Eis aqui um texto sublime, bem escrito e muito claro sobre o emprego das aspas. É de Rui Bebiano, professor de história em Portugal. AQUI, veja o texto dele. Neste Blog já me referi ao uso das aspas no discurso que chamo de irresponsável. É aquele discurso tecido nas ciladas da ambiguidade. Já ouvi as frases: Ele é "alegre" (com os dedinhos no ar aspeando a sacanagem). A pessoa queria dizer Ele é gay. Mas, brinca e quer ocultar sua homofobia. Ou, na fala de uma professora: A mãe desse aluno é "diamante". Traduzindo: A mãe desse menino é de amantes. Preconceito dos mais sacanas que conheço.
Quando vejo aspas em discursos, em textos de intelectuais, salto os olhos e analiso. Tem sacanagem nisso! E burrice.
Deselogio das aspas
Crónica publicada em 2002 na revista electrónica NON!, aqui retomada com pequeníssimos retoques.
Não é fácil sinalizar a escrita. Arrumar as palavras, separando-as com pontos, vírgulas, pontos & vírgulas, hífenes ou travessões, mais dois pontos, parênteses, colchetes… reticências. Mas também com aspas (« »), esse adorno – análogo às comas duplas ou vírgulas dobradas (” “), usadas sobretudo para citar ou introduzir expressão em língua estranha – que confere um valor significante diverso do habitual à palavra ou à expressão que entre elas se intromete. Com «indecorosa» intenção normativa, D’Silvas Filho, autor de um Prontuário editado pela Texto, declara que a aposição das aspas constitui uma prática que serve para grafar «termos ou expressões que se devem evitar, termo estrangeiro, reserva no que se escreve (ortográfica, fonética, semântica, eventualmente autoria)». Preceito que a ser seguido com rigor, neste tempo de contínua chocalheira da fala e da escrita, faria do nosso entendimento um labirinto cravado de minas e armadilhas.
De inegável utilidade pública na construção de sentidos esconsos e álibis, as aspas, sinais de vida fácil e atribulada, são muitas vezes objecto de abuso. Abre aspas, por dá cá aquela palha, fecha aspas. Solícitas, sem pudor, servem para contornar insultos, podendo afirmar-se na sua companhia que o senhor director «é um valente “pulha” (entre aspas)!». Noutros momentos, ouvimos o comentador desportivo afirmar que “Cristiano Ronaldo saltou para cima do adversário. «Para cima» entre aspas, naturalmente”. Ou então lemos, nas letras grossas de um jornal regional especializado no desperdício obtuso das referidas sinalefas, que «os turistas espanhóis “invadiram” Coimbra». Não fossemos nós, azamboados leitores, pensar que, por ablação das ditas, o avançado do Manchester United se tivesse dedicado a subverter em pleno relvado a homofobia dominante no mundo do futebol. Ou que os castelhanos tivessem esquecido a padeira Brites e decidido preencher a linha de confusão urbanística que se alonga do Choupal até à Lapa com postos militares avançados, camuflados como simpáticas tendinhas de tapas e bocadillos.
Existem, todavia, maneiras menos hilariantes de abusar das aspas. Elas propagam-se, para abreviar a descrição, em três sentidos possíveis: o primeiro define-as como instrumentos destinados a contornar a pobreza da retórica, o segundo relaciona-as com a desresponsabilização do discurso, o último associa-as à incapacidade para afirmar processos de conhecimento próprios e não tutelados. Mas, nestas coisas de formular «verdades», nada melhor do que ser claro para dissipar a escuridão (dispensando-se aqui as aspas por ter o leitor entendido já que não estou a falar do tempo nocturno).
