GRAMÁTICA DE ERROS
José Augusto Carvalho*
Perguntaram-me uma vez se existe algum livro que ensine a prever e a normatizar a ocorrência de desvios gramaticais. Por razões alheias à minha vontade, só conheço um único livro a respeito: La Grammaire des Fautes, de Henri Frei, publicado em 1971 pela Slatkine Reprints, de Genebra. Um artigo de Milton Azevedo, intitulado “O papel da análise de erros no ensino de idiomas”, publicado no número 779-80, do Suplemento Literário de Minas Gerais, edição de 5 a 12 de setembro de 1981, trata exclusivamente da regularidade dos erros cometidos por falantes de português na aprendizagem do inglês segunda língua, por força da competência transitória na língua estrangeira. A base de uma gramática de erros está exatamente na analogia. Quando diz “eu trusse”, por “eu trouxe”, o falante do português se baseia numa quarta proporcional: “foi” está para “fui”, assim como “trouxe” (pronúncia: trosse), 3ª pessoa, está para... “trusse” (1ª pessoa). De fato, são vários os exemplos em que a vogal média tônica (e,o) de um verbo, na 3ª pessoa, corresponde a uma vogal alta (i,u) na 1ª pessoa, no mesmo tempo verbal: teve/tive; esteve/estive; tosse/tusso; pôs/pus; foi/fui; pôde/pude; fez/fiz; sente/sinto, etc. Na conjugação popular do verbo viver, temos: veve/vivo (cf. serve/sirvo, fere/firo, segue/sigo, etc.).
A hipercorreção também pode ser causa da regularidade de um erro. Hipercorreção é o erro proveniente da tentativa de se atingir a norma culta urbana. Daí o nome “hiperurbanismo” por que também é conhecida a hipercorreção. Por ouvir uma pessoa culta pronunciar –lh– onde ele diz –i–, como “trabalha”, que ele pronuncia “trabaia”, um falante pouco escolarizado, acreditando que está “errado” dizer “teia de aranha” ou “pia de cozinha”, tentando falar “bonito”, poderá dizer “telha de aranha” ou “pilha de cozinha”.
O difícil, às vezes, é descobrir a analogia que levou à hipercorreção. Um aluno escreveu, num trabalho, que “o rapase era amigo de infância”. Ele queria dizer “rapaz”. Muitas vezes, a hipercorreção resulta numa forma lingüística que não existe nem no dialeto culto, nem no dialeto do falante que comete a hipercorreção. Só por acaso descobri a razão desse “rapase”, que certamente não retratava a pronúncia do aluno nem a de ninguém de sua sala. O aluno pronunciava “quase” como “quais” (“Eu estava quais caindo...”). Como ele escreve “quase”, mas pronuncia “quais”, achou que deveria escrever “rapase”, porque pronunciava “rapais”.
A propósito de pronúncia, li a nota de despesa que um garçom me trouxe à mesa, num restaurante: “1 pepis”. Imaginei que esse garçom deveria dizer “piscologia” ou “táquis” em lugar de “psicologia” ou “táxi”. As gramáticas ensinam que grupos consonantais próprios são os que se pronunciam na mesma sílaba, e que são normalmente formados por oclusivas seguidas de líquidas, ou das fricativas frontais f, v também seguidas de líquidas, como em abraço, aprazer, afro, inflar... Os grupos impróprios são os que se pronunciam em sílabas diferentes, como rt (arte) ou st (costa), por exemplo. Na verdade só existem grupos impróprios quando a primeira consoante é uma fricativa alveolar surda (ex: asco) ou sonora (ex.: desde) ou uma consoante vocálica (arte/alce). Outros grupos como gn (ignora), dv (advoga), ps (psique), pt (apto), cn (acne), mn (amnésia), bt (obtemperar), bs (observa), bd (abdica), ct (pacto) , ft (afta), tm (ritmo), por exemplo, só são impróprios fonemicamente, porque, foneticamente, há entre elas a inserção de uma vogal alta anterior fechada (um tipo particular de epêntese a que se dá o nome de suarabácti ou anaptixe): adivogado, silépisse, pissicologia, iguinorante, pineu (às vezes, peneu, por hipercorreção), etc. Essa epêntese do i explicaria a pronúncia “adapito” (por adapto), ou “impreguina” ( por impregna), por exemplo. A separação silábica oficial é que considera esses grupos como impróprios: silep-se; ap-to; ap-neia, etc. Aliás, “parapsicologia” se segmenta assim: pa-rap-si-co-lo-gi-a, como consta do Vocabulário ortográfico da língua portuguesa, de Antônio Geraldo da Cunha (Rio de Janeiro: Lexikon, 2008), em que p e s ficam em sílabas distintas. Os minidicionários Aurélio e Houaiss segmentam “parapsicologia” como se houvesse um hífen depois de “para”. Esse mesmo erro de segmentação se encontra no Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras (São Paulo: Cia. Editora Nacional, 2008, pretensamente de acordo com a nova ortografia).
