TUCA PUC 1977
EU QUASE QUE NADA SEI. MAS DESCONFIO DE MUITA COISA. GUIMARÃES ROSA.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008


Morreu Lourenço Diaféria
É uma pena que não haja mais homenagens ou que as gerações mais jovens não o conheçam. Saibam que Diaféria tinha um vigor, uma vontade de escrever....
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Recebi texto do Blog do Juca Kfouri
Muiiito bom.
Por causa do texto abaixo, Lourenço Diaféria foi preso pela ditadura no Brasil.A menção ao Duque de Caixas, patrono do exército, foi considerada uma afronta, como coisa de comunista.E Diaféria era só corintiano, sensível como poucos, doce e decente, nem mesmo era de esquerda.Ditaduras são assim: ridículas.De tão fortes, são fracas, fragílimas, com medo da própria sombra.Todas elas.
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HERÓI. MORTO. NÓS.(Crônica publicada em 1º de setembro de 1977, na "Folha de S.Paulo", mantida a grafia original da época) Lourenço Diaféria
Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos. O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra. Que nome devo dar a esse homem? Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor. Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói -como o santo- é aquele que vive sua vida até as últimas consequências. O herói redime a humanidade à deriva. Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major. Está morto. Um belíssimo sargento morto. E todavia. Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias. O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel -onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer- oxidou-se no coração do povo.
O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar. O povo quer o herói sargento que sejao ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos. No instante em que o sargento -apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher- salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos. Esse sargento não é do grupo do cambalacho. Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais. É apenas um homem que -como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem- não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa. O povo prefere esses heróis: de carne e sangue. Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais.
É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos. Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancando do fosso das ariranhas -como você tirou o menino de catorze anos- mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar. Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos. E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis -tarde demais. Homenagem a um grandeMorreu, aos 75 anos, Lourenço Diaféria, um dos maiores cronistas da vida de São Paulo, companheiro delicado, dedicado, firme.Outro amigo, Lino Castellani, seu fã, sugeriu a crônica abaixo para homenageá-lo.Valeu!
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ANTENA LIGADA Lourenço Diaféria
Troquei meu televisor em branco e preto por um televisor em cores com controle remoto, para facilitar a vida de meus filhos, que agora, sabe como é, época de provas, estão se virando mais que pião na roda. Imaginem que outro dia um professor teve a coragem de mandar meu filho gavião-da-fiel fazer um trabalho sobre o Sócrates.Fiquei uma arara.Em todo caso, apanhei a revista Placar e recomendei que o garoto consultasse os arquivos esportivos aqui da Folha e do Jornal da Tarde. Não é por ser meu filho, mas o guri caprichou do primeiro ao quinto.Tirou zero.Puxa, assim também é demais. Resolvi levar um papo com o professor, ver se não era perseguição. O professor foi muito gentil, porém ninguém me tira da cabeça que ele é palmeirense disfarçado de sãopaulino. Garantiu-me que havia ocorrido um equívoco: O Sócrates que ele queria era um craque da redonda que tomou cicuta. Essa é boa. Por que não avisou antes? Como é que vou adivinhar que o homem jogava dopado?Me manguei, mas o professor percebeu meu azedume. Disse que ia dar uma nova chance.Falou e disse.Preveni meu garoto que ficasse de orelha em pé, lá vinha chumbo. Dito e feito. O professor, deixando cair a máscara alviverde, deu uma de periquito campineiro e pediu um trabalho completo sobre o Guarani.Deixa que eu chuto, falei a meu filho. Pode contar comigo na regra três. Eu mesmo cuido da pesquisa.Peguei a escalação completa do Guarani, botei o Neneca no gol, fiz a maior apologia do time da terra das andorinhas. Pra me cobrir e não deixar nenhum flanco desguarnecido, telefonei pro meu amigo Antonio Contente, que transa em assuntos culturais e conexos, como seja a imprensa, e pedi por favor que ele me mandasse uma camisa oito autografada. Diretamente de Campinas e pelo malote.Não é pra falar, mas o trabalho escolar ficou um luxo.Sem falsa modéstia, estava esperando pro meu filho no mínimo aprovação cum laude e placa de prata, para não dizer medalha de honra ao mérito.Pois deu zebra.Começo a desconfiar que o tal professor me armou uma arapuca e entrei fácil, como um otário. O homem deve ser primo do Dicá. Sabem o que o mestre fez? Hem? Querem saber? Deu outro zero pro meu filho. O pior é que não devolveu a camisa oito autografada.Essa não deixei barato. Fui de peito aberto, às falas.- Ilustre - eu disse -, com o perdão da palavra, mas que diabo de safadeza vossa senhoria anda arrumando pro meu garoto gavião-da-fiel? Então eu perco tempo, pesquiso, consulto a história gloriosa da equipe campineira, faço a maior zorra com o time do Brinco da Princesa, e o garoto ganha cartão vermelho?Que grande cínico! O homem me olhou com aqueles olhos de olheiras - acho que tem almoçado e jantado mal, sei lá dizem que professor padece um bocado-, coçou a cabeça, murmurou:- Foi o senhor que fez a lição?Fiquei meio sem jeito:- Bem, fazer não fiz. Dei uma orientação didática. Pai é para essas coisas...Ele não se comoveu. Ao contrário, foi até rude:- Se aceita um conselho, para de dar palpite na lição de casa de seu filho. O senhor não conhece nada do Guarani.Falar isso na minha cara! Tive de agüentar calado. Nunca soube que no diacho do time campineiro figurasse uma dupla de área chamada Peri e Ceci. E com essa constante mudança de técnicos, como podia sacar que o técnico atual é o Zé de Alencar?- Tá bem - eu disse -, não vamos brigar por tão pouco. O professor pode dar outra oportunidade ao menino?Deu. O professor quer agora os capítulos completos de um romance, por coincidência com o mesmo nome do time de Campinas: o Guarani. É qualquer coisa com índio sioux que de repente se vê obrigado a salvar uma mulher biônica das águas da enchente. Deve ser novela em cores. Mas só para complicar a vida de meu filho, o professor não revelou o horário. Porém desta vez ele não me ferra. Pela dica do enredo, que deixou escapar, deve ser mais uma dessas sucessões de cenas de violência que a gente é obrigado a engolir todas as noites na televisão. Estou de antena ligadona, meu chapa.

3 comentários:

Anônimo disse...

Cara Marta!
Muito obrigado por este post. É fantástico, intrigante e excitante ler Diaféria.
Quanto aos às novas gerações "Nunca deixe seu filho mais confuso que você"
Um abraço.

Pedro Nastri disse...

Sua pena era ágil no humor, por exemplo, quando criticou os altos preços que estavam sendo praticados nas feiras livres e se saiu com essa, em contrapartida ao Rei Pepino o Breve, o xuxú o longo. Sua pena era ao mesmo tempo amena e contundente. Deixa uma grande saudade em todos nós, seus fãs.

Anônimo disse...

Marta...

Usei muito este texto do Diaféria nas minhas aulas. Os alunos adoram. Senti também saber da morte dele. Ficam os textos. Ele publicava no Almanaque Brasil de Cultura Popular, a revista de bordo da TAM.

Braziu!

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