Remendar a retórica. Esta é uma estratégia vulgarizada, que podemos ouvir em diversas situações. Ora o orador e, faltando-lhe o exacto termo ou a figura de linguagem adequada, adianta a aproximação aspada. Proclama assim: «Porque serão justamente os cidadãos menos favorecidos, senhores deputados, aqueles que têm menos hipóteses de se eximir ao ónus dos impostos? É caso para dizer, usando a sabedoria popular, que quem se [faltando-lhe neste preciso momento o termo] “prejudica” (entre aspas) é o mexilhão!». Também apresentadores televisivos, professores, conferencistas, advogados e outros profissionais da fala recorrem com frequência a este expediente, de toda a vez que lhes escapa a palavra certa ou entendem ornamentar o verbo sem correrem grandes riscos.
Desresponsabilizar o discurso. O sentido aqui é outro, aparecendo, seja na escrita ou na oralidade, naquele exacto momento em que se depara algum temor de que à palavra ou à expressão utilizada se possa atribuir um sentido que não aquele, um pouco menos taxativo, que se lhe quer dar, suscitando o descontentamento ou o despeito de alguém. Afirma o eventual «prevaricador» (com aspas): «Considero a atitude anteriormente tomada como uma “asneira”, podendo vir a afectar “pesadamente” o futuro desta instituição. Sinto-me, pois, algo “constrangido” em relação à possibilidade de lhe conceder o meu aval.» Usa-se frequentemente em certas reuniões de trabalho ou nas actas públicas das mesmas.
Recusar a criatividade. Esta é a situação menos vulgar mas de mais pesadas consequências. Traduz uma incapacidade, demonstrada na produção de discursos de natureza interpretativa, para contrariar formas de conhecimento dominantes e produzir novos conceitos ou alargar os existentes. A construção de formas de saber diferenciadas e o encontro com realidades e lógicas anteriormente desconhecidas, conduzem a que se criem novas palavras ou expressões, muitas vezes usadas de maneira necessariamente experimental, que correspondem à afirmação de leituras possíveis e legítimas. Aqui é preciso assumir a queda das aspas. Por exemplo, a noção de campo criada por Pierre Bourdieu – aquele pedaço do mundo social que é regido por leis e códigos próprios – não pode ser confundida com a paisagem do Campo de trigo com corvos, o último quadro de Vincent Van Gogh. Não sendo preciso acompanhá-la, para que percebamos a diferença, desses tristes e incómodos sinais da ortografia.
As aspas são pequenos demónios que tornam mais pobre e mais opaca a comunicação. Num hipotético futuro serão abolidas ou cairão de podres. Até lá, o melhor que temos a fazer é evitar usá-las como grilhões da palavra ou instrumentos da tolice.
Crónica publicada em 2002 na revista electrónica NON!, aqui retomada com pequeníssimos retoques.
Não é fácil sinalizar a escrita. Arrumar as palavras, separando-as com pontos, vírgulas, pontos & vírgulas, hífenes ou travessões, mais dois pontos, parênteses, colchetes… reticências. Mas também com aspas (« »), esse adorno – análogo às comas duplas ou vírgulas dobradas (” “), usadas sobretudo para citar ou introduzir expressão em língua estranha – que confere um valor significante diverso do habitual à palavra ou à expressão que entre elas se intromete. Com «indecorosa» intenção normativa, D’Silvas Filho, autor de um Prontuário editado pela Texto, declara que a aposição das aspas constitui uma prática que serve para grafar «termos ou expressões que se devem evitar, termo estrangeiro, reserva no que se escreve (ortográfica, fonética, semântica, eventualmente autoria)». Preceito que a ser seguido com rigor, neste tempo de contínua chocalheira da fala e da escrita, faria do nosso entendimento um labirinto cravado de minas e armadilhas.
