TUCA PUC 1977
EU QUASE QUE NADA SEI. MAS DESCONFIO DE MUITA COISA. GUIMARÃES ROSA.

sábado, 23 de outubro de 2010

Quando somos pobres ...


Nesses dias em que o debate sobre o ABORTO pululou na mídia das gônadas masculinas, vejo este texto. Faz parte do debate. Do debate e não do esgoto de notícias que engulimos. VER AQUI


Direitos Sexuais e Reprodutivos em Destaque
"Violência sexual e direitos humanos: relato de um caso"
Alessandra Foelkel , Beatriz Galli e Jefferson Drezett (2005)

Através de contato realizado por uma médica, IPAS Brasil tomou conhecimento de um caso de violência sexual e falta de acesso à interrupção de gravidez indesejada de uma adolescente de 16 anos de idade, em uma cidade no Sul do país. Em janeiro de 2005, a equipe de IPAS realizou uma visita ao local e entrevistou as pessoas envolvidas com o objetivo de prestar assessoria em saúde e direitos sexuais e reprodutivos à família e aos profissionais de saúde envolvidos. A seguir, passamos a relatar os fatos que foram narrados nas entrevistas.
Relato do Caso
Gabriela* engravidou aos 16 anos após sofrer abuso sexual praticado pelo padrasto, com quem convivia desde um ano de idade. Quando D. Marta*, mãe de Gabriela, descobriu que a filha estava grávida (a gestação já transcorrera 3 meses e meio) achou que o pai era algum namorado. Ao pressionar Gabriela para que revelasse o nome do rapaz espantou-se diante da revelação: a filha sofrera abuso sexual por parte do padrasto.
A adolescente foi levada ao serviço de saúde, onde repetiu a história, desta vez à médica. Mãe e filha foram informadas sobre o direito de interrupção da gravidez - previsto em lei - e decidem pelo procedimento, sendo orientadas pelo serviço de saúde de que deveriam obter autorização judicial para realizar o abortamento previsto em Lei. O serviço de saúde que atende vítimas de violência sexual auxiliou na obtenção da documentação necessária para o encaminhamento do pedido ao Fórum.
"Achamos que seria fácil, doutora, fomos até o Fórum, achando que estaria tudo resolvido, pois tínhamos a minha autorização. Porque para nós deu tudo errado e para outras pessoas dá certo? A lei não funciona para a gente?". A médica, sem jeito, responde: "Cada Juiz é um Juiz: depende de quem esta julgando". Quando D. Marta e Gabriela chegam ao Fórum, o magistrado que normalmente autorizava a interrupção da gravidez em casos de violência estava de férias. Não sabendo como proceder, o pessoal deixou mãe e filha esperando por outro juiz, por várias horas, transferindo-as para vários departamentos, onde ninguém teria demonstrado interesse em ajudar. Quando, finalmente, foram atendidas, a Juíza declarou que não poderia fornecer a autorização, pois não havia provas de que Gabriela sofrera abuso sexual.
Diante da negativa, Gabriela e sua mãe voltaram ao serviço de saúde, sendo informadas de que poderiam recorrer da decisão. O caso então passou para outra Juíza, que decidiu falar em particular com a adolescente sobre o bebê e seu direito à vida. A conversa ocorreu também com Dona Marta e as duas médicas que atenderam o caso no serviço de saúde. Os diálogos deixaram a gestante confusa e a Juíza negou novamente o pedido, alegando que não estava certa do que a jovem realmente queria.

No total, foram 15 dias de idas e voltas ao Fórum. A casa de D. Marta está localizada longe da cidade, sendo necessário tomar dois ônibus e fazer uma caminhada por um pequeno trecho para chegar ao Fórum. No Fórum, em geral, D. Marta e Gabriela tinham que aguardar por várias horas para serem atendidas e relataram que foram humilhadas no local, através de comentários inconvenientes ou mesmo maldosos. A médica que aconselhou Gabriela a buscar seus direitos sofreu represálias na cidade. Dona Marta desabafa: “É só porque a gente é pobre, se fôssemos ricos teríamos procurado uma clínica clandestina e já estava tudo resolvido.”

