TUCA PUC 1977
EU QUASE QUE NADA SEI. MAS DESCONFIO DE MUITA COISA. GUIMARÃES ROSA.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Artigo: gênero e concordância


Imagem: Andy W.
O ARTIGO – GÊNERO E CONCORDÂNCIA
José Augusto Carvalho, Professor Dr da Universidade Federal do Espírito Santo

Grata pelo envio, professor!
Bons gramáticos, como Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova gramática do português contemporâneo) e Rocha Lima (Gramática normativa da língua portuguesa) afirmam que o nome próprio oriundo de um nome comum se constrói com o artigo: o Porto, o Cairo (de El-Kahira, a vitoriosa), o Rio de Janeiro, o Havre (que significa “o porto”). O problema é que todos os nomes próprios (de lugar ou de pessoa) de alguma forma se originaram de adjetivos ou de nomes comuns, como Cláudio (o capenga; daí vem o verbo “claudicar”), Honório (que recebe honras), Ricardo (príncipe forte), Lituânia (terra chuvosa), Sagres (sagrado), etc. Muitos nomes de lugar no ES vêm de nomes comuns e se usam sem artigo: Vitória, Castelo, Cachoeiro, Guarapari (“curral das garças”), etc.
As gramáticas são omissas quanto ao gênero de substantivos que se tornaram próprios no plural e que, portanto, perderam a idéia de pluralidade. Alagoas, por exemplo, pode ser usado facultativamente com o artigo feminino (as Alagoas), mas Amazonas só admite o artigo masculino, que Drummond usa no plural, no poema “Hino Nacional”, do livro Brejo das Almas (p. 45 da edição de suas obras completas – Poesia e Prosa ­­__,da Ed. Aguilar, de 1988, de onde tiro todos os exemplos; o número entre parênteses, após cada citação, indica a página em que o exemplo se encontra).
Não é a origem feminina do nome que determina o uso do artigo ou de um adjetivo no feminino. Belo Horizonte, embora masculino na origem, é feminino como nome próprio: a desprevenida Belô (p. 718; note-se o hiperbibasmo do tipo diástole, isto é, o deslocamento para a frente do acento tônico de “Belo”). Não se pode dizer que está subentendida a palavra “cidade”, porque em “Minas orgulhosa” (431), ou em “pura Minas” (711), por exemplo, não está subentendida a palavra “estado”. Além disso, só há elipse quando o termo subentendido pode ser recuperado no texto ou contexto anterior (por anáfora), o que elimina a possibilidade de se chamar “elíptico” ao sujeito de uma oração em que se suprimiu o pronome reto, como em “Vamos embora”, por exemplo, já que “eu”, (“nós”) ou “tu” (“você”, “vós”, “vocês”) são pronomes exofóricos, isto é, são dêiticos, que remetem sua significação a agentes fora do texto, à situação do discurso.
Não há razão específica para que Londres seja do gênero feminino, e Paris seja do gênero masculino. Não há razão para que Alagoas possa ter diante de si o artigo feminino plural, e não o singular, como o Amazonas. Nem há razão para que nomes como Ásia, Holanda, Europa, França, Espanha, Inglaterra e África (que formam a frase mnemônica “Ah, é feia!”) sejam articulados facultativamente. Drummond escreve “Europa” sem artigo: “Cai neve em Parnaíba (...) seus filhos que jamais viram Europa” (784). Rui Barbosa escreveu “Inglaterra”, sem artigo, no título de seu livro de 1896: Cartas de Inglaterra.
Uma coisa é certa: há nomes que rejeitam obrigatoriamente o artigo, exceto quando seguidos ou precedidos de outro(s) determinante(s), como Portugal, Lisboa, Paris, Cabo Verde, Salvador e outros; há os que podem ser precedidos ou não, facultativamente, do artigo, como (o) Recife, (o) Marrocos, (a) Serra e os nomes que formam o acrônimo “Ah, é feia!”, acima citado; e há os que exigem obrigatoriamente o artigo, como Estados Unidos, Brasil, Rússia (exceto nas enumerações, como aqui, ou em manchetes de Jornal). Assim, uma frase como “Estados Unidos invadem o Iraque” é admissível como manchete de periódico, em que a ausência do artigo se permite talvez por economia de espaço; mas a concordância verbal se faz como se o artigo estivesse lá, isto é, a