TUCA PUC 1977
EU QUASE QUE NADA SEI. MAS DESCONFIO DE MUITA COISA. GUIMARÃES ROSA.

domingo, 30 de maio de 2010

Ui, céus!


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Deixai, ó vós que assistis, toda a mitologia!
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Por José de Arimathéia, de Londrina

Assisti à refilmagem de "Fúria de Titãs", hoje à tarde. Antes mesmo de dizer isso, já quis apontar a tônica da minha resenha com a frase acima. A partir daqui, tenha sempre este pensamento em mente: esqueça a mitologia! Os Irmãos Warner a esqueceram.
É por isto que não posso mais assistir a tais filmes. Não consigo suportar a violência contra a riqueza da mitologia. Não me venham com conversas do tipo "mito é mito e filme é filme", ou "filme não tem compromisso..." ou "filme é arte, não é História". Licença poética, ou adaptação, é uma coisa - distorção é outra. Até porque - vou demonstrar - não se trata apenas de deturpar o mito grego, mas contaminá-lo com ideologias estranhas a ele.
É o caso da nada palatável inserção de clichês linguísticos norte-americanos, como o pai adotivo de Perseu, que diz a ele, ainda jovem: "Um dia você vai longe. Mas não hoje" (ou no original: "but not tonight"). É típica frase de filmes americanos - fala-se em acontecimentos desagradáveis futuros, e segue o alento: "Mas não hoje". Outro clichê que aparece é típico de produções policiais: "Confie em seus instintos". Porém, pior ainda, é o clichê do "Eu odeio você, mas o único jeito de atingir meu objetivo é me unindo a você". Americano adora modalizar seus herois desta maneira - forçando-o a aceitar uma aliança que lhe desagrada. Isto é tão cansativo. Tem mais um clichê, logo no começo do filme: "Algum dia alguém tem que dizer: 'basta!'".
Como sempre, a história gira em torno de um heroi, e toda produção norte-americana que se preza chama o heroi de "salvador", o que acontece várias vezes no filme. Ora, a ideia de um salvador que virá, ou seja, messiânico, não tem nada a ver com a mitologia grega. Gregos nunca esperaram um salvador, em tempo algum. O salvador messiânico é completamente judeu. E como bom enviado por Iahweh, primeiro ele recusa sua missão. E Perseu o diz, mais de uma vez: "Sou apenas um homem".
Mais que isso, em vários momentos Perseu é criticado e até zombado por ser um semideus, ou seja, "o filho de um deus". Esta seria a voz daqueles que acusaram Jesus de blasfêmia? Seria a ideologia judaica dizendo: "que ninguém reivindique para si o título de filho de Deus"?
A anti-idolatria judaica aparece permeando todo o filme, desde o início, com as imprecações contra os deuses, que não fornecem o peixe ao pescador. E tudo piorou: foram os deuses que causaram a morte da família adotiva de Perseu, daí seu ódio pelas divindades olimpianas. Eis outro clichê: o heroi estava bem e em paz, mas perde toda a sua família, e por isso - e só por isso, porque não fosse assim poderia o mundo todo explodir - decide lutar.
Tudo errado: no mito, Perseu não foi adotado por uma família de pescadores (e o que será que a mãe e a irmã pequena ficam fazendo num barco de pesca?). Ele foi encontrado no mar e levado ao rei Polidectes, que o criou. Mas Polidectes nem foi mencionado. Perseu, no filme, foi criado por Sepyro. Não: Sepyro, no mito, foi onde foi encontrado. E foi Poseidon que não o deixou morrer, e não Io.
Io?
O que Io faz no filme? Só os roteiristas sabem. O mito de Io não tem absolutamente nada a ver com o de Perseu. Io é a lua (no caso, uma das luas de Júpiter, ou Zeus), mas algumas versões dizem que Io fugiu para o Egito, onde se tornou Ísis.
Nem tudo foi tão ruim. Gostei do visual retrô dos deuses do Olimpo. As armaduras lembram as dos Cavaleiros do Zodíaco. Iluminação e modelos lembram um pouco o filme "Excalibur" e como as armaduras reluziam lá. A cena em que Hades vem falar a Zeus contra a Humanidade chega a lembrar o primeiro capítulo de Jó, em que Satanás, que - sim - frequenta a Corte Celeste, fala contra Jó. E quem defende a Humanidade é Apolo (o sol). Mas daí a dizer que ele estaria representando Jesus é um passo que não pode ser dado. Teologicamente sim, mas como a produção é contaminada pelo Judaísmo, torna tudo muito improvável, para não dizer impossível. Até porque Zeus permite que Hades aja (como Deus fez no Livro de Jó), mas as intenções dos Senhor do Olimpo são bem outras.
Contudo, se o figurino dos deuses é interessante, acaba aí. Os demais deuses, com exceção de uma frasezinha de Apolo, são totalmente omissos. Estão lá como meros figurantes.
Perdida a família, Perseu, no filme, chega em Argos. Que Argos? Não tem cidade de Argos no mito original. Na mitologia grega, Perseu foi criado pelos reis etíopes. Argos, na mitologia, é um monstro com 100 olhos, que não aparece no filme. No filme, são reis de Argos. E, no filme, a rainha Cassiopeia foi morta por Hades, enquanto na mitologia ela foi punida por Afrodite. Cassiopeia cometeu o pecado da hybris, ou seja, foi extremamente arrogante, a ponto de se considerar uma deusa. Neste ponto, foi como Eva, que - alegoricamente falando - ao provar do fruto proibido, reivindicou o direito de ditar o que é o bem e o que é o mal: o pecado original.
