TUCA PUC 1977
EU QUASE QUE NADA SEI. MAS DESCONFIO DE MUITA COISA. GUIMARÃES ROSA.

sábado, 11 de abril de 2009

Mia Couto

Imagem: david Ho
Enviado pelo Acir Vidal!


“A Frelimo de hoje dá cobertura a coisas que combateu”
Entrevista com Mia Couto

Sexta, 03 Abril 2009 12:37 Jeremias Langa

Mia Couto
- Não souberam distinguir a coisa pública da privada.Porquê Mia?
- A história é simples, a mesma tem a ver com a minha infância. É uma história de que eu não me lembro. Provavelmente é uma história recriada. O que aconteceu é que eu gostava de gatos e quando tinha 2 ou 3 anos, a certa altura, acreditava que ia ser chamado Mia. Os meus pais acharam graça na altura e de repente aquele nome ficou.
- Eu sei que é filho de poeta, o senhor Fernando Couto, uma pessoa extremamente simpática e que conhece tudo que é livro. Mia é espécie de filho de peixe que sabe nadar...
-Sim, o meu pai trouxe para nós esta cultura de livro, de facto ele não é poeta, mas ao lado da minha mãe que é contadora de histórias, trazia aquilo que era este mundo, reinventava muito, provavelmente mais que o meu pai.
-Li numa entrevista sua, creio que foi num jornal brasileiro, em que dizia que entrou no jornalismo como infiltrado da Frelimo...
De facto, foi antes da independência, eu recebi instruções. Como Jeremias sabe, naquela altura os jornais eram dominados por interesses coloniais e havia presença moçambicana ínfima dentro da media. Então, recebi instrução de abandonar os estudos (eu estudava medicina) para me infiltrar num órgão de informação, na circunstância o jornal “A Tribuna”, em Março de 1974.
Mesmo muito envolvido com a causa política, depois encontrou uma forma de escrever, digamos diferente, numa altura em que toda a gente fazia exaltação de um país nascente. Enveredou por uma poesia lírica, iniciando-se com um livro de poesia, “Raiz do Orvalho”. Como é que foi este processo de tomada de consciência?
Na altura, apercebi-me que havia um lado político que usurpava tudo o que um ser tinha, havia uma linguagem que era absolutamente osmónica e era terrível, porque nós não podiamos dizer “eu amo”, “apaixonei-me por alguém ou qualquer coisa do género”. O amor era uma coisa que não era bem necessária, o que era mentira, porque a história dos nossos heróis é pouco humanizada, falta esse lado das paixões, dos amores que tiveram. É preciso que a gente revisite todos esses nomes da nossa história e os traga para um lado mais próximo. Eles são iguais a nós.
UM PROJECTO IMPOSSÍVEL
Ainda vive a mesma militância política depois da independência?
É uma militância que é muito pessoal, é política, obviamente, mas não é partidária. Eu faço a defesa dos mesmos princípios, evidentemente reajustados. Acredito que aprendi; todos os dias eu mudo; não sou do grupo dos ressentidos. Fiz parte deles. Já não faço e sou grato a tudo que me proporcionaram.
Porquê é que fez a ruptura com esta militância?
Começou mesmo no período em que era director do jornal, porque tudo começou a tornar-se visível, havia uma distância entre aquilo que era o discurso e a prática. Aquilo que eu percebia, para dizer as coisas que eu tinha que dizer. Eu podia ter mentido em nome de uma causa, mas eu tinha outra causa para não mentir.
Ficou desencantado de alguma maneira com o rumo que tomou?
Desencantamento seria uma espécie de ressentimento. Claro que não fiquei feliz com o facto de que nós não fomos capazes de ser fiéis em relação a princípios de promoção da ordem moral, mas não sou um desencantado. Entendo que historicamente era impossível aquele tipo de projecto.
Num dos seus escritos, dizia que a Frelimo passou a ter um discurso falseado, mascarado, com objectivos ainda socialistas, quando eles todos se tinham convertido em empresários de sucesso... tem a ver com isso?
Essa é uma das razões. Eu não digo a Frelimo toda, mas alguns dos grandes nomes que dão a cara naquilo que são os projectos da Frelimo. São nomes que creio que estiveram associados ao projecto socialista, mas por empréstimo, não por convicção profunda. Havia ali uma condição histórica que empurrou todo este grupo de gente para assumir um discurso que no fundo não era sua convicção mais íntima. À primeira oportunidade para se revelar aquilo que é verdadeiro, que é uma certa tentação no poder, não souberam distinguir aquilo que é coisa pública daquilo que são coisas privadas. Isso veio ao de cima.
Não se revê na actual Frelimo, portanto?
Não, não me revejo.
Porquê?
Porque acho que a Frelimo de hoje dá cobertura a coisas que me parecem que ontem sempre combateu.
Quando nós lemos Mia Couto sentimos, duas dimensões na língua: a dimensão do rigor, da gramática, do linguisticamente correcto, e a dimensão funcional…
Eu acho que todos os dias há questões riquíssimas de como é que o português é realizado. O português é uma língua nossa e não temos que ter complexo nenhum quanto a isso.
Remete-nos inevitavelmente a outra questão, a da identidade. Este é um tema recorrente nas suas obras. Porquê?
Porque a identidade é uma espécie de bandeira, não só em Moçambique, mas em todo o mundo. As pessoas são empurradas ao termo identidade, ela surge como se fosse algo que se realiza no singular, como se tivéssemos identidade única, separada.

