TUCA PUC 1977
EU QUASE QUE NADA SEI. MAS DESCONFIO DE MUITA COISA. GUIMARÃES ROSA.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Hipercaracterização


HIPERCARACTERIZAÇÃO
José Augusto Carvalho, Professor de Linguística da Universidade Federal do Espírito Santo
A etimologia tem sido má conselheira dos que pretendem explicar fatos atuais da língua. O uso leva com freqüência ao esquecimento de como determinada palavra ou expressão se formou. E pode ocorrer o que em lingüística se chama hipercaracterização, que é uma redundância incorporada à língua e que não é mais sentida como redundância. Assim, pretender que suicidar-se ou meio ambiente sejam incorreções por serem originalmente pleonasmos (redundâncias de sentido) é pretender que se recomende dizer nosco ou migo por conosco ou comigo, em que a preposição com se repete. A alteração de mecum para migo levou o falante a esquecer a preposição embutida, e repetiu-a: comigo. Da mesma forma, o futuro irei ver, por exemplo, se forma a partir do esquecimento de que a perífrase com o presente de ir já indica o futuro: vou ver; o falante, então, conjuga o auxiliar no futuro, por hipercaracterização.
Não há redundância em suicidar-se, porque o sui se descaracterizou como pronome e tornou-se parte da raiz verbal. Afinal, dizemos “eu me suicido”, em que o sui ocorre sem referência à 3ª pessoa, distanciando-se de sua origem etimológica.
É por hipercaracterização que dizemos “milharal”. De taquara se origina taquaral; de banana, bananal; de laranja, laranjal, etc. De milho deveria originar-se milhal. Mas o sufixo repetiu-se: milhalal, que deu milharal por dissimilação do l do primeiro sufixo.
Condenar ou justificar os usos atuais da língua pela etimologia não me parece uma atitude científica ou lingüisticamente válida. Do contrário, estaríamos proibidos de usar músculo (que significa “ratinho”) ou hidrofobia (que significa “horror à água”), ou rival (do latim rivus, rio, designativo etimológico de ribeirinho, isto é, do habitante das margens do rio) por exemplo, com o sentido que atribuímos hoje a tais formas.
Os tropos também contribuem para afastar a etimologia das explicações de fatos lingüísticos atuais, como a metonímia e a catacrese (que é uma metáfora cristalizada), por exemplo. É por catacrese que dizemos pé de mesa, barriga da perna, braço de poltrona, céu da boca, ou expressões como andar a cavalo num burro, embarcar num ônibus, enterrar uma agulha no dedo. É por metonímia que usamos nomes de marcas registradas para produtos similares de outras marcas, como chiclete, gilete, modess, etc.
A etimologia apenas indica e explica a origem das palavras, sem implicações semânticas. Assim, pela etimologia, sabemos que Lúcifer, de origem latina, significa “o que leva (ferre) a luz (lux)”, equivalente ao grego fósforo. Ora, pela etimologia, Lúcifer poderia designar Jesus Cristo, mas passou a designar o diabo por um erro de interpretação dos doutores da Igreja, em duas passagens de Isaías, cap. XIV: o versículo 4, em que Isaías fala do rei da Babilônia, e o versículo 12, em que o rei caiu do céu e é chamado Lúcifer, tradução latina do hebraico ben-xabar (filho da aurora), designativo da estrela-d’alva. Os doutores da Igreja viram semelhança entre o que Isaías dizia a respeito do rei da Babilônia e a queda do anjo mau na mitologia cristã. E Lúcifer passou a ter um significado ruim, apesar da etimologia.
Um caso mais recente de hipercaracterização em português é a expressão canja de galinha. Originalmente, canja é caldo de galinha com arroz. O falante esqueceu a significação primitiva e reforçou-a: canja de galinha, o que me parece construção legítima, ou, pelo menos, legitimada pelos usuários cultos da língua, uma vez que, se existe canja musical, como a que termina os programas de entrevista de Jô Soares, na televisão, se torna necessário especificar a canja de que se fala.

3 comentários:

Anônimo disse...

Interessante alerta e lembrança do professor. Mas não se trata de um fato isolado. Observa-e como que um descolamento do que é considerado tradicional em todas as áreas da cultura, pelo menos a ocidental. Encontramo-nos num momento onde se usa uma espécie de antibiótico intelectual para matar o que é daninho e o que é útil. Em meio à confusão, não sabemos para que lado estamos indo. Estamos como o cachorro que se perdeu de seus donos e fica com o rabo entre as pernas, olhar triste e a atenção voltada para qualquer sinal que lhe traga de volta o seguro lar.

Valter T. Dubiela disse...

É a primeira vez que vejo esta analogia de Lucifer como sendo a figura do Messias. Interessante.

Valter T. Dubiela disse...

É a primeira vez que vejo esta analogia de Lucifer como representando a figura do Messias. Interessante.

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