Ao dizer “rúbrica” em lugar de “rubrica” (subst.), o falante se baseia no fato de que muitas vezes a forma nominal se distingue da forma verbal apenas pelo fonema de intensidade (tasema), isto é, pela mudança de posição do acento tônico (o nome “tônico” é impróprio, já que não se trata de tonema, mas de tasema), como em: tráfico/trafico; trânsito/transito; mágoa/magoa; crédito/credito; confidência/confidencia; cálculo/calculo; fábrica/fabrica; comércio/comercio; etc. Ao dizer “magérrimo”, por “macérrimo” (superlativo de “magro”) , o falante também comete uma hipercorreção já abonada pelos dicionários (analogia com negro/nigérrimo). O melhor seria dizer “magríssimo” que, além de correto, é menos “esnobe”.
Acredito que a construção “implicar em”,um erro de regência do verbo “implicar”, que não se constrói com a preposição “em”, se deva a uma tendência dos falantes a repetir na regência a preposição que lembra ou que constitui o prefixo do verbo, como em: desdizer de, contentar-se com, perguntar por, conversar com, desfazer-se de, contar com, assistir a, importar em, etc. A regência usual de “assistir” sem a preposição a, com o sentido de presenciar, se deve talvez à contaminação com o verbo ver, que é transitivo direto.
No processo de aprendizagem da língua materna, a criança recorre frequentemente à quarta proporcional, na utilização intuitiva de sua gramática interiorizada: “correr” está para “corri”, assim como “fazer” está para... “fazi”, que é forma que a criança diz, apesar de não ouvi-la nem mesmo de um adulto pouco escolarizado, o que levou os linguistas a excluir a simples imitação como forma de aprendizagem da língua materna.
Acho que temos necessidade de uma boa gramática de erros em português...
(José Augusto Carvalho é mestre em linguística pela Unicamp e doutor em letras pela USP)
José Augusto Carvalho*
Perguntaram-me uma vez se existe algum livro que ensine a prever e a normatizar a ocorrência de desvios gramaticais. Por razões alheias à minha vontade, só conheço um único livro a respeito: La Grammaire des Fautes, de Henri Frei, publicado em 1971 pela Slatkine Reprints, de Genebra. Um artigo de Milton Azevedo, intitulado “O papel da análise de erros no ensino de idiomas”, publicado no número 779-80, do Suplemento Literário de Minas Gerais, edição de 5 a 12 de setembro de 1981, trata exclusivamente da regularidade dos erros cometidos por falantes de português na aprendizagem do inglês segunda língua, por força da competência transitória na língua estrangeira. A base de uma gramática de erros está exatamente na analogia. Quando diz “eu trusse”, por “eu trouxe”, o falante do português se baseia numa quarta proporcional: “foi” está para “fui”, assim como “trouxe” (pronúncia: trosse), 3ª pessoa, está para... “trusse” (1ª pessoa). De fato, são vários os exemplos em que a vogal média tônica (e,o) de um verbo, na 3ª pessoa, corresponde a uma vogal alta (i,u) na 1ª pessoa, no mesmo tempo verbal: teve/tive; esteve/estive; tosse/tusso; pôs/pus; foi/fui; pôde/pude; fez/fiz; sente/sinto, etc. Na conjugação popular do verbo viver, temos: veve/vivo (cf. serve/sirvo, fere/firo, segue/sigo, etc.).
A hipercorreção também pode ser causa da regularidade de um erro. Hipercorreção é o erro proveniente da tentativa de se atingir a norma culta urbana. Daí o nome “hiperurbanismo” por que também é conhecida a hipercorreção. Por ouvir uma pessoa culta pronunciar –lh– onde ele diz –i–, como “trabalha”, que ele pronuncia “trabaia”, um falante pouco escolarizado, acreditando que está “errado” dizer “teia de aranha” ou “pia de cozinha”, tentando falar “bonito”, poderá dizer “telha de aranha” ou “pilha de cozinha”.
O difícil, às vezes, é descobrir a analogia que levou à hipercorreção. Um aluno escreveu, num trabalho, que “o rapase era amigo de infância”. Ele queria dizer “rapaz”. Muitas vezes, a hipercorreção resulta numa forma lingüística que não existe nem no dialeto culto, nem no dialeto do falante que comete a hipercorreção. Só por acaso descobri a razão desse “rapase”, que certamente não retratava a pronúncia do aluno nem a de ninguém de sua sala. O aluno pronunciava “quase” como “quais” (“Eu estava quais caindo...”). Como ele escreve “quase”, mas pronuncia “quais”, achou que deveria escrever “rapase”, porque pronunciava “rapais”.