ausência eventual do artigo diante de nomes próprios que o exigem não implica mudança nas regras de concordância. Em títulos, contudo, a concordância verbal se faz com o artigo: “Os Sertões constituem uma obra-prima de Euclides da Cunha.” Se o título não tem artigo, a concordância se faz no singular: “Locuções tradicionais do Brasil, de Câmara Cascudo, presta bons serviços ao estudioso.” Se o título original tem artigo, não se deve suprimi-lo nunca. Euclides da Cunha escreveu Os Sertões, e não “Sertões”; Luís de Camões escreveu Os Lusíadas e não “Lusíadas”. A concordância verbal no singular com títulos articulados no plural só é admissível com o verbo “ser”, se o predicativo é singular: “Os Lusíadas (são) é um belo poema.”
O artigo pode usar-se facultativamente diante de nomes próprios de pessoas e diante de possessivo, mas é omitido obrigatoriamente diante de vocativo, de demonstrativo ou de pronome de tratamento formado por possessivo + substantivo abstrato, incluindo você. É por não ser articulado o vocativo que fica estranha a frase “Vinde a mim as criancinhas”, que encerra a letra de uma música popular antiga. O correto seria “Vinde a mim, criancinhas” ou “Venham a mim as criancinhas”. O artigo definido e os pronomes pessoais de 3ª pessoa originaram-se do demonstrativo latino ille, illa, illud. Já por isso o artigo definido e o demonstrativo se excluem mutuamente, isto é, não podem coocorrer diante do mesmo nome.
Quando há elipse nominal, um elemento periférico (adjunto) passa a exercer a função de núcleo. Assim, em “Vejo ali duas senhoras: a da esquerda é recém-casada”, o “a” é artigo definido e não pronome demonstrativo; a locução “da esquerda”, originalmente adjetiva, passou a ser substantiva, ao tornar-se núcleo do sintagma em que houve elipse. Demonstremos: em “Comprei a camisa de duas cores; e ele comprou a de bolinhas”, se é possível dizer “ele comprou aquela de bolinhas”, também é possível dizer “ele comprou UMA de bolinhas”, e seria absurdo dizer que “uma” é pronome demonstrativo. Em “Ele gosta de camisas azuis, mas eu prefiro as brancas”, “brancas” assume a função nuclear, graças à omissão do substantivo “camisas”, recuperável por anáfora. Ora, se, na frase “Vejo duas senhoras: a da esquerda é recém-casada”, o “a” fosse demonstrativo, também seria o “as” de “as brancas”, na elipse citada. A identidade semântica entre “a” e “aquela” nas frases em análise não implica identidade sintática ou funcional, e ainda menos gramatical.
Da mesma forma, o “a” ou o “o”, complemento verbal, é pronome pessoal e não demonstrativo, embora semanticamente se identifique com ele em: “Que ele era bobo, eu já o sabia”. Esse “o” equivale a “isso”, mas é um pronome pessoal, ainda que se possa dizer que se trata de um pronome pessoal “neutro”, nunca de um demonstrativo. Cf. fr.: “Qu’il était dingo, je LE savais déjà”, em que se usa o pronome pessoal, e não o demonstrativo. Quando o “o” substitui um adjetivo em função predicativa, também é “neutro”: “Eles são felizes, mas eu não o sou”, porque o “o” predicativo não tem o mesmo estatuto do “o” pronome objetivo. A uma mulher a quem se pergunta se é professora, poderá responder “Eu o sou”, nunca “Eu a sou”. Já o pronome pessoal “o” concorda com o seu referente: “Ela chegou tarde, por isso não a vi entrar”. Na frase “Que ele era louco, eu já o sabia”, esse “o” substitui pleonasticamente a oração anterior, por isso está no masculino, que é a ausência de gênero. O “o” ou “a” só é demonstrativo diante de pronome relativo: “Das mulheres, ela é a que eu mais amo”. Ainda que se possa pensar em elipse da palavra “mulher”, o artigo não pode exercer função nuclear. O antecedente de um pronome relativo é sempre um substantivo ou um pronome (um sintagma nominal).
É improcedente, portanto, aludir à semelhança de formas ou à identidade semântica para justificar uma pretensa identidade de funções

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