress Falls (2001). Em ambos, a judia de Manhattan e o checo que deveio francês, o «gesto brutal» da admiração.


É desse modo que Kundera define a pintura de Bacon: «há em cada um de nós o gesto brutal, o movimento da mão que ultraja o rosto do outro...» O que parece uma frase de efeito releva da deriva totalitária. Após o malogro da Primavera de Praga (1968), os intelectuais reformistas voltaram a ser perseguidos pela polícia política.


Num dia de 1972, Kundera tem rendez-vous marcado com uma rapariga que fora interrogada a seu respeito e, de repente, ela aparece à sua frente, «dilacerada, como o corpo fendido de uma vitela suspensa de um gancho num talho.» Bacon obriga-o a recuar a esse dia em que quis «possuí-la por inteiro [...] o vestido impecável e as tripas em revolta, a razão e o medo, o orgulho e o infortúnio.»


Os textos mais estimulantes são os que partem do particular para o universal. Como quando, a pretexto de Philip Roth («o grande historiador do erotismo americano... o poeta da estranha solidão do homem abandonado ao seu corpo...»), chama a atenção para a velocidade da História, quebrando «a continuidade e a identidade de uma vida». Ao meditar sobre Tchekov ou Kafka, o escritor, Roth ou outro qualquer, mais do que honrar predecessores, preserva o «tempo passado».


O de Brno (Morávia), por exemplo. Vera Linhartová, «poetisa de uma prosa meditativa, hermética, inclassificável», mede cada palavra: «Escolhi, pois, o país onde queria viver mas escolhi igualmente a língua que queria falar. [...] O escritor não é prisioneiro de uma única língua.» Tendo deixado de ser uma escritora checa, nem por isso passou a ser uma escritora francesa.


Ficou alhures, «como outrora Chopin [...] como mais tarde, cada um à sua maneira, Nabokov, Beckett, Stravinsky, Gombrowicz [...] cada um vive o exílio à sua maneira inimitável...» Vera Linhartová será um caso limite. Entra aqui porque, melhor do que ninguém, ilustra Kundera. Um dos textos mais divertidos respeita às «listas negras», norma francesa ainda em vigor (lá como cá) e «grande paixão das vanguardas» há mais de cem anos. Quem as inventou? Os salões: «Em nenhuma parte do mundo desempenham um papel tão importante como em França.» Por oposição a elas, Barthes figura à cabeça de todas as «listas de ouro».


Para perceber o fenómeno, Kundera lê o Anatole France de Les diex ont soif (1912), obra-prima sobre o Terror. A posteridade não lhe perdoa a imagem dos «peraltas estúpidos e fanatizados» que queimam Robespierre (o manequim que o representa) enquanto «enforcam a efígie de Marat...» Paradigma: «Qual o seu compositor preferido?» / «Saint-Saëns, não com certeza!» É só adaptar à realidade portuguesa.


Aimé Césaire, quem se lembra dele? Césaire lutou contra a ocupação colonial francesa, escreveu Cahier d'un retour au pays natal (1939), que Breton considerou o maior monumento lírico do século XX, inventou a noção de negritude, fundou a revista Tropiques (1941-45), moldou a identidade cultural da Martinica...


Kundera dedica-lhe páginas justas. O mesmo se diga das que, a partir do point de vue francês, reportam ao desconcerto das relações da Europa com a literatura, a filosofia e a arte em geral: «é com alívio que preferimos Coco Chanel e a inocência dos seus vestidos a esses corifeus culturais [Eliot, Heidegger, Larkin, Brecht, etc.] comprometidos com o mal do século, a sua perversidade, os seus crimes.»


E mais, muito mais. Decididamente, prefiro o Kundera ensaísta ao ficcionista várias vezes laureado.


Alhures, in Ípsilon, 25-3-2011, p. 36. Quatro estrelas.

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