TUCA PUC 1977
EU QUASE QUE NADA SEI. MAS DESCONFIO DE MUITA COISA. GUIMARÃES ROSA.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

A vida continua...




Do Blog MEDITAÇÃO NA PASTELARIA, Portugal aqui


Não sei se Dinis Machado leu Romain Gary (quase que apostava que sim...), mas de uma coisa estou certa: os leitores de O que Diz Molero vão gostar também de Uma Vida à Sua Frente.
O romance, traduzido agora pela Sextante Editora, surgiu originalmente em França em 1975 e, no mesmo ano, seria o vencedor do prémio Goncourt. Assinava-o, então, um quase desconhecido de nome Émile Ajar (o “enigmático Émile Ajar”, escrevia-se na época, que apenas publicara um livro, Gros câlin), e que garantiu depois chamar-se Paul Pavlowitch. Paul Pavlowitch manteve a farsa até ao fim, tendo o fim chegado pela mão do próprio Gary que se mataria em 1980 com um tiro na cabeça (nada que ver com o suicídio de Jean Seberg, sua ex-mulher que se matara um ano antes, deixou escrito).
O equícovo desfazer-se-ia postumamente: Émile Ajar era Romain Gary e não Paul Pavlowitch, um familiar do romancista que apenas se prestara à brincadeira.
A verdade, porém, é que Gary também não era Gary. Nascido na Lituânia em 1914, de mãe judia, o futuro escritor respondia, então, por Roman Kacew. Só mais tarde, obtida a nacionalidade francesa em 1938, Roman passaria a Romain, sendo preciso esperar ainda mais um pouco para Kacew passar a Gary. A Alemanha nazi incendiara a Europa, e o autor de Uma Vida à Sua Frente combate agora em Inglaterra, piloto aviador que acabará condecorado no final da guerra. É por essa altura que escolhe o pseudónimo com o qual ficará inscrito nos anais da literatura.
O seu primeiro Goncourt chegara em 1956, com As Raízes do Céu, dois anos depois publicado em Portugal, pela Bertrand, e, na mesma ocasião, transposto para o cinema por John Huston (The Roots of Heaven). E se tinha ganho um, não podia ganhar outro: assim o definem as regras. Gary, contudo, ganhá-lo-ia. E, também por isso, ficou para a história: como o único escritor a quem o prémio foi atribuído duas vezes, mesmo se só o primeiro lhe foi entregue. Na altura, e para grande escândalo dos meios literários parsisiences, Ajar (“brasa”, em russo), digo, Pavlowitch, digo, Gary (“arde”, em russo) recusou a distinção.

O livro, contudo, merece-a. Uma Vida à Sua Frente é um relato comovente, divertido, por vezes, delirante, da infância parisiense de Mohammed, jovem árabe entregue em bebé à ex-prostituta Madame Rosa, uma velha judia sobrevevivente de Aushwitz. Reformada da profissão, Madame Rosa abre um lar clandestino para filhos de putas.
A lei é rígida: as crianças nascidas das mulheres que se defendem (é esta a expressão que Gary usa para prostitutas ) serão retiradas às mães; a velha judia acolhe-as e, a troco de um pagamento mensal muitas vezes irregular, outras vezes, mesmo, inexistente, toma conta daquelas crianças clandestinas que vão crescendo ao Deus dará, ainda assim cheias de amor à vida, como o Banania, só três anos e sorrisos.
O livro é narrado na primeira pessoa por Mohammed, alcunha Momo, jovem adolescente que nunca conheceu a mãe e que acaba por aceitar Madame Rosa, com as suas idiossincrasias, histerias, gordura excessiva e segredos duvidosos como sua substituta. Uma história de amor, portanto, na qual Momo persiste até ao fim, apesar da coisa ter começado a mal: No início, não sabia que Madame Rosa se ocupava de mim só para receber um vale de correio ao fim do mês. Quando soube, já tinha seis ou sete anos, foi um choque saber que era pago. Pensava que Madame Rosa gostava de mim gratuitamente (…) Chorei durante uma noite inteira e foi o meu primeiro grande desgosto.
Paris também ajuda à festa. A cidade e, principalmente, o bairro de Belleville, é uma das protagonistas, com a sua miscelânia de judeus, árabes e negros pobres, proxenetas e prostitutas, miséria e liberdade de mãos dadas. Claro que Uma Vida à Sua Frente surge impregnado de um humanismo ingénuo, mas é precisamente nessa inocência, que o humor desacerta e desalinha, que reside o júbilo da leitura: — És um bom rapaz, Momo, mas tenta ficar quietinho. Ajuda-me. Estou velha e doente. Desde que saí de Auschwitz, só tive problemas.
E depois, claro, há a técnica narrativa, veloz, criativa, desassombrada, os jogos de palavras, a alegria, que – e aqui terá de se pensar na França de então – corria contra-corrente num país rendido à gravidade estruturalista.
Uma Vida à Sua Frente apela à comoção, ao riso, ao sorriso, às lágrimas, à empatia. Não porque a miséria e a solidão surjam borradas a cor-de-rosa mas porque, precisamente, se insiste num rastilho de esperança (a vida toda à nossa frente…), apesar de, no final, o sonho de Israel se provar um sonho impossível.
Adiei o tema doloroso: a tradução. Se a passada rápida de Gray, os atropelos deliberados, a escrita aparentemente acriançada do narrador, se tudo isso não podia resultar num texto limpo e escolar, o que nos é oferecido em português é uma transcrição tosca, descuidada, por vezes imcompreensível. Logo o primeiro parágrafo não é de bom augúrio: A primeira coisa que vos posso dizer é que morávamos num sexto andar sem elevador e que, para a Madame Rosa, como todos aqueles quilos que transportava consigo e só com duas pernas, era uma verdadeira fonte de vida quotidiana, com todas as preocupações e dificuldades. Ela recordava-nos isso sempre que não se queixava de outra coisa, porque era também judia. A sua saúde não era famosa, e posso dizer-vos desde já que era uma mulher que teria merecido um elevador.
Gary não merecia, a Sextante não devia, o leitor não agradece.
Uma Vida à Sua Frente, Romain Gary, Sextante Editora, 2011
Marcadores: Dinis Machado, John Huston, livros, Prémio Goncourt, recensões, Romain Gary, Sextante Editora

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