AS MUITAS VOZES VERBAIS (II)
José Augusto Carvalho, Professor de Linguística da Universidade Federal do Espírito Santo
José Augusto Carvalho, Professor de Linguística da Universidade Federal do Espírito Santo
A idéia da voz depoente parece-me solução adequada para explicar, graças às suas características de uma voz diferente, a impossibilidade de transformação passiva de frases como Antônio levou um soco, em que o verbo parece estar na voz ativa, com objeto direto, mas o sujeito é paciente. No inglês clássico, é possível voz passiva com objeto direto: I was stolen a pencil by him (literalmente: “Eu fui roubado um lápis por ele”). Em redações escolares, é possível encontrar voz passiva construída equivocadamente com objeto direto, como no exemplo seguinte: “O professor foi indagado pelos alunos se podia liberar a turma mais cedo”.
É interessante lembrar ou relembrar que a voz passiva não é necessariamente sinônima da voz ativa correspondente. Há casos em que a voz passiva é semanticamente distinta da voz ativa, contrariando a idéia de que aquela é apenas uma transformação desta. Uma frase como “A cidade viu Tancredo doente” tem sentido diferente do da sua correspondente passiva: “Tancredo foi visto doente pela cidade”, em que o sujeito metonímico da ativa se confunde com um adjunto adverbial de lugar, na passiva. A frase “Eu tirei esta foto” pode ser interpretada assim: “Posei para esta fotografia” ou “Eu fui o fotógrafo responsável por esta fotografia”. Mas a voz passiva correspondente – Esta foto foi tirada por mim – só tem uma interpretação possível: a de que eu fui o responsável pela foto, isto é, a de que fui o fotógrafo. A frase “Um só aluno não fez o dever” não diz o mesmo que “O dever não foi feito por um só aluno”.
A solução ideal seria considerar a voz passiva não como uma transformação da ativa (e ainda menos como uma espécie de advérbio de modo da voz ativa, explicação tentada por gerativistas), mas como uma construção paralela morfologicamente semelhante à voz ativa. A semelhança morfológica (mesmos itens lexicais) permite a conversão de uma em outra, mesmo que o sentido seja diferente. Assim, seria desnecessário, por não-pertinente, explicar a não-correspondência semântica que às vezes se observa entre as duas construções.
Só existem dois tipos de voz passiva: a analítica, construída com o verbo ser auxiliar, como em “A rosa foi vista por José”, e a sintética, construída com o pronome apassivador, como em “Viu-se a rosa”. Uns poucos gramáticos mais ousados, confundindo análise semântica com análise sintática, apresentam, equivocadamente, um terceiro tipo de voz passiva: a de infinitivo, como na frase “osso duro de roer”, pretensamente passiva, porque pode ser parafraseada em “osso duro de ser roído”. Ora, nos predicados adjetivais desse tipo (difícil de fazer, duro de roer, fácil de ler, ruim de dizer, etc.), a voz é ativa; pressupõe a existência de um sujeito ativo: osso duro de alguém roer, livro fácil de alguém ler, trabalho difícil de alguém fazer, etc. Por isso é possível dizer: coisas difíceis de fazer (voz ativa), coisas difíceis de se fazerem (voz passiva sintética) e coisas difíceis de serem feitas (voz passiva analítica).
Em frases como “dar a mão a beijar”, a idéia é ainda de voz ativa: dar a mão para alguém beijar, dar a mão a alguém que a beije. Raciocinar com comutações sintáticas é deixar-se enganar pela semântica. A comutação, isto é, a troca de um elemento por outro para verificar se o sentido permanece ou não o mesmo, funciona adequadamente na fonologia, mas fracassa na sintaxe. Por exemplo: pode-se dizer “de tarde”, “de noite”, “de manhã”. Mas, se se pode dizer “à tarde” e “à noite”, não se pode dizer *”à manhã”. A comutação não funciona. (Conclui na próxima semana.)
Um comentário:
Marta,
Amanhã é o grande dia da Coletiva “Professores do Brasil”. Você estará contribuindo para a valorização dos professores.
Até amanhã!
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