Gabriela é hoje mãe de Rafael*, de apenas 4 meses de idade. Recentemente, o Fórum enviou uma assistente social à casa de Dona Marta, com perguntas para saber se Dona Marta e suas outras duas filhas tinham condições de sustentar a criança. A assistente social aconselhou, então, que o bebê fosse disponibilizado para adoção, em virtude do grau de parentesco da criança com a avó (neto e filho de seu ex-marido). “Não entendo, primeiro falam que não se pode abortar por que não há provas e, depois, dizem que é neto e querem tirar a criança da gente. Era só o que me faltava”, protesta Dona Marta. “Rafael é filho de Gabriela e ponto final nessa história. Nasceu e agora pertence a essa família.”

Perguntamos se o ex-marido foi preso. Dona Marta me olha, sem esconder o triste sorriso:
“Ele está por aí: mora com a mãe dele em uma rua próxima daqui e, na hora de registrar o Rafael, ele foi colocado como pai do menino. Vai entender a lei”.


Comentários
Este caso é ilustrativo de várias violações aos direitos humanos à auto-determinação sexual e reprodutiva da adolescente. Gabriela, que foi vítima de abuso sexual por parte de seu padrasto teria direito à interrupção da gravidez indesejada, conforme estabelece o Artigo 128, inciso II, do Código Penal. Além disso, a Norma Técnica para Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, publicada pelo Ministério da Saúde, e reeditada em 2005 , orienta com clareza gestores e profissionais de saúde quanto aos procedimentos a serem adotados para garantir o acesso à interrupção da gestação prevista em lei. O Ministério da Saúde orienta a atenção para os profissionais de saúde e regulamenta, através da Norma Técnica mencionada, o acesso de mulheres e adolescentes ao aborto legal em caso de violência sexual.

Nos casos de maus tratos contra crianças e adolescentes, nos quais se incluem os casos de abuso sexual e violência, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece a obrigatoriedade do profissional de saúde comunicar o caso (suspeito ou confirmado) às autoridades competentes: o Conselho Tutelar e a Vara da Infância e da Juventude, conforme expresso nos artigos 13 e 245 . Cabem também ao Conselho Tutelar as seguintes providências: o apoio na investigação, os encaminhamentos legais para outros órgãos públicos, quando necessário; a garantia dos direitos; a documentação dos casos; o afastamento da criança do agressor, quando indicado, conforme o Artigo 136 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

O juiz deve decidir com base na vontade da adolescente, que deve ser vista como sujeito de direitos com autonomia para decidir sobre questões reprodutivas, e conforme a doutrina da proteção integral. A palavra de Gabriela deveria ter sido considerada suficiente para a Juíza, tendo em vista a dificuldade de comprovar o abuso sexual por parte do padrasto, que poderia estar ocorrendo por anos seguidos, desde a sua infância.

Algo importante a ser comentado sobre esse caso é a atitude equivocada do serviço de saúde de exigir autorização judicial para realizar a interrupção da gestão, uma vez que a lei autoriza para os casos de violência sexual. Tal exigência retardou o acesso da adolescente ao procedimento de interrupção, acarretando riscos para a sua saúde e sofrimento psicológico desnecessários.

A família de Gabriela também poderia ter entrado com uma ação de indenização contra o Estado por danos morais e materiais, por ter sido negado o acesso ao abortamento legal e por ter sofrido várias violações de direitos humanos, tais como: direito à saúde, direito à liberdade e segurança, direito a não ser submetida a tratamento desumano além da falta de respeito à sua dignidade, como pessoa em processo de desenvolvimento (artigos 15 e 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente).


* Os nomes são ficitícios a fim de preservar a identidade das pessoas diretamente envolvidas no caso

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