As gramáticas costumam ensinar que a pontuação representa pausa de maior ou menor duração, segundo se usa ponto final, ponto-e-vírgula e vírgula. A pontuação, contudo, ainda que se tenha originado da entoação, transformou-se num problema exclusivamente sintático, independente de pausas ou de inflexões de voz. Assim, uma regra básica para o emprego da vírgula é de cunho negativo: não se usa a vírgula nunca entre os elementos constitutivos de um sintagma (sintagma é todo conjunto formado por um determinado e um determinante; assim, o adjetivo e o substantivo formam um sintagma; o verbo e o seu objeto formam um sintagma; o sujeito e o predicado formam um sintagma, etc.). O que se deve virgular, além dos termos coordenados entre si, é todo encaixe que estiver situado entre os elementos do sintagma ou todo termo que estiver deslocado. E só.
No exemplo seguinte, as vírgulas (algumas dispensáveis) ou separam encaixes ou separam termos coordenados: “Paulo, Maria e José, irmãos de Antônio, ontem, às 3 horas, foram, sem a ajuda de nenhum guia, ao centro da cidade.” A frase “nua”, sem encaixes, seria a seguinte: “Paulo, Maria e José foram ao centro da cidade.” A vírgula, na frase “nua”, apenas separa termos coordenados (na enumeração). Circulou pela Internet um texto formado por vários pares de frases construídas de modo que a posição da vírgula é suficiente para alterar o sentido de cada frase em cada par, como “Não, espere! / Não espere.”, “Aceito, obrigado./ Aceito obrigado.” “Esse, juiz, é corrupto./Esse juiz é corrupto.” “Não queremos saber. / Não, queremos saber.” Um dos pares de frases, contudo, contém um erro: “Isso, só ele resolve./ Isso só ele resolve.” Não existe vírgula nenhuma nem na primeira, nem na segunda frase, porque não se separa o verbo do seu objeto. A entoação ou a posição da palavra “só” é que vai ditar o sentido, não a vírgula. Othon M. Garcia, em Comunicação em prosa moderna (Rio de Janeiro: FGV, 1967, terceira parte, cap. 4, item 4.3.1, p. 268-9), mostra em frases desse tipo que é a posição da palavra “só” que determina o sentido. O exemplo dele é: “Só ele ganhou mil cruzeiros pela remoção do lixo acumulado durante duas semanas.” Eis um exemplo mais curto para ilustrar que é a posição da palavra “só” e não a pontuação que responde pelo sentido: “Só ele chorou” (ele foi o único a chorar); “Ele só chorou” (ele não fez outra coisa a não ser chorar); “Ele chorou só” (ele chorou sozinho). Assim, em lugar da vírgula que não existe, o par de frases da Internet deveria ser: “Só ele resolve isso” (ele é o único que pode resolver isso); “Ele resolve só isso” (a única coisa que ele resolve é isso). Poderia haver vírgula em “Ele, só, resolve isso”, em que “só”, significando “sozinho”, “sem a companhia de outra pessoa”, funciona como um “encaixe”, como um aposto (e não como um predicativo).
Mais interessante para o uso da pontuação (não apenas da vírgula) é a seguinte estrofe cuja autoria, infelizmente, ignoro, e que se encontra na p. 86 do livro de M. Cavalcanti Proença, Exercícios de português (5.ed. Rio de Janeiro: Ed. Distribuidora de Livros Escolares Ltda, 1966): “Três belas que belas são / Querem que por minha fé / Eu diga qual delas é / Que adora o meu coração / Se consultar a razão / Penso que amo Soledade / Não Lia cuja bondade / Ser humano não teria / Não aspiro a mão de Iria / Que não tem pouca beldade.” – Exceto pelo ponto final, não há outra pontuação nessa décima. O sentido muda de acordo com a colocação de vírgula, de ponto-e-vírgula, de ponto de interrogação e de ponto de exclamação: o “eu” da estrofe pode afirmar que ama qualquer uma das três moças, excluindo as demais, ou amar a todas três, sem excluir nenhuma, ou afirmar que não ama a nenhuma delas. Vimos que a vírgula só se usa para separar termos coordenados, termos encaixados ou termos deslocados. Exemplo: “O menino, filho da lavadeira, ofereceu, com alegria, à mãe, pelo aniversário dela, um rico presente, certamente comprado com sacrifício no dia anterior.” A frase “nua”, sem os encaixes e deslocamentos, é a seguinte: “O menino ofereceu à mãe um rico presente.” É claro que há outros usos da vírgula, como separar o local e a data, nas cartas (Vitória, 08 de setembro de 2009), assinalar os pleonasmos gramaticais (Esse dinheiro, ganhei-o com sacrifício.), marcar as elipses (Ele foi ao cinema; e eu, ao teatro.), isolar as expressões explicativas (como “isto é”, “aliás”, “ou seja”) e separar orações (embora nem todas).