De inegável utilidade pública na construção de sentidos esconsos e álibis, as aspas, sinais de vida fácil e atribulada, são muitas vezes objecto de abuso. Abre aspas, por dá cá aquela palha, fecha aspas. Solícitas, sem pudor, servem para contornar insultos, podendo afirmar-se na sua companhia que o senhor director «é um valente “pulha” (entre aspas)!». Noutros momentos, ouvimos o comentador desportivo afirmar que “Cristiano Ronaldo saltou para cima do adversário. «Para cima» entre aspas, naturalmente”. Ou então lemos, nas letras grossas de um jornal regional especializado no desperdício obtuso das referidas sinalefas, que «os turistas espanhóis “invadiram” Coimbra». Não fossemos nós, azamboados leitores, pensar que, por ablação das ditas, o avançado do Manchester United se tivesse dedicado a subverter em pleno relvado a homofobia dominante no mundo do futebol. Ou que os castelhanos tivessem esquecido a padeira Brites e decidido preencher a linha de confusão urbanística que se alonga do Choupal até à Lapa com postos militares avançados, camuflados como simpáticas tendinhas de tapas e bocadillos.
Existem, todavia, maneiras menos hilariantes de abusar das aspas. Elas propagam-se, para abreviar a descrição, em três sentidos possíveis: o primeiro define-as como instrumentos destinados a contornar a pobreza da retórica, o segundo relaciona-as com a desresponsabilização do discurso, o último associa-as à incapacidade para afirmar processos de conhecimento próprios e não tutelados. Mas, nestas coisas de formular «verdades», nada melhor do que ser claro para dissipar a escuridão (dispensando-se aqui as aspas por ter o leitor entendido já que não estou a falar do tempo nocturno).
Remendar a retórica. Esta é uma estratégia vulgarizada, que podemos ouvir em diversas situações. Ora o orador e, faltando-lhe o exacto termo ou a figura de linguagem adequada, adianta a aproximação aspada. Proclama assim: «Porque serão justamente os cidadãos menos favorecidos, senhores deputados, aqueles que têm menos hipóteses de se eximir ao ónus dos impostos? É caso para dizer, usando a sabedoria popular, que quem se [faltando-lhe neste preciso momento o termo] “prejudica” (entre aspas) é o mexilhão!». Também apresentadores televisivos, professores, conferencistas, advogados e outros profissionais da fala recorrem com frequência a este expediente, de toda a vez que lhes escapa a palavra certa ou entendem ornamentar o verbo sem correrem grandes riscos.
Desresponsabilizar o discurso. O sentido aqui é outro, aparecendo, seja na escrita ou na oralidade, naquele exacto momento em que se depara algum temor de que à palavra ou à expressão utilizada se possa atribuir um sentido que não aquele, um pouco menos taxativo, que se lhe quer dar, suscitando o descontentamento ou o despeito de alguém. Afirma o eventual «prevaricador» (com aspas): «Considero a atitude anteriormente tomada como uma “asneira”, podendo vir a afectar “pesadamente” o futuro desta instituição. Sinto-me, pois, algo “constrangido” em relação à possibilidade de lhe conceder o meu aval.» Usa-se frequentemente em certas reuniões de trabalho ou nas actas públicas das mesmas.
Recusar a criatividade. Esta é a situação menos vulgar mas de mais pesadas consequências. Traduz uma incapacidade, demonstrada na produção de discursos de natureza interpretativa, para contrariar formas de conhecimento dominantes e produzir novos conceitos ou alargar os existentes. A construção de formas de saber diferenciadas e o encontro com realidades e lógicas anteriormente desconhecidas, conduzem a que se criem novas palavras ou expressões, muitas vezes usadas de maneira necessariamente experimental, que correspondem à afirmação de leituras possíveis e legítimas. Aqui é preciso assumir a queda das aspas. Por exemplo, a noção de campo criada por Pierre Bourdieu – aquele pedaço do mundo social que é regido por leis e códigos próprios – não pode ser confundida com a paisagem do Campo de trigo com corvos, o último quadro de Vincent Van Gogh. Não sendo preciso acompanhá-la, para que percebamos a diferença, desses tristes e incómodos sinais da ortografia.
As aspas são pequenos demónios que tornam mais pobre e mais opaca a comunicação. Num hipotético futuro serão abolidas ou cairão de podres. Até lá, o melhor que temos a fazer é evitar usá-las como grilhões da palavra ou instrumentos da tolice.
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