Em Argos, aparece uma espécie de "profeta" gritando que o povo deve se humilhar, pedir perdão e jurar servidão aos deuses. Esta é a voz da idolatria aos falsos deuses. Por outro lado, ele defende a "redenção através do sangue". Como não pode ser o sangue de Cristo, deve ser o sangue do Êxodo.
Na mitologia, o rei Acrísio, avô de Perseu, decide jogá-lo no mar com a mãe porque um oráculo havia dito que seu neto lhe traria a morte. No filme, Acrísio é o pai terreno de Perseu (Zeus tomou a forma dele para fiar com a mãe, Dânae) e se confunde com outro mito: Calibus. Incrível como Acrísio recebeu um raio dos céus e não morreu. Enfim: Acrísio não é Calibus - na mitologia.
Momento revoltante: enquanto se armavam para sair em busca do conhecimento para matar o Kraken (espere: Kraken? Mas Kraken não é da mitologia grega; é da mitologia nórdica), encontraram a Coruja de Atena. Quem lembra da corujinha metálica/robótica feita por Atena no filme "Fúria de Titãs" original? Pois então: ela aparece esquecida no meio de lanças e espadas e, quando encontrada, é abandonada com desdém, como lixo. Revoltante. Ainda sobre o Kraken. No mito, é Ceto (ou Cetus) que vai atacar a cidade. Do nome deste ser mitológico vem o termo "cetáceo", que designa as baleias, os mamíferos gigantes dos mares.
Pouco antes da partida do grupo, aparecem do nada dois "caçadores" que querem se juntar aos outros. O detalhe é que os dois dizem que são capazes de participar porque conhecem os segredos do Leão de Nemeia. da Hidra de Lerna e dos centauros. Ora, estes são personagens do mito de Héracles, nada a ver com Perseu.
Outro ponto muito fraco do filme é o lado "revoltado com papai" de Perseu. Ele se recusa a aceitar a espada - retrátil (!!!) - que Zeus lhe envia. Mas depois é obrigado a usá-la. Lembre-se do clichê: "Eu te odeio, mas se o único jeito de fazer isso é aceitando, então eu aceito". Curiosamente, Perseu não reclama de ganhar Pégaso (e vamos combinar: Pégaso é lindo, soberbo, elegante, majestoso) nem da moeda que vai usar para pagar Caronte. Muito menos reclama quando Zeus traz Io de volta (Io? O que Io faz aqui? Ah, já falamos disso).
Mas fraco mesmo é o elenco. Nenhuma das atrizes é mais do que medíocre. O ator principal é um desastre, daqueles que parece que tem músculos e nada de cérebro. Os bons atores, como Liam Neeson, Liam Cunningham, Ralph Fiennes (que parece mais Voldemort no Olimpo) e o outro que não lembro o nome (Le Chiffre de 007-Casino Royale), apagam-se em papeis que privilegiam perfis de gladiadores.
Estranhos, porém, são os médio-orientais que aparecem no meio do filme. Chamados de "djins" (os 'gênios' do Oriente Médio), eles montam escorpiões gigantes (forçou!!!), e um deles se junta ao grupo na jornada. Para mim pareceu mais um absolutamente cumprimento de cota étnica, típico dos filmes norte-americanos. O ator que faz o djin não é negro nem aparece de cara limpa, mas o próprio djin tem a face negra, embora seja uma espécie de máscara ou semblante sobrenatural.
No filme, o djin (chamado Kucuk) dá um escudo a Perseu feito de casca de escorpião gigante (quá!). É com ele e a "espada que papai me deu mas eu odeio ele assim mesmo" que Perseu vence a Medusa. Aliás, a história de Medusa, contada por Io (Io? O que Io...? Deixa pra lá), está toda errada, nada a ver com a mitologia grega. E mais: Perseu só venceu a Medusa porque seus aliados morreram como buxa de canhão para a górgona.
E assim que ele sai do templo de Medusa, Pégaso aparece para levá-lo de volta a Argos. Tamanha sincronia só tem uma explicação... ordem de Zeus? Errou: ordem do roteirista mesmo. Outras partes são bem forçadas também. Exemplo: o demônio que rouba a cabeça da Medusa de Perseu. Ao invés de voar para longe, fica em torno do Kraken. Pra quê? E depois, quando Perseu o derruba do céu, eles caem a poucos metros de Andrômeda e do Kraken. Ora... só por obra e graça dos roteiristas, mais uma vez. Para finalizar, o salvamento de Andrômeda debaixo d'água foi muito forçado. Perseu a encontrou, sem erro, no mar profundo, escuro, e no meio de toneladas de pedras afundando - claro que nenhuma pedra chegou nem perto da moça. Aff...
Lamento, por fim, nenhuma referência à lenda do coral. Os gregos antigos contavam que o coral nasceu a partir de gotas do sangue da Medusa que caíram no mar, quando Perseu a ergue diante de Cetus.
Isto tudo... entre outras coisas.

Em resumo: não dá.

2 comentários:

ncamini disse...

Ontem, depois de muiiiiiiiiito tempo, resolvi assistir à essa bomba. Meu Deus! Que desperdício de tempo e dinheiro fazena do essa porcaria. Mas o objetivo do comentário é parabenizá-la pela resenha extremamente bem feita e com uma dose absolutamente precisa de humor. Em um tempo, onde a inteligência é algo de raro valor devido à sua escassez, sua escrita é um sopro de vitalidade na descerebrada internet. Um grande abraço. Nino Camini

Marta Gaino disse...

Amei seus cacarecos!
Por um acaso do destino estou em casa hoje e acabei assistindo a essa "fita". Como gosto muito da temática mitológica, apesar de não saber quase nada sobre o assunto, fui procurar nos oráculos da internet e encontrei sua resenha - Ótima!
Virei sua fã...
Abração
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