A propósito de pronúncia, li a nota de despesa que um garçom me trouxe à mesa, num restaurante: “1 pepis”. Imaginei que esse garçom deveria dizer “piscologia” ou “táquis” em lugar de “psicologia” ou “táxi”. As gramáticas ensinam que grupos consonantais próprios são os que se pronunciam na mesma sílaba, e que são normalmente formados por oclusivas seguidas de líquidas, ou das fricativas frontais f, v também seguidas de líquidas, como em abraço, aprazer, afro, inflar... Os grupos impróprios são os que se pronunciam em sílabas diferentes, como rt (arte) ou st (costa), por exemplo. Na verdade só existem grupos impróprios quando a primeira consoante é uma fricativa alveolar surda (ex: asco) ou sonora (ex.: desde) ou uma consoante vocálica (arte/alce). Outros grupos como gn (ignora), dv (advoga), ps (psique), pt (apto), cn (acne), mn (amnésia), bt (obtemperar), bs (observa), bd (abdica), ct (pacto) , ft (afta), tm (ritmo), por exemplo, só são impróprios fonemicamente, porque, foneticamente, há entre elas a inserção de uma vogal alta anterior fechada (um tipo particular de epêntese a que se dá o nome de suarabácti ou anaptixe): adivogado, silépisse, pissicologia, iguinorante, pineu (às vezes, peneu, por hipercorreção), etc. Essa epêntese do i explicaria a pronúncia “adapito” (por adapto), ou “impreguina” ( por impregna), por exemplo. A separação silábica oficial é que considera esses grupos como impróprios: silep-se; ap-to; ap-neia, etc. Aliás, “parapsicologia” se segmenta assim: pa-rap-si-co-lo-gi-a, como consta do Vocabulário ortográfico da língua portuguesa, de Antônio Geraldo da Cunha (Rio de Janeiro: Lexikon, 2008), em que p e s ficam em sílabas distintas. Os minidicionários Aurélio e Houaiss segmentam “parapsicologia” como se houvesse um hífen depois de “para”. Esse mesmo erro de segmentação se encontra no Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras (São Paulo: Cia. Editora Nacional, 2008, pretensamente de acordo com a nova ortografia).
Ao dizer “rúbrica” em lugar de “rubrica” (subst.), o falante se baseia no fato de que muitas vezes a forma nominal se distingue da forma verbal apenas pelo fonema de intensidade (tasema), isto é, pela mudança de posição do acento tônico (o nome “tônico” é impróprio, já que não se trata de tonema, mas de tasema), como em: tráfico/trafico; trânsito/transito; mágoa/magoa; crédito/credito; confidência/confidencia; cálculo/calculo; fábrica/fabrica; comércio/comercio; etc. Ao dizer “magérrimo”, por “macérrimo” (superlativo de “magro”) , o falante também comete uma hipercorreção já abonada pelos dicionários (analogia com negro/nigérrimo). O melhor seria dizer “magríssimo” que, além de correto, é menos “esnobe”.
Acredito que a construção “implicar em”,um erro de regência do verbo “implicar”, que não se constrói com a preposição “em”, se deva a uma tendência dos falantes a repetir na regência a preposição que lembra ou que constitui o prefixo do verbo, como em: desdizer de, contentar-se com, perguntar por, conversar com, desfazer-se de, contar com, assistir a, importar em, etc. A regência usual de “assistir” sem a preposição a, com o sentido de presenciar, se deve talvez à contaminação com o verbo ver, que é transitivo direto.
No processo de aprendizagem da língua materna, a criança recorre frequentemente à quarta proporcional, na utilização intuitiva de sua gramática interiorizada: “correr” está para “corri”, assim como “fazer” está para... “fazi”, que é forma que a criança diz, apesar de não ouvi-la nem mesmo de um adulto pouco escolarizado, o que levou os linguistas a excluir a simples imitação como forma de aprendizagem da língua materna.
Acho que temos necessidade de uma boa gramática de erros em português...
(José Augusto Carvalho é mestre em linguística pela Unicamp e doutor em letras pela USP)
Um comentário:
Marta, que beleza de texto, sô?! Sou apaixonado por nossa língua pátria, e seus mistérios é que m'encantam.
E quando me deparo com algo profundamente didático como esse texto, me sinto um menino que achou um brinquedo inesperadamente... Maravilhado!
Obrigado por mais essa lição. Já copiei a "tarefa" nos meus alfarrábios.
bjs
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