A vírgula também distingue uma oração adjetiva explicativa de uma restritiva. A idéia básica, contudo, é a de que nunca se usa a vírgula para separar os elementos constitutivos de um sintagma, isto é, não se separa o termo determinante do termo determinado. O uso da vírgula separa do fundamental o aposto explicativo, o aposto distributivo, o aposto enumerativo e o aposto circunstancial.
A frase “O motorista, cansado, dormiu” difere da frase “O motorista cansado dormiu” e da frase “O motorista dormiu cansado”. Na primeira frase, “cansado” é aposto circunstancial: a causa de o motorista ter dormido é o fato de que ele estava cansado. Na segunda frase, “cansado” é adjunto adnominal, apenas determina o substantivo “motorista”. Na terceira frase, “cansado” é predicativo do sujeito, no predicado verbo-nominal, isto é, cansado é o estado em que ele se encontrava quando dormiu. As brincadeiras com a vírgula servem como motivação para a aprendizagem do seu emprego. Melhores que as frases da Internet que vimos acima são as já conhecidas de longa data pelos professores de português, como esta de Gonçalves Dias, do poema Y-Juca Pirama: “Tu, covarde, meu filho não és” (Tu não és meu filho e és covarde). A mudança de posição de uma vírgula dá sentido oposto à frase: “Tu covarde, meu filho, não és” (Tu és meu filho e não és covarde). O primeiro verso da estrofe 120, de Os Lus. canto III: “Estavas linda Inês posta em sossego” (Estavas linda, Inês, posta em sossego/ Estavas, linda Inês, posta em sossego.) Interessante também é uma frase recentemente divulgada também pela Internet: “Se o homem soubesse o valor que tem a mulher ficaria de joelhos a seus pés.”Um machista poria a vírgula depois de “tem”; uma feminista poria a vírgula depois de “mulher”. Outra frase em que se pede o emprego da vírgula é uma pegadinha: “Um navio brasileiro entrava no porto um navio português.” As vírgulas seriam usadas para separar o adjunto adverbial de lugar “no porto”. O problema é que “entrava” não é forma do verbo “entrar”, mas forma do verbo “entravar”, que significa “obstruir”. Outra pegadinha é uma frase com inversão sintática que se apresenta a alguém com o pedido de assinalar o lugar e o sinal de pontuação que se deve pôr: “Um fazendeiro tinha um carneiro e a mãe do fazendeiro era também o pai do carneiro.” Um ponto ou um ponto-e-vírgula depois de “mãe” torna a frase compreensível: “Um fazendeiro tinha um carneiro e a mãe. Do fazendeiro era também o pai do carneiro.” O ponto-e-vírgula, por sua vez, usa-se basicamente para separar termos coordenados em cujo interior já exista vírgula. Ex.: Maria saiu, porém não voltou / Maria saiu; não voltou, porém.” (O ponto-e-vírgula é usado na segunda frase do par porque a segunda oração, coordenada à primeira, está com vírgula internamente. A vírgula dessa segunda oração se justifica porque a conjunção está deslocada.)
Um comentário:
A frase ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão pode ser ladrão, que rouba ladrão, tem cem anos de perdão? Você pode mandar a resposta pra o email socorro.araujo@gmail.com?
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