Morte como metáfora do renascimento

Na temática das suas obras, vislumbra-se o desencantamento, a morte, o pessimismo. Porquê?
Eu não concordo que seja pessimismo. acho que aqui há uma espécie de passagem para renascer mais tarde. Nós temos essa experiência de vida na carne. A morte não acontece como um desaparecimento definitivo na cultura africana.
É uma espécie de metáfora?
É uma metáfora de renascimento, de ressurreição.
Terá a ver com alguma das suas referências literárias?
Há aí uma coisa diferente que tem a ver com o peso da religião católica na América Latina. A religião católica marca o lugar da morte, o lugar da morte está arrumado. Eu acho que as culturas moçambiçanas têm uma outra percepção em relacção à morte: os mortos jamais morrem definitivamente.
Como é que toda esta cosmogonia, este modo de entender estes vários mundos que compõem o universo que já existe, convivem harmoniosamente entre eles?
Bom, basta olhar para a quilo que é a vida quotidiana na rua, no campo. acho que é uma coisa profundamente moderna, a capacidade de harmonizar diferentes percepções, uma coisa que deveríamos ter orgulho dela.
Também nas suas obras notam-se algumas influências. Estão lá Guimarães Rosa, Luandino Vieira. São estas as suas referências literárias?
Descobri o João Guimarães Rosa depois. Primeiro foi Luandino Vieira. Ele, sim, é que me conduziu ao Gimarães Rosa. Quando eu fazia jornalismo, percebia que a linguagem com que nós retratavamos o quotidiano, com que púnhamos as pessoas a falar, não casava com aquilo que era a verdade da nossa língua portuguesa.
O facto de o universo cultural africano ser dominado pela oralidade terá de alguma maneira influenciado a sua forma de escrever?
Acho que isso é fundamental, é impossivel um escritor ficar indiferente em relação a esses domínios da oralidade. A oralidade muitas vezes é vista como uma deficiência, a oralidade é a não escrita, a oralidade é uma outra lógica, outra sensibilidade. É uma outra forma de ver o mundo que é profundamente rica, depois tem o lado poético, a capacidade de contar, há essa capacidade de contar histórias e que é profundamente enriquecedora para a escrita em Moçambique. acho que é impossível alguém fechar as portas a este mundo.
E não é única?
Claro que não. São múltiplas as coisas que eu sou. Uma parte minha vem da Europa, outra de África.
Uma espécie de identidade híbrida?
Sim, mas eu acho que todos somos assim.
O facto de Mia ser branco não tem de alguma maneira influenciado na forma recorrente como escreve sobre o tema identidade?
Provavelmente, sim porque eu tive que resolver isso dentro de mim, pois tive que me confrontar com esta ideia, muito limitadora, do que é ser moçambicano, que ainda hoje existe. A ideia de que para se ser africano tem que se ter esses tipos de passaporte.
O facto de Mia couto ser branco ajudou ou o prejudicou?
A nossa sociedade tem preconceitos raciais profundos. Acho que Moçambique é um país que levou mais longe essa identidade acima da raça, nós temos problemas raciais que às vezes jogam a favor de uma elite branca, mas há casos em que sou prejudicado por ser branco.
Nomeadamente...
- Lembro-me que havia um concurso em que me foi dito que não podiam dar o prémio a um branco.

ELITES AFRICANAS
Ungulani Ba Ka khosa diz que as nossas elites viraram as costas às suas responsabilidades. Partilha desta ideia?
Sim, no geral sim, dizer que toda a elite tem a mesma postura, isso é arriscado. Mas, de facto, é preciso entender que as elites em África tiveram papéis fundamentais no sentido positivo e negativo. Toda a história de África foi reescrita no sentido simplificado de anular aquilo que vinha dentro da África e de repente África passou a ser vista como objecto de auto-vitimização, como se toda a acção fosse a partir de fora. As elites estiveram presentes no desenho daquilo que foi a escravatura, complexidade com o colonialismo e com aquilo que é a espécie global.
Há quem diga que temos uma elite com um comportamento predador ...
No geral, sim. estou absolutamente convicto de que esta elite foi a de substituição daquilo que foram as elites anteriores, mas dentro das elites existem focos de defesa de interesse nacional.
Escreveu uma vez que o maior foco de atraso em moçambique não se focaliza na economia em si, mas na incapacidade de gerarmos um pensamento produtivo, crítico, ousado e inovador. continua a pensar asssim?
Absolutamente. vejo com tristeza que esta campanha toda contra a pobreza não nos ajuda muito, parece que somos adeptos do orgulho, auto-estima, simplesmente porque temos um discurso cheio de adjectivos.
Houve agora o lançamento da marca Moçambique, não sou contra, se eu fosse ministro do Turismo provavelmente faria a mesma coisa. Vivemos uma imagem falseada. Eu acho que é mais um slogan que outra coisa. A revolução verde, por exemplo, ainda não sei o que é.
Quando falamos da produção de conhecimento, inevitalmente entram as universidades. Como é que Mia Couto olha para estes centros de produção do saber?
Eu olho com alguma preocupação, primeiro porque elas são o armazém daquilo que foi passando de mão em mão, que carece desse investimento de qualidade. O problema da universidade resolve-se a outros níveis. Por exemplo, a questão dos hospitais: o nível de preocupação da nossa elite com a qualidade é menor, porque quando alguém da elite está doente, ele sabe que não vai a um hospital nacional, vai para fora do país. Este é o nível de hipocrisia que existe.
Li um texto seu em que escrevia que a Universidade devia ser um centro de debate, uma fábrica de cidadania activa. Por que não está a sê-lo?
Porque me parece que há uma preparação prévia que faz com que aquele que deve ser um estudante, acabe por se converter apenas num aluno. Sinto que no período da juventude, tido como o da escola, não há um encorajamento de que o jovem deve ser rebelde. Quando digo rebelde, não é no sentido de partir a louça da cozinha, mas no sentido de trazer inquietações. Este sentimento de que este mundo não serve. A juventude não pode vestir este tipo de valores de uma forma acomodada.

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