Conto de Natal
por JOÃO CÉSAR DAS NEVES, Portugal AQUI e AQUI (Entre as brumas da memória)
Pedro estava a uma mesa do bar, bebendo uma cerveja e angustiando-se por causa da dívida ao banco. Era como se toda a maldita crise mundial se concentrasse na próxima prestação e na falta de dinheiro para a pagar. Onde arranjá- -lo? Então ouviu dizer:
- Porque é que não fazes como na outra?
Pedro levantou os olhos e viu um homem de barba à mesa do lado, que sorria e olhava para ele. Perante o olhar confuso do jovem, o homem explicou:
- Estás preocupado com a dívida. Porque não fazes como na outra dívida?
- Outra?! Qual outra?
- Tu recebeste dinheiro do banco e, como sabes que não é teu, preocupas-te em pagá-lo. Mas também recebestes dois braços, duas pernas, uma cabeça e um coração, recebestes um chão para pisar, ar para respirar, comida para comer, uma família que te ama, uma carreira e amigos. Um dia recebestes tudo isso, sem saberes de onde, e um dia tudo te vai ser tirado, tal como no dinheiro do banco. A situação é exactamente paralela. Porque é que ligas ao empréstimo da moeda e não ao empréstimo da vida?
Pedro estava mais confuso que nunca.
- Tu, que não acreditas que Deus existe...
- Isso não é verdade! - interrompeu Pedro.
- Ah! Está bem. Há muitos que acham que o banco não existe e têm direito a todo o empréstimo que receberam por causa de umas coisas a que chamam "leis da física e da natureza". Esses agem como se fossem donos disto, sem perceberem que não controlam nada. São os mais tontos de todos. Então tu acreditas que Deus existe mas não te liga nenhuma.
- Também, não é verdade!
- Está bem! É que existem alguns que acreditam na existência do banco, mas pensam que, desde que paguem de vez em quando uma comissãozita, nunca vão precisar de tratar dos juros e devolver o capital. Têm um pacto de não agressão com Deus e vivem respeitosamente à parte. Esses terão uma surpresa ainda mais desagradável que os primeiros. Então tu não pertences a nenhum destes dois grupos. Quer dizer que és do pior dos três: aqueles que acreditam que Deus existe, que Ele liga ao mundo, mas não lhe ligam a Ele. Os piores são os fariseus - disse o homem, com cara enjoada.
Pedro pensou em protestar, mas preferiu ficar calado, a ver o que aconteceria. O homem continuou.
- Tudo o que tu tens, do teu cérebro à tua mulher, passando pelo sistema solar e o teu emprego, não é, nem nunca foi, teu. É do seu verdadeiro dono e foi-te confiado durante um bocadinho de tempo. Mais: como sabes bem, não se trata de um único empréstimo feito ao nascer que se paga na morte, porque estás permanentemente a receber novos benefícios. Mesmo que vás pagando os juros pontualmente, a tua dívida vital aumenta todos os dias exponencialmente. Pior de tudo, a única forma de pagar os juros é com a própria dívida, porque, se pensares bem, vês que nada tens de teu. Tudo depende de Outro.
- Por isso, a questão central da vida - continuou o homem - não é cumprir regras, ser bonzinho, preocupar-se com os outros. É ser realista e compreender que devemos tudo. Tudo o que somos e temos, devemo-lo a Outrem. A única forma verdadeira de viver é numa total e profunda dependência deste Deus que nos dá tudo. É isso que é ser religioso. Por isso somos bons. Os que vêem a religião como um conjunto de deveres, um código moral ou ritos, costumes, amizades são piores que os ateus honestos. Foi com esses que Ele mais discutiu. Nunca ouviste dizer que antes de tudo deves "amar a Deus sobre todas as coisas"? Amar! Amar mesmo! E sobre todas as coisas. Onde é que leste que bastava "amar o próximo como a si mesmo"? O problema central da vida é a dívida absoluta, esmagadora, totalitária que temos perante o banco divino. Que, felizmente, nos ama mais a nós que nós próprios.
- Não sei se o meu prior gostaria dessa sua comparação de Deus com um banco! - disse Pedro a rir.
- Achas? Nunca ouviste ler: "O reino dos céus é... como um homem que, tendo de viajar para o exterior, chamou os seus escravos e lhes confiou os bens. A um deu cinco talentos, a outro dois e ao terceiro um, segundo a capacidade de cada um."? (Mt 25, 14-15)
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